ENTREVISTA

Antropóloga investiga fontes de ciência na intuição nativa dos índios

Pesquisadora constata que, mesmo distante dos meios tradicionais de informação, comunidades indígenas reagem ao aquecimento global, antecipam catástrofes e catalogam tipos diferentes de sol e de chuva

Da aldeia Ashaninka Ipiwtxa, nas margens do Rio Amônia, no Acre <span>(Pedro França/Ministério da Cultura)</span>no Acre <span>(sérgio vale/secom/AgÊncia de NotÍcias do Acre)</span>Antropóloga, professora de Agroecologia do Instituto Federal do Acre, na cidade de Cruzeiro do Sul, há muito tempo leva a sério as práticas das comunidades tradicionais e sua relação com as investigações da ciência. Doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é a primeira brasileira a pesquisar sobre antropologia do clima. 
 <span></span>Aldeia Ashaninka Ipiwtxa, no Acre <span>(Pedro Franca/ministério da Cultura)</span>Criança da aldeia Ashaninka Ipiwtxa, no Acre <span>(Pedro Franca/ministério da Cultura)</span>

Grupos étnicos enfronhados em sua civilização tradicional, primitiva, já adequam suas práticas às mudanças climáticas sem nunca ter ouvido falar do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), da Organização das Nações Unidas (ONU). A informação chega-lhes de forma antes cósmica do que geofísica. Um nativo das Filipinas tentou avisar a população local sobre o tsunami que estava por vir.

Sua tribo protegeu-se nas altitudes; as autoridades urbanas não lhe deram ouvidos… A antropóloga Érika Mesquita, professora de Agroecologia do Instituto Federal do Acre, na cidade de Cruzeiro do Sul, há muito tempo leva a sério as práticas das comunidades tradicionais e sua relação com as investigações da ciência. Doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é a primeira brasileira a pesquisar sobre antropologia do clima.

Ela realizou durante quase cinco anos um estudo pioneiro que trata da percepção das mudanças climáticas por grupos indígenas e comunidades extrativistas na região do Alto Juruá, no estado do Acre. Érika debruçou-se sobre a análise de dois grupos étnicos, os Ashaninka e os Kaxinawá, e três comunidades extrativistas, situadas na Reserva Extrativista Alto Juruá. A linha de pesquisa, denominada também etnoclimatologia, traz informações importantes para entender a cosmovisão indígena sobre o tema e notar, com exemplos concretos, qual é a contribuição dessas populações para a manutenção da floresta e da vida. A pesquisadora está lançando um livro com o resultado de sua tese de doutorado pela editora Mercado das Letras, em Campinas.

O que a inspirou a fazer esse trabalho?
Eu me motivei a pensar sobre o clima aqui na região porque, hoje em dia, os paradigmas sobre esse assunto estão completamente modificados. Queria entender até que ponto os indígenas têm conhecimento disso e o que têm a acrescentar nessa temática. A verdade é que as ciências sociais não estão trabalhando a questão das mudanças climáticas. E ela tem de se voltar pra isso, principalmente a antropologia. Os geógrafos e os engenheiros ambientais falam muito sobre o clima. Mas nós, antropólogos, sabemos que nessas análises falta o olhar do cotidiano. Daí a ideia de trabalhar essa produção de conhecimento com os indígenas e com as populações tradicionais. Onde eu trabalhei a maioria das pessoas não tem acesso a informação da mídia. Então eu pude compartilhar como eles enxergam isso realmente.

O que é antropologia do clima?
A antropologia do clima é um conceito que está nascendo agora. É um olhar dentro da antropologia que busca analisar as mudanças climáticas. Existem poucas pessoas trabalhando com isso, uma delas é uma colega do México, Esther Katz, que pesquisa populações originárias lá, e eu, aqui. O meu desejo é que muito mais gente faça isso, para que possamos montar um mapa dos conhecimentos tradicionais indígenas em todo o Brasil. Mas, claro, há que se tomar muito cuidado porque se trata de uma etnografia somada a uma nova forma de olhar que a antropologia está pegando emprestado das ciências naturais, da geografia física. Em resumo, estamos buscando saber como isso, as mudanças climáticas, está sendo sentido no dia a dia, ou seja, não só nas situações de catástrofe, mas no cotidiano.  

