viagem

Produção de vinho na Serra Gaúcha combina tradição e prosperidade

Foi-se o tempo em que produção de vinho era precedida de uma boa pisada nas uvas. Mas a Serra Gaúcha ainda abre espaço para quem quer lambuzar os pés e saborear o passado

 <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span> <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>Nei pilota o “tuc-tuc”  <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>No almoço, pão, queijo, salame, e vinho: tudo feito em casa <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>A perspectiva do Instituto Brasileiro do Vinho é de uma colheita entre 600 e 700 milhões de quilos da fruta no Rio Grande do Sul <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>O vinho produzido na região vem de uvas colhidas principalmente em pequenas propriedades <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>Gema maneja com habilidade o fogo a lenha no preparo do doce de figo <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>Daniel é descendente das primeiras levas de imigrantes italianos que chegaram à região serrana do Rio Grande do Sul <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>

Os irmãos Daniel, de 42 anos, e Márcio Longo, 38, ficaram aliviados. Os ventos fortes e a chuva que caiu na primeira quinzena de fevereiro não causaram grandes danos nos cerca de seis hectares de parreirais plantados em sua pequena propriedade, com as variedades de uvas niágara, bordô e isabel prontas para a colheita. Os comentários que corriam entre os produtores de São Miguel, em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, não eram animadores. Em apenas um hectare numa comunidade vizinha, mais de 25 mil quilos de uva foram parar no chão por causa da tempestade.

Além dos cachos perdidos, a qualidade das uvas que resistiram à tormenta pode ter ficado comprometida. Em plena vindima (colheita da uva), que acontece entre janeiro e março, foi um estrago e tanto. “A gente luta, trabalha o ano inteiro e de uma hora para outra, em questão de minutos, fica tudo perdido”, lamenta Daniel. No dia seguinte ao temporal, dezenas de agricultores foram espontaneamente às áreas afetadas e realizaram um mutirão para colocar novamente em pé os parreirais derrubados. “Aqui na roça é assim, somos unidos. Nas boas e nas más horas”, diz.

De janeiro até a metade de março, quando termina a safra, a rotina dos pequenos agricultores é de trabalho pesado. Daniel e Márcio, descendentes das primeiras levas de imigrantes italianos que chegaram à região serrana do nordeste do Rio Grande do Sul, em 1875, pulam da cama antes das 6h. A mãe, Gema Longo, 67 anos, quando o sol desponta atrás da serra já está na cozinha, preparando café e pão colonial quentinhos, queijo fresco, salame, polenta, suco de uva e doces feitos de frutas do pé. “Praticamente, só o café e o açúcar a gente compra no mercado, o restante vem daqui mesmo, na roça”, afirma Gema, sem tirar os olhos do fogão a lenha.

A mesa está posta. Num instante chegam Daniel e Márcio, juntamente com Otávio, Matias e Leonardo, vizinhos da comunidade de São Miguel, que vêm ajudar na colheita. “Quando terminar a nossa colheita, vamos ajudar os vizinhos com as uvas deles”, conta Márcio. Depois do café, com muita conversa num dialeto italiano incompreensível, os homens ajeitam-se na carroceria de um tratorzinho e rumam aos parreirais, na encosta dos morros ao redor. Impressiona a agilidade e o cuidado dos agricultores. As uvas são frágeis – se forem colhidas de qualquer jeito, os cachos estragam. Também é preciso cuidado ao colocar nas caixas de plásticos que serão levadas de caminhão às vinícolas, onde serão processadas.

Como acontece na maioria das pequenas propriedades produtoras de uva na Serra Gaúcha, o sistema utilizado por Márcio e Daniel é o de “latada”. Uma tipo de caramanchão é erguido a cerca de 1,8 metro do solo, feito de arames trançados que dão suporte às videiras. Segundo eles, a principal vantagem do sistema é a quantidade de cachos produzidos e, consequentemente, a garantia de boa renda no final da safra. Mas como a uva precisa de bastante sol, as folhagens podem impedir que os cachos recebam o calor necessário para amadurecer, daí a necessidade de muito cuidado durante as podas.

“A gente enfrenta o frio e a geada no inverno, esperando que tudo dê certo na safra. Um pouco de sossego só mesmo depois da colheita, pois durante boa parte do ano o que não falta é trabalho”, contam. No entanto, o que esses pequenos agricultores mais temem, sem dúvida, é contrair dívida no banco. “Sai pra lá, é pior que praga.”

