américa latina

Cuba, em fase de revisão, busca novas possibilidades

A ilha ainda tem no turismo sua principal fonte de receita, mas precisa se reinventar para superar a pobreza e oferecer perspectivas aos que não têm culpa pelos 51 anos de bloqueio dos EUA

Alejandro Ernesto/EFE

Acompanhado de turista argentina, músico cubano canta na orla de Havana

“Você faz como Che: anota tudo!”, diz um senhor durante viagem de Santiago de Cuba a Havana. Seria o último destino, depois de percorrer 3 mil quilômetros por cidades grandes, médias, pequenas, do litoral e do interior da ilha, sempre em casas de famílias. A tensão de um voo turbulento em uma aeronave antiga da Cubana Aviación, durante tempestade caribenha, encurta a conversa. Mesmo assim, ele estica o pescoço sobre as anotações e pergunta: “Este ‘outro mundo’ que você descreve é Cuba?”

Tratando-se de um país pobre, com renda per capita bruta de pouco mais de U$ 5 mil, mas com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) elevado, de 0,780, em uma escala que vai até 1, é evidente: não é um “mundo normal”. A ilha caribenha ocupou a 59º posição no ranking de desenvolvimento humano – o Brasil, por exemplo, com renda per capita de US$ 10 mil, ficou em 85º. Isso porque há décadas resiste vitoriosa no combate à miséria, à fome e ao analfabetismo. A expectativa de vida é de 79,3 anos (74,6 no Brasil) e a média de tempo de estudo é de 10,2 anos, maior que a da Grécia (10,1), que tem renda per capita de U$ 20 mil.

É certo, porém, segundo alguns anfitriões, que há longo caminho para se alcançar plena igualdade social, e é incerto se o rumo do país está aproado para esse destino. Os militares, por exemplo, continuam formando uma classe privilegiada, com salários maiores, casas confortáveis e hospitais exclusivos. O descontentamento entre os mais jovens é explícito. Muitos têm como objetivo deixar o país. Por isso, e pelo preço do passaporte – inatingível para a renda dos cubanos, toda comprometida com a alimentação – não é incomum visitantes saírem da ilha com uma coleção de pedidos de casamento.
“No seu país, se eu estudar e trabalhar eu vou conseguir ter as coisas, não vou?”, pergunta um garçom, em Santiago. Formado em hotelaria e com especialização em gastronomia, ele coleciona duas tentativas de fuga por mar, ambas abortadas pelo medo. “No Brasil, isso ainda depende de detalhes como de onde você veio, a cor de sua pele, e quanto sua família conseguiu acumular antes de você.” Ele não acredita.

O encantamento com um mundo supostamente diferente para além da ilha e a dificuldade dos nativos em adquirir bens de consumo pelo mercado formal fazem com que o turista seja abordado a cada passo. E aí começam pedidos e ofertas de serviços. Boa parte das conversas parece ser movida a algum interesse. Os jineteros, pessoas que se dedicam a “negócios” com turistas, são quase reconhecidos como profissionais. A prostituição, proibida desde a revolução, é evidente a ponto de parecer tolerada.

Detalhes de um país com dupla economia, um dos reflexos do embargo econômico. Com a necessidade de abertura para o turismo – como alternativa para o chamado “período especial”, depois do fim da antiga União Soviética – Cuba criou, há dez anos, uma moeda própria para o setor do turismo, o peso cubano convertível (CUC). Para manter a paridade com o dólar americano, ela vale 25 vezes mais que o peso cubano, com o qual o trabalhador é pago e paga as contas do cotidiano.

Sarah Fernandes/RBANegócios particulares
O governo permite que famílias abram pequenos estabelecimentos, aluguem quartos ou ofereçam serviços

Os salários, mais ou menos planificados, variam de 200 a 700 pesos cubanos, ou 8 a 28 CUCs. E se no passado os moradores da ilha compravam tudo com a chamada moeda nacional, em preços compatíveis com seus ganhos, hoje eles passam a ter de consumir cada vez mais em CUCs, principalmente produtos de higiene e roupas, quase artigos de luxo. Em outubro, o governo de Raúl Castro anunciou que haverá a unificação das moedas.

