Música

Pelas bandas do Planalto, pop, ska, jazz, rap, samba, e rock

Duas centenas de grupos mandam ver na capital federal. E o celeiro cultural só não produz mais por falta de espaço

Gerdan/Porão do Rock

Festival é do Porão é um dos celeiros musicais da cidade

Em Brasília, o cotidiano do produtor Luiz Eduardo Alf chama a atenção de muita gente. Alf é um dos criadores do festival Porão do Rock, cuja missão é garimpar novas bandas e apresentá-las ao mercado fonográfico. Como ele, o ex-estudante de Física Ricardo Silva, o Frango, tem por rotina a falta de rotina: ora viaja o país trabalhando como engenheiro de som para artistas diversos, ora se apresenta como vocalista da banda Galinha Preta. Alf, 40 anos, e Frango, 36, representam uma personalidade diferente para quem só vê a capital como centro de órgãos públicos, habitado por servidores e frequentado por interessados nos três poderes.

São pessoas que incrementam o cenário musical com novidades que, constantemente, viram sucesso no restante do ­país. E cada dia maior, mais difundido e de um público muito diversificado, inclusive pessoas que dividem as obrigações dos gabinetes de dia com apresentações na noite.

O jornalista Luiz Gustavo Rabelo, o Luizinho, sai de casa todo dia para dar expediente na assessoria de imprensa do Ministério da Defesa. Depois, dá lugar ao roqueiro, vocalista das bandas Geriatric Blues Band e a Cloning Stones. Concursado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e cedido ao Executivo, Luizinho faz ­shows desde os 15 anos. E não abre mão dessa segunda atividade. “É minha cachaça.”

Sara ApazaSegunod emprego
A Geriatric Blues Band e seus integrantes: prazer de tocar sem a pressão do cachê

Alf, Frango e Luizinho possuem em comum ser crias de uma marca registrada da capital, quando surgiu o boom das bandas de rock e grupos como Legião Urbana, Plebe Rude ou Paralamas do Sucesso estouraram nacionalmente. O Paralamas surgiu no Rio, mas tem o DNA de Brasília, onde Herbert Vianna, filho de militar, e Bi Ribeiro, filho de diplomata, arranharam seus primeiros acordes. O movimento atravessou com menos intensidade os anos 1990, e nos últimos dez anos tem dado sinais de crescimento,.

Conforme números registrados por produtores da cidade – e alterados constantemente –, existem quase 200 bandas no Distrito Federal. O ritmo que predomina ainda é o rock, mas estilos como o pop, eletrônico, ska, jazz, hip hop e até samba e grupos de choro também fazem sucesso. Com nomes curiosos, exóticos e engraçados, os grupos proliferam em bares e eventos da região central e das 31 regiões administrativas do Distrito Federal, como Taguatinga, Ceilândia, Santa Maria, Samambaia e Águas Claras.

Uma onda de festivais, que exigem preparação, ensaios, criatividade autoral e pegada profissional, contribuiu para essa fertilidade. Um dos mais importantes, o Porão do Rock, é realizado há 14 anos e reuniu público estimado em mais de 40 mil pessoas no ano passado. “O momento voltou a ser bom. Prova disso é que a cada edição do festival encontramos bandas boas que não conhecíamos. O problema ainda é o mesmo observado em outros locais: o pessoal se destaca e acaba saindo para o Rio de Janeiro e São Paulo, mas o início continua sendo o Distrito Federal”, diz Alf, que integrou o Raimundos na década de 1990. A baiana Pitty despontou nacionalmente a partir de apresentação em Brasília, em uma das edições do festival. Assim como a banda brasiliense Móveis Coloniais de Acaju, hoje projetada nacionalmente.

