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A vida fora dos trilhos. A classe de Raphael Martinelli

Perto dos 90 anos, o ferroviário, remanescente do antigo CGT, segue fazendo o que mais gosta: criticar o poder. E não tem dúvida de que mataram Jango

REGINA DE GRAMMONT/RBA

Martinelli (em sua antiga cela) escapou da prisão no momento do golpe, mas não da tristeza com a falta de resistência: “Foi a minha maior decepção como revolucionário”


Raphael Martinelli conta que era bom de bola quando garoto. Jogou em times da várzea paulistana e fez vários gols, inclusive de “chaleira”, até que a vida de ferroviário e sindicalista tomasse todo seu tempo. “Sabe o que é ficar invicto um ano na várzea?”, orgulha-se. Habilidoso, apanhava dos defensores adversários, e às vezes a família invadia o campo para defendê-lo. “Acabava o jogo”, lembra. A posição nos tempos de boleiro não poderia ser outra: ponta-esquerda. Se a política fosse um time de futebol, ele também seria escalado ali. Militante comunista desde adolescente, aos 89 anos, quatro filhos, sete netos e três bisnetos, ele ainda se inflama ao falar de alguns temas.

A reação é de um descendente de italianos quando se pergunta, por exemplo, sobre um surrado argumento, sempre citado pelos defensores do golpe de 1964, de que havia uma “república sindicalista” em formação no governo João Goulart. “São umas bestas quadradas! Não tinha nada disso. Todo mundo foi enganado. Estávamos continuando a luta pelas reformas de base.”

Eram as reformas anunciadas por Jango e combatidas por setores conservadores. Para Martinelli, essa pauta continua de pé. “As reformas estão na ordem do dia até hoje, como a reforma agrária. Nós fazíamos greve, mas o Jango era minoria… Até hoje. Não aprova. Os caras matam. Pra mexer na terra, aqui, precisa ter peito.”

Sindicalista do ramo ferroviário desde 1952, Raphael Martinelli é um dos três remanescentes do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), principal entidade sindical do início dos anos 1960, dissolvida após o golpe, e formada principalmente por dirigentes sindicais ligados ao PCB e ao PTB, partido de Jango. Os outros são o eletricitário Clodsmidt Riani, ex-deputado, e o aeronauta Paulo de Mello Bastos.

Suas raízes são inconfundivelmente operárias: fundidor, torneiro-mecânico, aprendiz, ferroviário. Começou a trabalhar “com 12, 13 anos”, como ajudante em uma indústria de anilina, depois em uma vidraria. “Na minha cabeça estão os fornos até hoje”, lembra. Depois foi ser ajudante de ferreiro em uma fábrica de artefatos, até chegar, em 1941, à companhia São Paulo Railway, como “aprendiz escriturário de quinta categoria”.

Ali fez carreira e seguiu os passos do pai, Máximo, que era pintor – e o levava, ainda moleque, para ajudar a pintar a sede do Sindicato dos Ferroviários. E continuou sua militância no Partidão. Em 1958, com 9.112 votos, foi segundo suplente de deputado federal (pelo PTB, pois o PCB estava na ilegalidade), logo atrás de Menotti Del Picchia, que teve 9.363. Martinelli desconfia até hoje do resultado, mas diz gostar da obra do poe­ta – e de declamar. Quatro anos depois, sairia candidato novamente, mas conta ter sido barrado por Luiz Carlos Prestes.

Dúvida histórica

Amigo de Goulart e da família, Martinelli fala com carinho do ex-presidente – que conheceu quando Jango era ministro do Trabalho de Getúlio Vargas –, mesmo fazendo uma distinção: “Eu era comunista, ele era latifundiário”. Mas preocupado com os problemas sociais do país e dono de “um grande coração”.

Coração que teria causado a morte de Jango, um cardiopata, em 6 de dezembro de 1976. O sindicalista é um dos que sustentam a tese de envenenamento do político. Em novembro, os restos mortais de Jango foram exumados e levados a Brasília para tentar tirar essa dúvida histórica. Voltaram a São Borja (RS) justamente em 6 de dezembro. Martinelli estava lá, a convite de João Vicente, filho do ex-presidente.

“Eu falo isso há anos. Ele (Jango), o JK (Juscelino Kubitschek), o (Carlos) Lacerda… Acho que até o Costa e Silva”, comenta, citando dois políticos de tendências diversas que morreram em 1976, assim como Jango, e em 1977, e o segundo general-presidente da ditadura, morto em 1969. A suspeita se estende ao antecessor, Castello Branco, vítima de acidente em 1967.

Em 31 de março de 1964, Martinelli estava em uma reunião no Rio de Janeiro, para onde se mudara em 1959, para comandar a Federação Nacional dos Ferroviários e “tirar a fama de pelego” da entidade. Recorda-se da campanha pela unificação das tabelas salariais da categoria (“Aqui em São Paulo ou no Norte, é tudo ferroviário”) e de muitas outras greves, inclusive a chamada greve da paridade, pela equiparação de vencimentos de portuários, marítimos e ferroviários com os equivalentes militares. “Eles ganhavam 50% a mais.”

Menos de três meses antes do golpe, um congresso com 400 delegados discutia reivindicações como a federalização das ferrovias. Martinelli lembra de Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, levando mulheres para jogar flores nos ferroviários, “foi um troço de arrepiar”. E o congresso, claro, foi aberto e encerrado ao som de A Internacional, hino do socialismo revolucionário. O ex-sindicalista, sem recear polêmica, é claro ao defender o papel do líder soviético Josef Stalin, cuja orientação política era seguida pelo PCB no Brasil: “Se não fosse ele, estaríamos dominados pelo nazifascismo”.

Martinelli escapou da prisão no momento do golpe, mas não da tristeza com a falta de resistência. “Foi a minha maior decepção como revolucionário. Não teve reação”, diz. “Soube depois que o oficial que tinha de dar a ordem (para contra-atacar) desmaiou.” Algum alento vem ao lembrar que sua categoria chegou a fazer três dias de greve. Mesmo hoje, Martinelli defende a ferrovia como meio de transporte estratégico, e critica a política do governo para o setor.

Ele passou anos na clandestinidade. Foi expulso do Partidão e ajudou a montar a Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella. Em 1970, “caiu” e foi pego pela Operação Bandeirante, a Oban, em São Paulo. Foram três anos e três meses na prisão. As fotos desta matéria foram feitas no Memorial da Resistência, que abrigou o Deops, órgão da repressão.

Hoje à frente do Fórum Permanente dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo, Raphael Martinelli acredita que as várias comissões da verdade (municipais, estaduais, temáticas) podem dar “cobertura de baixo para cima” à comissão nacional. E tem esperança de que carrascos do antigo regime sejam punidos um dia. “A gente espera que a democracia evolua para que esses homens sejam condenados.”