A hora da pisa

Mas a vindima na serra não é só trabalho, ao contrário, haja festa. No distrito de Tuiuty, em Bento Gonçalves, durante o carnaval, em vez de máscaras os visitantes colocam chapéus de palha na cabeça, e no lugar de blocos e marchas, os visitantes chacoalham até as videiras de “tuc-tuc” – uma geringonça motorizada que vai sacolejando os passageiros em cadeiras de plástico ou bancos de madeira. Dependendo das curvas, subidas e descidas, o passeio equivale a turismo de aventura. Mas sem riscos.

Afinal, um dos “pilotos” é Nei Antônio Tomasi. Bem-humorado, sempre com uma piada na ponta da língua, Nei dirige o tuc-tuc devagar enquanto canta Merica, Merica, da canção que virou, por lei de 2005, tema da colônia italiana do Rio Grande do Sul. No parreiral, ele convida as pessoas a colher os cachos e colocar em vasilhames iguaizinhos aos usados pelos imigrantes, quando chegaram à serra.

Como ninguém é de ferro, após o “trabalho” é a vez do “merendim”: uma fartura de salames, queijos, pães da colônia, doces, polenta, suco e vinho, servidos sob o parreiral em cima de toalhas quadriculadas. E para muitos o melhor vem em seguida. Depois de lavar os pés (providência indispensável), basta subir numa enorme tina e esmagar as uvas ao som da tarantela. A pisa das uvas, hoje em dia, é apenas um ritual folclórico para lembrar esse método primitivo de se elaborar vinhos.

Os produtores da Serra Gaúcha estão otimistas. A expectativa entre eles é a de que o clima quente e seco que fez nas primeiras semanas da colheita favoreça a produção de frutas mais doces, com maior teor de açúcar, e com bom potencial para vinhos e sucos. O tempo frio de agosto e setembro do ano passado atrasou em alguns dias o início da safra, mas isso não deve afetar a perspectiva do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin) de uma colheita entre 600 e 700 milhões de quilos da fruta no Rio Grande do Sul em 2014. A safra de 2013 foi de 611 milhões de quilos. Enfim, a expectativa de quem visita a Serra Gaúcha é encontrar festa e colheita farta, mas nem sempre foi assim.

Em 1875, a chegada dos primeiros imigrantes italianos era marcada por sentimento de medo e incerteza. Na Itália, a quase totalidade dos imigrantes que rumavam para a aventura no Brasil se constituía de trabalhadores rurais, gente sem um teto próprio que vivia precariamente, em terras arrendadas. Poucos tinham um título de propriedade. Pelas estimativas, mais de 70% eram analfabetos, muitos estavam subnutridos e grande parte sobrevivia na Itália em condições miseráveis. Também não foi nada fácil para aquela gente embarcar no sonho da terra prometida, alardeada pela propaganda do governo brasileiro, que buscava braços para substituir a mão de obra escrava. Durante a travessia do Atlântico, há relatos sempre repetidos de tempestades, falta de higiene e alimentação precária, além de mortes e corpos ao mar.

Já no Brasil, a viagem até as colônias de Conde d’Eu e Dona Isabel, no nordeste do Rio Grande do Sul onde atualmente estão localizados os municípios de Garibaldi e Bento Gonçalves, demorava até oito dias. Nas colônias, os imigrantes eram alojados em barracões até se instalar em seus lotes. Só então iniciavam uma agricultura de subsistência, cultivando milho, trigo e alguns pés de uva trazidos na bagagem. No começo, o vinho era fabricado apenas para consumo familiar. Aos poucos, porém, o negócio foi prosperando. Passadas as primeiras safras, que garantiam a subsistência dos colonos, começaram a surgir os excedentes.

Em 1883, o cônsul italiano em Porto Alegre relatou: “A videira cresce de modo surpreendente. Já no segundo ano dá uva e no terceiro a colheita é abundante”. Era a concretização do sonho de fazer a América. Na atualidade, 139 anos após a chegada dos primeiros colonos italianos na serra, o Rio Grande do Sul se destaca como o maior produtor de uvas para processamento no país. A produção é feita principalmente em milhares de pequenas propriedades, com média de 15 hectares, com pouco mais de 10% dessa área ocupada por vinhedos.