Modelos alternativos

Bandas surgidas na última década usaram meios criativos para se formar e tocar a vida, apoiadas na internet e das redes sociais. A Móveis Coloniais de Acaju foi formada em 1998 por dez artistas. O grande número de integrantes contribui para a pluralidade do som e das referências musicais do grupo, que tem em comum o amor por Brasília. “Nosso vocalista André costuma dizer que a cidade é a grande inspiradora da banda”, diz o produtor Ofuji.

Com 15 anos de estrada, um DVD e três CDs lançados, a banda alia instrumentos como sax, gaita, flauta e trombone a guitarra, baixo, teclado e bateria. “É para quem gosta de música e quer se divertir”, define o saxofonista Paulo Rogério.

Já a Galinha Preta, do vocalista Frango, criada em 2003, tem no som e nas letras uma pesada crítica social. As canções costumam ter duração de um minuto e, sempre, uma história inusitada. Esse tempo remete ao início da formação do grupo, quando seus integrantes divulgavam suas crias por e-mail – que só suportava anexos de até 1 megabit. “Era o que o Hotmail (provedor mais utilizado em 2003) conseguia suportar”, lembra Frango, que se prepara para lançar CD comemorativo dos dez anos. A capacidade de downloads e uploads já aumentou bastante, mas parece que tanto a banda como o público já se apegaram ao formato curto e grosso.

Também conhecido entre os brasilienses, o grupo Sexy Fi tem estilo mais voltado para o indie-eletro, sem se desgarrar das raízes do rock. O primeiro CD foi gravado em Chicago, nos Estados Unidos, produção independente dos integrantes, e está disponível na internet desde 2012. A banda tenta buscar, até hoje, meios de resistir em cena sem uma gravadora.

O CD foi lançado num evento dançante intitulado Festa na Casa dos Amigos. Outra iniciativa foi o clipe Pequeno Dicionário das Ruas, bancado pelo sistema crowdfunding, por meio do qual os fãs financiam os ídolos em troca de benefícios previamente combinados.

Pedro França/DivulgaçãoGalinha Preta
O grupo Galinha Preta, músicas de um minuto e crítica social

A Geriatric Blues Band completa este ano 18 de estrada. Como sugere o nome, possui integrantes mais velhos e é especializada em blues. E faz sucesso na cidade mesmo sem contar com rotina profissional: todos ganham a vida com seus outros empregos. Luizinho conta que embora a atividade não seja a primeira ocupação dos integrantes, há dez anos o grupo faz apresentações autossustentáveis. “Costumo dizer que não pagamos mais para tocar. E não nos dedicamos mais porque temos as outras atividades”, salienta.

Foi uma forma de nos divertirmos que permaneceu e agora está atingindo a maioridade”, brinca o saxofonista Paulo Coelho, administrador de empresas. Aos 63 anos, com dois netos, Coelho reconhece que existe muita gente talentosa no meio, mas acha que, apesar do crescimento dos grupos, Brasília ainda não possui casas noturnas suficientes para que as pessoas façam uma carreira consolidada na cidade.

No nosso caso, não temos preocupação com o mercado, mas sabemos que há talentos despontando”, acentua. Ele credita essa boa safra ao fato de a capital ter boas escolas, como o Clube do Blues ou a Escola de Música de Brasília. “Temos músicos que se formaram aqui e hoje tocam com as melhores bandas do país, como os guitarristas Celso Salim e Dillo Daraújo.”

Capital da música

Em meio a esse caldeirão cultural, há quem considere impróprio o apelido de capital do rock dado à cidade. “Brasília, hoje em dia, está mais para capital das bandas, da formação de grupos de jovens de vários estilos. Prefiro dizer que, por congregarmos pessoas de todos os estados brasileiros, vivemos uma efervescência musical, mesmo ainda tendo o rock como a primeira coisa que vem à cabeça da maioria”, observa o produtor cultural Carlos Moreira, que hoje agencia cinco bandas de Taguatinga.

