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O progresso e suas mazelas. Quando a especulação sufoca a cidadania

Trinta mil famílias do terceiro maior conjunto de favelas de São Paulo já foram removidas para os cafundós, enquanto a especulação desfruta de até 1.000% de valorização

Moradora da Favela do Buraco Quente caminha entre o entulho que dará lugar a habitação de melhor qualidade para população de renda maior <span>(Danilo Ramos/rba)</span>Água Espraiada <span>(PAULO LIEBERT/AE/2004)</span>Removida de Água Espraiada, Celina foi morar em Parelheiros <span>(Raoni Maddalena/rba)</span>Edifício construído onde existia a favela
 <span>(lucas bonolo/rba)</span>Um dos edifícios construídos onde existia a favela
 <span>(lucas bonolo/rba)</span>Francisco de Assis Batista veio da Paraíba em 1972 e criou seus filhos no Jardim Edite. Bateu o pé com outros moradores e hoje mora num dos edifícios construídos onde existia a favela
 <span>(lucas bonolo/rba)</span>

O entorno do córrego Água Espraiada, que nasce no bairro do Jabaquara e deságua no Rio Pinheiros, na região sul da capital paulista, vem passando por intensas transformações. Cinquenta anos atrás, era um fundo de vale que limitava áreas de chácaras e pequenas casas com o riacho, de águas ainda limpas. Há 45 anos, se iniciou um processo de ocupação que culminou no terceiro maior complexo de favelas da cidade. Há 20 anos, pelo menos 68 núcleos de favelas, abrigando cerca de 80 mil pessoas, estavam instalados ao longo do riacho.

Em 1996, a região ganhou uma movimentada avenida, que levava o nome do córrego. Suas obras começaram na gestão Jânio Quadros (1985-1988), pararam na administração de Luiza Erundina (1989-1992) e foram retomadas e concluídas na gestão de Paulo Maluf (1993-1996), depois de alcançar o título de avenida mais cara do mundo e acrescentar alguns processos por superfaturamento no currículo do ex-prefeito. Em dezembro de 2003, foi rebatizada Avenida Jornalista Roberto Marinho pela prefeita Marta Suplicy.

Desde a instalação da via, a região, onde ainda corre o riacho hoje canalizado, passou por um dos mais vigorosos processos de valorização da cidade. Já não se acha mais metro quadrado próximo de R$ 1.000, como em 1996. Hoje, os negócios imobiliários são fechados entre R$ 8.500 e R$ 11 mil o metro quadrado construído. O último passo do processo de elitização, os leilões de terrenos do Departamento de Estradas de Rodagem (DER), onde ainda estavam cerca de 400 famílias, colocam a cereja no bolo do processo iniciado pela remoção de favelas nos anos 1990. No total, cerca de 30 mil famílias já foram removidas, e outras 10 mil terão o mesmo destino em breve.

O nascimento dessas comunidades remonta ao ano de 1964, quando o então prefeito Prestes Maia sancionou lei determinando a construção da avenida que ligasse a marginal do Rio Pinheiros ao Jabaquara, nas margens do córrego Água Espraiada. Com isso, muitos terrenos de sítios na região foram desapropriados e tiveram sua titularidade entregue ao DER. No entanto, a avenida não foi construída e as terras “sem dono” tornaram-se atrativo para a ocupação de famílias pobres e de imigrantes vindos do interior paulista, de cidades mineiras e da região Nordeste. Algumas novas, outras que consolidavam situações já iniciadas.

Vistas pelo lado de quem lucrou com a valorização, as intervenções são parte da dinâmica social de uma grande cidade. “O que aconteceu na região é o resultado claro do investimento em infraestrutura por parte do Estado, que possibilita à iniciativa privada realizar empreendimentos melhores e maiores, valorizando a região. Não é exclusividade daquele local. É o que ocorre quando há condições para a iniciativa privada investir”, avalia o presidente do Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis de São Paulo (Secovi), Claudio Bernardes.

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Operação urbana

Para quem vivia ali, a região representava melhor acesso a infraestrutura de transporte, mais oportunidade de trabalho, serviços públicos de melhor qualidade, como escolas e unidades de saúde, enfim, direito à cidade. “Eu vim da Paraíba­ em 1972, com minha esposa e quatro filhos, todos pequenos. Fomos morar em uma pensão, mas naquele tempo já era muito difícil pagar aluguel com o salário que eu recebia. Uns amigos que trabalhavam comigo disseram para eu vir para cá. Aqui, nós criamos nossos filhos e construímos a vida: tinha emprego e a gente ia a pé trabalhar”, conta o aposentado Francisco de Assis Batista, de 72 anos, morador do prédio Edite 1, onde ficava uma favela.

A maior parte das famílias que viviam no Jardim Edite teve destino menos feliz.
Muitos receberam R$ 1.500 como indenização e foram viver em áreas de mananciais no extremo sul da cidade. Outros aceitaram ofertas de moradias da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab) e foram viver em Cidade Tiradentes, no extremo leste, em locais construídos a toque de caixa, em uma região com poucas linhas de ônibus, sem asfalto, creche ou unidade de saúde. Houve ainda os que aceitaram passagem de volta para a terra natal.

No período entre 1991 e 1995, tempo que engloba a construção da avenida, a região do centro expandido da capital perdeu 312 mil moradores, de acordo com estudo realizado pela professora titular do Departamento de Sociologia da PUC de São Paulo Lúcia Maria Bógus e por Laura Cristina Ribeiro Pessoa, especialista em Estruturas Ambientais Urbanas pela USP. Enquanto isso, as regiões periféricas – norte, sul e leste – ganharam 504 mil. Segundo elas, o movimento demonstra o processo de “gentrificação”, com a população de uma região substituída por outra de condição econômica mais elevada. O setor privado transformou a região em um local de concentração de prédios de 20 a 40 andares, ao lado das moradias remanescentes de comunidades agora separadas pela avenida.