Segundo seu trabalho, os índios do grupo dos Ashaninka precisam fazer o reflorestamento de certas espécies, o que antes acontecia naturalmente, quando a época dos ventos coincidia com a floração. Há outras iniciativas nesse sentido?

Justamente, eles já fazem essas coisas a sua maneira. Há também a agroflorestal, que os índios já praticam, mas isso não é fomentado por nenhuma política. Então, a questão é mostrar ao poder público que se pode fazer mais. O conhecimento que eles produzem pode resultar em políticas públicas. Não basta só olharem o painel do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), da ONU. E eu não estou criticando, mas esses dados devem ser somados a outros olhares. Os governos têm de saber que essas populações podem contribuir, e contribuir na prática. Lá nas Filipinas, perto de onde aconteceu essa grande catástrofe recentemente, um xamã percebeu que vinha um tsunami. Aquele de 2004. Ele avisou a todos da aldeia, e as pessoas foram se refugiar nas montanhas mais altas. Mas na cidade o poder local não acreditou nele quando tentou alertá-los sobre a onda gigante. É justamente para fazer com que esse tipo de coisa não passe batido que se deve trazer à tona o conhecimento tradicional. Os poderes locais e globais têm de acreditar que esse conhecimento não é mito. É uma categoria que tem prática, sim. Ainda há um precipício entre o conhecimento tradicional e o conhecimento institucionalizado. E essa história está aos poucos sendo fecundada. Porque em relação às políticas públicas para povos indígenas o tratamento ainda é de cima pra baixo, infelizmente. Este ano a Unesco vai lançar uma coletânea de artigos sobre o viés das ciências sociais a respeito das mudanças climáticas, incluindo o meu trabalho.   

Você acha que a academia está conseguindo absorver esse conhecimento?

Nos grandes polos de conhecimento do Brasil, sim. Ainda não atingiu a grande mídia, mas a gente já vê que o movimento é para que isso aconteça. Muitos antropólogos estão trabalhando nessa mesma linha. Eu bebi muito nestas fontes: Manuela Carneiro da Cunha, Gilles Deleuze, Marcel Mauss, Eduardo Viveiros de Castro. A começar por Marcel Mauss, que na década de 1920 fez uma classificação do pensamento nativo. Ele foi visto como um grande etnógrafo, mas nunca foi posto em prática. Então, muita coisa escrita por grandes antropólogos estavam engavetadas, e parece que agora estão vindo à tona. Hoje em dia vivemos um novo paradigma da ciência tradicional. Muitos cientistas estão com os olhos mais abertos para a ciência nativa. Já temos graduações indígenas, médicos indígenas e daqui a pouco os primeiros doutores indígenas.

Sobre as tabelas que você elaborou com os tipos de chuva, de sol e de lua, por que fazer essa organização?
É inacreditável pensar que as populações tradicionais enxergam seis tipos de sol. Quando fui morar em uma aldeia na cidade de Marechal Taumaturgo, por exemplo, eu achava que qualquer água que caía do céu era chuva. Mas tem chuva feminina, masculina, tem chuva que é “feita acontecer”. Os Ashaninka mascam batata e sopram, aí a chuva vem. Foi surpreendente quando comecei a perceber que essa noção para eles não é tão genérica como para nós. Quando eu disse a primeira vez “está chovendo”, eles me corrigiram: “Isso não é chuva, é ‘puagem’. Chuva é quando molha a terra”. Quem não vive na floresta tem um olhar mecânico, os índios são cheios de pormenores. Eles têm um conhecimento muito grande que até então, há mais ou menos cinco anos, não era valorizado, mas agora a coisa está mudando. Como dizem nas manifestações Brasil afora, “o gigante acordou”, e acordou para muita coisa mesmo. Não só tardiamente em manifestações, mas também na ciência, com relação ao conhecimento indígena. Só está faltando virar política pública.