Essa coisa de definir a cidade como capital de um determinado estilo musical depende muito do que está na moda. Inclusive porque temos também muitos talentos artísticos individuais”, diz o musico Eduardo Rangel. Ele foi vencedor do 7º Prêmio Sharp de Música (atual prêmio da Música Brasileira), teve músicas gravadas por vozes do naipe de Edson Cordeiro e Renata Arruda e está lançando um álbum com participação de Leo Gandelman, Kiko Pereira e Torcuato Mariano.

O boom dos anos 1980 serviu para estimular a criação dos grupos, mas não os atrapalha, nem leva a comparações com a época, em que o país vivia seu processo de redemocratização e as próprias bandas compunham um ambiente de transformações. “O pessoal dos Paralamas e da Legião são referência para nós, mas sabemos que o tempo era outro”, afirma Frango.

Diego Bresani/Estúdio California/DivulgaçãoCidade na veia
Móveis Coloniais de Acaju, pluralidade do som e cidade como inspiracão

Os mais antigos, por outro lado, não escondem uma ponta de orgulho com as novas gerações. “Festivais como o Porão do Rock ajudam a criar uma integração entre as antigas e novas gerações de roqueiros. A forma como nesses eventos o pessoal se aproxima de nós, sempre respeitosa e bacana, para falar sobre como se espelharam nos Paralamas para começar a tocar já diz tudo”, revela João Barone, baterista do Paralamas, que tem parentes e frequenta bastante a cidade, onde se iniciou musicalmente.

O festival reúne todos os anos jovens do país inteiro, a partir de uma iniciativa conjunta das produtoras For Rock Promoções e G4 Produções e de 15 bandas de Brasília. Sediado na área comercial da Quadra 207 Norte, no Plano Piloto, o local conhecido como Porão do Rock oferece várias salas de ensaio para bandas, desde 1994. Ali interagem artistas de várias idades e estilos. “À medida que crescia a presença de músicos no espaço, era inevitável que a troca de ideias fosse dar origem a algo maior e mais representativo e assim, nasceu o festival”, conta o músico Murilo Santos, que acompanha os trabalhos desde o início.

 

Segundo ele, o festival é importante para a cidade por mostrar-se como um movimento que desenvolve a cena musical independente. “Durante os dias em que são realizados os shows, a galera se ­reúne para criar estratégias, de forma a criar condições profissionais e de desenvolvimento de toda uma cadeia produtiva da música independente e de revelação de novas bandas e artistas.”

Um sucesso recente, até porque já tocou com várias dessas bandas, é a vencedora da edição de 2012 do programa The Voice Brasil, da TV Globo, Ellen Oléria. Brasiliense, ela conhece bem os percursos pelos quais é preciso passar para se chegar ao estrelato. “Temos aqui músicos de qualidade. Acredito que por não possuirmos o atrativo do mar, os adolescentes desde cedo se enfurnam em estúdios. É uma pena que sempre vão embora porque ainda não conseguem projetar-se nacionalmente”, reclama a cantora, para quem isso acontece por que a produção de eventos na capital não dá conta da demanda: “Falo de eventos contínuos, que criem um espaço permanente de exposição da boa e variada música brasiliense”. E porque tudo em Brasília começa e acaba muito rápido, sem dar tempo e chance para o público e para os artistas.

O secretário de Cultura do Distrito Federal, Hamilton Pereira, garante que o governo local tenta fazer sua parte, mas reconhece que o trabalho ainda está no início: “Esses grupos despontam como reflexo da própria cidade, que é espelho cultural do país. O governo apoia, mas sabemos que é preciso bem mais. Temos pautada uma política de diálogo com a sociedade que venha a permitir uma ação cultural mais ampla, com ampliação dos espaços, apoio a artistas e, sobretudo, para propiciar leque maior de opções ao público”, argumenta. Para Frango, do Galinha Preta, o governo local até estimula os eventos, mas falta uma mudança de cultura também por parte dos próprios músicos. “Banda é estrada, é luta, é correria. E a galera precisa ter mais consciência disso.”