Em dezembro de 2001, na gestão Marta Suplicy, foi aprovada a Operação Urbana Água Espraiada. As principais diretrizes eram a revitalização da região, com propostas que incluíam a melhoria do sistema viário, com o prolongamento da avenida até a Rodovia dos Imigrantes por meio de um túnel e a construção de viadutos sobre cruzamentos importantes e um ligando a via com a marginal do Rio Pinheiros. Só o último foi realizado.

A lei também previa a prioridade ao transporte coletivo, construção de habitação social e criação de espaços públicos de lazer e esportes. Para o lazer, o único espaço criado após a construção da avenida, com um centro comunitário, quatro quadras poliesportivas e uma pista de skate, foi cedido pelo município ao estado para construção de um pátio de operações do monotrilho. Outra área será o parque linear previsto para as margens do córrego Água Espraiada, de onde serão removidas 8 mil famílias, que prometem não sair sem garantia de receber novas moradias prontas.

As ações de habitação são as que estão mais distantes. Foram definidas 26 Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), mas somente duas áreas foram efetivadas: Jardim Edite, com a construção de cinco torres que formam o conjunto habitacional de mesmo nome, totalizando 252 apartamentos, e Corruíras, que abriga 244 famílias removidas da favela Nova Minas Gerais, ao lado do pátio de trens da estação Jabaquara do Metrô – e que dois meses após a entrega para os moradores já apresentava problemas estruturais.
Outras 11 favelas têm destino incerto. Estão em obras os conjuntos habitacionais Estevão Baião, Iguaçu e Gutemberg, que devem receber moradores dessas comunidades, mas não há definição de em quais ou quando isso vai acontecer.

Celina Lira Rêgo, 56 anos, chegou de Campina Grande (PB) em 1981. Morou 31 anos na favela Comando. No final de 2012, soube que teria de sair. Agora está na região de Parelheiros, distante 25 quilômetros. “Minha casa era tão linda… Não precisavam ter tirado a gente de lá. O monotrilho não passa em cima de onde vivíamos. Foi só para sumir com os pobres mesmo.”

A linha segue todo o trajeto da Avenida Jornalista Roberto Marinho sobre o córrego. No cruzamento com a Washington Luís, um ramal faz uma curva, no sentido ao aeroporto. Foram removidas 400 famílias das favelas Buraco Quente e Comando. O restante do trajeto para o Jabaquara vai por cima de 11 comunidades na região, em que vivem 8 mil famílias, onde será construído o parque linear.

Ali o Metrô, a avenida e a Operação Urbana dão as mãos. E o governador Geraldo Alckmin repete Maluf. O resultado das remoções indenizadas para a construção da Linha 17-Ouro é um grande contingente de pessoas indo viver nas periferias sul e leste e em outros municípios da região metropolitana. Famílias divididas pela política de desmembramento, que não tiveram condições de viver no mesmo lugar.

Os que optaram pelas moradias da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) estão recebendo auxílio-aluguel e vivem em bairros distantes, sem saber ainda onde as casas serão construídas. Para a pesquisadora Dulce Maria Tourinho Baptista, do Observatório das Metrópoles do Departamento de Sociologia da PUC de São Paulo, houve um desvio na política que deveria ser implementada a partir das diretrizes do Estatuto das Cidades. “A operação se resumiu à construção da avenida e a incentivos a empreendimentos imobiliários privados. Pouco se fez pela população mais pobre, excluída da região”, avalia. Dulce considera que a operação urbana tem uma boa concepção, mas sua execução tem servido de subsídio ao mercado imobiliário. “Basta observar o número irrisório de moradias construídas em relação ao número de favelas existentes na região.”

Túnel em xeque

Uma das intervenções da Operação Urbana que foi posta em xeque é a construção do túnel para ligar a Avenida Jornalista Roberto Marinho à rodovia dos Imigrantes, que afeta não só as comunidades que vivem em assentamentos precários, mas a população residente fora das favelas, já que o traçado mais recente do túnel não passa somente por baixo do parque linear. A obra, que tem um traçado previsto de menos de três quilômetros e um orçamento de R$ 3,7 bilhões, é questionada pelo promotor Maurício Ribeiro Lopes, de Habitação e Urbanismo do Ministério Público de São Paulo, por não contemplar o transporte público.

Em julho, com a nova administração, o prefeito Fernando Haddad concordou em não pôr dinheiro no projeto dos antecessores pelas mesmas razões. Haddad afirmou ainda que pretende utilizar uma verba de R$ 2,3 bilhões, que está no caixa da Operação Urbana, na construção de unidades habitacionais. Segundo o líder comunitário da favela Vietnã, João das Virgens da Silva, 39 anos, o fórum tem mantido diálogo com a atual gestão. “Foram anos enfrentando enchentes, falta de infraestrutura, de equipamentos públicos. Agora teremos a intervenção e o povo pobre tem de sair? Não, os moradores têm o direito de permanecer aqui e ser reassentados na área da operação”, defende.

O aposentado Flordísio Cursino de Castro, de 102 anos, foi um dos primeiros moradores da comunidade. Em 1980, construiu uma pequena casa de madeira onde viveu com a mulher e os 12 filhos. Vieram juntos tentar a sorte de sair do aluguel e ter uma casa própria. “Ninguém veio morar aqui por safadeza”, afirma. Ele mudou da Bahia para São Paulo nos anos 1960, e ajudou a construir boa parte das casas do Vietnã. “Mas a melhor de todas é a minha.”