Ainda não foi estipulada data para iniciar o processo. A primeira fase alcançará o setor empresarial e as instituições estatais, visando estimular à produção de bens e serviços e à substituição de importações. “Por si só, a unificação monetária e cambial não é uma medida que resolve os problemas da economia, mas sua aplicação é imprescindível para garantir  o restabelecimento do valor do peso cubano e de sua função como dinheiro”, diz em nota o jornal oficial, o  Granma.

A necessidade de consumir é crescente. Nos primeiros anos da revolução foi feito um acordo entre o governo e a população: os salários teriam de ser mantidos baixos para que pudesse haver outros investimentos, mas em troca o governo daria ou subsidiaria produtos básicos pela chamada livreta, um caderninho em cujas páginas há um controle mensal de produtos que podem ser retirados nas “bodegas” (mercearias) do Estado.

“Na época da União Soviética, entre os anos 1960 e 1990, tínhamos duas livretas. Uma era só para comida e outra para roupas e produtos de higiene”, conta o taxista Roberto, de 52 anos. A URSS mantinha com o país de Fidel Castro um regime de comércio subsidiado que dava algum fôlego à economia da ilha. Com seu fim, após 1990, ficou difícil. O embargo norte-americano pune comercialmente países e empresas que negociem com Cuba seus principais produtos de exportação, como derivados de cana-de-açúcar e tabaco. A permissão para a entrada de empresas e hotéis com expertise em turismo ajudou a remediar, mas é pouco para um país isolado há cinco décadas, apesar de várias resoluções dos países membros das Nações Unidas a favor do fim do embargo, solemente ignoradas pelos Estados Unidos.

Sarah Fernandes/RBAAtraso
A maior região produtora de tabaco – um dos principais itens de exportação da ilha – voltou a trabalhar com tração animal

“Racionávamos energia ficando 12 horas sem e quatro horas com por dia. Aí ficamos com uma livreta só, para alimentação.” Hoje eles recebem mensalmente, por pessoa, arroz, feijão, óleo, açúcar e café, além de oito ovos a cada 45 dias, um pacote de absorvente por mulher a cada três meses e uma barra de sabão. As crianças ganham um litro de leite por mês. Frango e peixe também são distribuídos, quando há possibilidade. “Uma coisa é você nascer miserável. Outra é ter vivido bem e de um dia pra outro se tornar muito pobre”, diz Roberto.

Outdoors do governo estampam que “as mudanças são para mais socialismo”. O país está de fato mudando rápido, mas ninguém arrisca apostar se para melhor ou pior. Uma das bases das mudanças é a possibilidade de os cubanos abrirem negócios particulares e oferecerem serviços. São pequenas barbearias, quartos para aluguel, carros transformados em táxi, cafés improvisados nas janelas das casas e restaurantes nas salas de estar. A concorrência por turistas, porém, é um fator de desigualdade.

Um taxista ganha, em uma corrida do aeroporto ao centro de Havana, o mesmo que um médico em um mês de trabalho: 25 CUCs. É possível observar, assim, o germe do capital privado e, por tabela, da pobreza. Desembarcar em uma rodoviária em qualquer cidade significa ser cercado por famílias que disputam insistentemente a oferta de todo tipo de serviço. “A vida é muito apertada e nós só conseguimos viver melhor porque temos esse negócio com turismo”, conta a economista Luiza, de 66 anos, que aluga um quarto em sua casa em Trinidad, pequena cidade litorânea a 360 quilômetros da capital, Havana. Como a cidade é muito turística, quase todos os serviços já se tornaram particulares e a concorrência entre os cubanos, desleal.

