Perfil

Dorival Caymmi, o homem do mar, não sabia nadar

Acontece que era baiano e, como ele mesmo disse, saía 'para ver as coisas'

Arquivo Agência A tarde/AE

Compositor completaria 100 anos em 30 de abril

Compositor e cantor das coisas do mar, do mundo dos pescadores, Dorival Caymmi não sabia nadar. O autor de Suíte dos Pescadores, Noite de Temporal, É Doce Morrer no Mar, O Vento, A Jangada voltou Só, Promessa de Pescador, Dois de Fevereiro preferia manter os pés em terra firme. A revelação causou surpresa ao jornalista e pesquisador Ayrton Mugnaini, que o entrevistava, nos anos 1990. A neta Stella Caymmi também escreveu a respeito em livro de 2001 e que será relançado este ano pela Editora 34.

Caymmi admitiu a Stella: “É verdade, não sei nadar nem pescar (risos). Mas isso não tem muita importância. Eu busco o mar fora do mar. Aí entram a imaginação, e também a observação. Eu tive amigos pescadores. Nasci na classe média e recebi boa instrução. Sou um homem urbano, sempre fui. Acontece que eu saía e via as coisas”. A partir das cenas reais, corriqueiras, o compositor explicava que era preciso ter “uns olhos especiais” para ver a música, abstrata. “Assim eu primeiro vejo a música. Depois a absorvo e logo após a transformo em canção.”

Ele completaria 100 anos em 30 de abril – nasceu em Salvador, às 22h50. Foi até os 94, espalhando melodias sobre o amor, compondo o universo de sua Bahia e derramando sambas-canção. Também são de Dorival Dora, Marina, Não tem Solução e Sábado em Copacabana.

Foi em Copacabana, no apartamento onde morava, que ele morreu, em 16 de agosto de 2008 (11 dias depois, morreria Stella Maris, sua companheira por quase sete décadas). Setenta anos antes, o baiano havia pegado “um Ita no Norte”, conforme conta em uma de suas canções, e do Rio de Janeiro não saiu mais. As primeiras andanças pelo Rio – instalou-se em uma pensão no centro – ajudaram a completar músicas iniciadas na Bahia, como O Mar,A Lenda do Abaeté e aquela que o tornaria famoso, O que é que a Baiana tem?, pela voz, mãos e gestual de Carmen Miranda.

A música apareceu no filme Banana da Terra, de 1939. Foi a primeira vez que a Pequena Notável surgiu vestida de baiana, em uma escassa imagem que sobreviveu ao tempo. E não era para aparecer, já que a canção escolhida seria Na Baixa do Sapateiro, de Ary Barroso – não entrou porque houve desacordo quanto a valores. Ary bufou, atacou Caymmi e pediu desculpas tempos depois. Em 1958, curiosamente, foi lançado o disco Ary Caymmi/Dorival Barroso: um interpreta o outro, com os dois na capa como se fossem pescadores.

Travessia

Em livro de memórias publicado em 1982, o músico­, cantor e produtor Aloysio de Oliveira conta: “Esse incidente mudou definitivamente o destino de três pessoas: o de Caymmi, o da Carmen e o meu. O Caymmi conheceu o seu primeiro sucesso. A Carmen se apresentou pela primeira vez de baiana no Cassino da Urca e foi contratada para a Broadway. E eu, com o Bando da Lua, que se apresentou pela primeira vez junto com a Carmen no Brasil, também parti para os Estados Unidos. (…) Graças ao Ary Barroso”.

Foi um confluência marcante: a letra altamente pic­tó­rica de O que é que a baiana tem? vivida pela persona certa, a cantora cinematográfica Carmen ­Miranda, que com seus trejeitos difundiria internacionalmente o tipo e a composição, arremessando a arte de Caymmi praticamente em sua estreia, em 1938, em um turbilhão multimídia”, diz, em texto, o pesquisador Tárik de Souza. Para ele, o compositor baiano participou ativamente de uma transição na música brasileira.

Dorival Caymmi colocou-se no epicentro da travessia de uma canção de extração folclórica que ele tão bem lapidou para o sincopado buliçoso das ruas com ecos de samba de roda e o samba-canção já urbanizado, modernista, pré-bossa nova.”

Em seu primeiro disco, de 1959, João Gilberto incluiu Rosa Morena, de Caymmi. Em entrevista ao próprio Tárik, ele chegou a afirmar: “Meu sonho é chegar a essa perfeição de ser o autor de uma ciranda cirandinha, uma coisa que se perca no meio do povo”.

A possível busca da perfeição deu a Caymmi uma injusta fama de preguiçoso, pela demora ao compor músicas. “Essa calma dele fez criar um método de compor que levava anos”, observa o pesquisador Jairo Severiano. Assim, acrescenta, Dorival Caymmi tornou-se o dono de menor repertório entre os grandes compositores brasileiros. A musicografia reunida por Stella Caymmi aponta 120 obras.

Compositor do primeiro time, como Pixinguinha, Noel Rosa e Tom Jobim. E autor de uma escola única, sem antecessores nem sucessores. “Caymmi não tem filhos musicais. Os três filhos (Nana, Dori e Danilo) são dedicados à música, mas não são caymmianos. Dori, por exemplo, é mais jobiniano.”

Ele destaca ainda a atemporalidade da obra de Caymmi, pela qual se apaixonou desde que o ouviu em uma temporada na Ceará Rádio Clube, em 1941. E lembra que, apesar se ter como marca as chamadas canções praieiras, o compositor também criou os sambas “corridos”, como Acontece que Eu sou Baiano, e vários sambas-canção urbanos. “Ele não era apenas um cantor regionalista fora do comum. Fez sambas absolutamente modernos, e de certa forma eu o considero um dos precursores da Bossa Nova”, diz Severiano, que se tornou amigo de Caymmi e produziu um de seus discos, o de 70 anos de idade do compositor. Define o amigo com três palavras: “absoluta tranquilidade” e “simplicidade”.

No livro de Stella, ele conta sobre a gravação de Marina, em 11 de julho de 1947. Caymmi não quis regional com flauta, como era comum. Pediu dois violões, cavaquinho, bandolim e pandeiro – e a participação de um “instrumentista solitário”, que trabalhava numa vara judicial. Um tal de Jacob do Bandolim.

Uma das canções mais conhecidas de Caymmi, Saudade da Bahia, ficou escondida durante mais de dez anos, desde 1947, quando foi composta em uma tarde, em um bar do Leblon. “Sua melodia melan­cólica e sua letra confessional o desnudavam. Talvez seja a música que mais o revele, daí sua resistência em mostrá-la”, escreveu Stella. Mas não teve jeito: Aloysio­ de Oliveira, que já conhecia a canção, precisava de uma música forte para lançar depois do sucesso de Maracangalha. Insistiu e convenceu Caymmi.

O poeta e antropólogo Antonio Risério, em ensaio de 1993, reeditado em 2011, acrescenta outras definições ao compositor: “Um mulato ensolarado, em vista de coqueiros e gaivotas, poetizando quase sempre do ponto de vista da praia, quase nunca da proa”. O que trata da beleza feminina misturando malícia e delicadeza. “Um cantor dos prazeres da comida, do corpo feminino e da natureza litorânea.” O poeta do remelexo. E que não se descola do chão, nem busca ser transcendental. “É o cantor das aparências, da expe­riência imediata, numa poesia a olho nu.”

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