Sarah Fernandes/RBAchamariz
Os velhos carros e a arquitetura de Havana ainda são um ponto forte do turismo

“Com as gorjetas ganho mais que meu filho, que é médico. Aqui se estuda por gosto e pela importância do trabalho”, conta Flanco, guia turístico na pequena Vinãles, no norte do país. A cidade é a principal produtora de tabaco, em terras que foram desapropriadas de empresas norte-americanas e cedidas aos camponeses na reforma agrária, primeira ação do governo revolucionário.

Incoerências

As contradições estão por toda parte: saúde e educação são totalmente públicas, gratuitas, para todos os 11 milhões de cubanos. A assistência social para doentes e vítimas de desastres funciona muito bem. Mas internet e TV a cabo em casa são proibidas, mesmo para quem poderia pagar. A imprensa é controlada. A redação do Granma fica em área militar.

A solidariedade, no entanto, parece ser traço característico dos cubanos. E componente curricular escolar. O principal livro da escola primária, O Mundo em que Vivemos, propõe entre suas atividades que os alunos verifiquem “se alguém da turma não tem lápis, divida o seu”, ou que “converse com seu vizinho e pergunte como ele vivia quando criança”. E é essa solidariedade que, segundo os cubanos, justificam suas baixíssimas taxas de criminalidade, quase inexistente no país, mesmo havendo grande desigualdade entre eles e os turistas. “Temos uma educação pautada na comunhão e no humanismo. É por isso que você pode caminhar sozinha e tranquila por aqui”, diz o editor de um jornal local de Santiago.

Perto dali, a estudante Yosmila, de 8 anos, pede que faça uma foto dela com os três irmãos. A família, sem negócios com o turismo, é muito pobre e não tem sequer um retrato dos filhos. “Chame sua mãe para passar seu endereço que eu envio a foto”, sugiro. Ela mesma faz questão de escrever, com desembaraço: “Rua Banneras, 22, entre Havana e Maceo”.

O índice de analfabetismo da população acima de 15 anos é de 0,2% – no Brasil, essa taxa varia entre 3,2% (DF) e 22,5% (AL), sendo a média nacional de 8,5%. Os salários de professores estão entre os melhores do país, inclusive os de aposentados. As crianças estudam dos 5 aos 15 anos, obrigatoriamente. Após a alfabetização, todo foco das aulas está nas ciências humanas. A universidade é optativa, mas acessível para todos. O ingresso se dá por uma prova – as menores notas ficam com os cursos menos procurados. Todos têm uma vaga garantida e que, como estudaram na mesma escola, concorrem de maneira mais justa.

Sarah Fernandes/RBACrianças espertas e alfabetizadas
Onde entrego a foto? “Rua Banneras, 22, entre Havana e Maceo”

Mayaha Quiros é médica recém-formada, em Havana. Quer se especializar em dermatologia. Antes, passará três anos trabalhando como médica para o Estado, com salário reduzido, em regiões com maior demanda. “A sociedade custeou todo o meu estudo. O mínimo que eu posso fazer é retribuir”, diz. Segundo o livro Cuba apesar do Bloqueio, do jornalista Mário Jakobskind, o investimento maciço do Estado em saúde permitiu que desde 1959 o país formasse 109 mil médicos. Pelo menos 48 mil estão em missões em 58 países, incluindo China, Catar, Argélia, México e agora Brasil.

A política de saúde cubana é de se antecipar a doenças. “Há um médico de família para cada 120 pessoas, no máximo, responsável pelo atendimento básico e por medidas de prevenção. Se há um bebê, é visitado diariamente. Se há um idoso, as consultas também são em casa”, conta Iona Moarison, uma jovem médica escocesa que faz estágio em um hospital especializado em obstetrícia. “Os médicos são bons e bem formados. Será uma grande oportunidade para os médicos brasileiros quando eles começarem a trabalhar no seu país”, disse, desconhecendo que no Brasil ainda se convive com outra cria da desigualdade: o preconceito.