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Trabalho humanizado, e reconhecido, que já faz a diferença

Rádio Brasil Atual e TVT, da plataforma Rede Brasil Atual, conquistam dois prêmios Vladimir Herzog, um dos mais importantes da imprensa brasileira, e um prêmio Petrobras de Jornalismo

Fernanda Freixosa/Instituto Vladimir Herzog

Marilu, em guarani: Koa ko mandu’a porã Vladimir Herzog teko repyhá mbareté ha’e Ava Guarani-Kaiowá rehe hape. Onhe mandu’a mi hanguã Ava kuera reko asy re. Ava Guarani-Kaiowá reko mbarete gui inhe’e ayvu ndopa moãí, oiko asy ete ramo jepe Mato Grosso do Sul pe. Heta ma mburuvicha Guarani-Kaiowá pe karai ojuka, omõ kanhy hete kue há ojuka veta he’i. Cléo, em português: Este prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos é dos Guarani-Kaiowá. A vitória é deles. Um povo forte que conseguiu manter até hoje sua língua, o guarani, apesar de todo o massacre que sofreram e continuam sofrendo no Mato Grosso do Sul

Thielly Manias tem 29 anos e dois filhos. Miguel está para completar 4 anos e Marcos, 2. Quando engravidou de Miguel, ela assinou um plano de parto em que explicitava, entre outras condições: não queria a episiotomia, um corte feito para “ajudar” na passagem do bebê e evitar lacerações graves na região do períneo. Miguel estava com a cabeça quase inteira para fora do corpo de Thielly quando a enfermeira obstétrica fez o corte. Os pontos causaram dor e uma hipersensibilidade que durou quase um ano. Thielly sentiu-se uma marionete nas mãos da equipe médica. “Foi um parto rápido, que eles encaixaram no tempo que era melhor para eles, e não pensando em mim.”

Escolada, decidiu ter o segundo filho em casa. Marcos nasceu ao lado dela e da família, e de uma enfermeira e uma obstetriz, aptas para o acompanhamento do parto natural. Logo ao saber da gravidez, a mãe decidiu que não iria para o hospital passar, de novo, por todos os protocolos e pela violência a que foi submetida da primeira vez. Em casa, teve até o filho mais velho participando do processo do parto, e pôde conduzir o nascimento do bebê. “Eu me senti mais livre, foi um alívio. Eu podia comer, beber o que quisesse, podia me movimentar, não tinha de ficar deitada que nem me fizeram ficar no hospital, e tive meu bebê no meu colo assim que nasceu. A lembrança que eu tenho é do cheiro do parto, do meu filho me olhando, tudo do jeito que eu queria. Aí, sim, foi o meu parto, sem o esgotamento que foi o primeiro. Foi um parto, não uma série de acontecimentos médicos.”

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Histórias como a de Thielly – que se tornou doula, dedicada a assistir mulheres em trabalho de parto – acontecem com uma entre quatro mulheres que dão à luz, como mostra a pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, feita pela Fundação Perseu Abramo. Thielly é uma das personagens que deram vida à serie de reportagens “Dores do parto”, de Anelize Moreira, da Rádio Brasil Atual. A série mostra a realidade de mulheres que sofreram violência obstétrica, e também das que optaram pelo parto humanizado. “São muitas as parturientes que passam por isso sem saber.

Ouvem frases como ‘cala a boca, mãezinha’, ‘para o berreiro’ e são submetidas a episiotomia ou mesmo uma cesariana sem necessidade. Essas mulheres ficam muito marcadas fisicamente e emocionalmente, e isso me estimulou”, conta Anelize, que acaba de receber por esse trabalho menção honrosa do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.

Fernanda Freixosa/Instituto Vladimir Herzoga vida em primeiro lugar
Desde 1978, o Prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo homenageia profissionais que se destacam na abordagem temática dos direitos humanos e promoção da cidadania

A categoria Rádio é uma das nove do Prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo, que desde 1978 homenageia profissionais que se destacam na abordagem temática dos direitos humanos e promoção da cidadania. Neste ano, ambas as premiações da categoria – a menção honrosa e o prêmio principal – foram para a Rádio Brasil Atual.

A repórter Marilu Cabañas foi premiada pela série de reportagens “Voz Guarani-Kaiowá”, que retrata a luta da etnia por suas terras, os tekohas – territórios sagrados na cultura indígena – em municípios de Mato Grosso do Sul. Marilu ouviu familiares de índios mortos por causa da luta, lideranças ameaçadas, professores indígenas, políticos e representantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Visitou acampamentos em beira de estrada e aldeias, foi aonde só é possível ir com escolta da Polícia Federal e da Força Nacional, já que muitas das áreas são rodeadas por pistoleiros a serviço de latifundiários da região.

“Como entrávamos com escolta nos lugares, tinha de ser tudo muito rápido. Eu colhia os depoimentos rapidamente, inclusive onde houve o assassinato de um líder indígena”, conta a repórter. Ela espera que o prêmio dê visibilidade à luta dos Guarani-Kaiowá e de outros povos indígenas que têm seus direitos constitucionais pela terra ameaçados por ruralistas. “Espero realmente que a presidenta Dilma tenha pulso firme para fazer com que índios sejam respeitados e vete a PEC 215 (Proposta de Emenda Constitucional que transfere do governo federal para o Congresso a competência de aprovar demarcações de terras indígenas). Se esse prêmio puder ajudar um pouco os Guarani-Kaiowá, eu já fico muito feliz.”

A PEC 215 é, na prática, uma tentativa da bancada ruralista de barrar processos de demarcação. No evento de premiação, em 22 de outubro, no Memorial da América Latina, Marilu recebeu o troféu ao lado da índia Cléo, da etnia Guarani-Kaiowá. Juntas, elas leram um texto em guarani, que lembrava a situação ameaçadora em que vivem os povos indígenas do país. “Este prêmio é dos Guarani-Kaiowá. Um povo forte que conseguiu manter até hoje sua língua, o guarani, apesar de todo o massacre que sofreu e continua sofrendo em Mato Grosso do Sul”, disse Marilu, mencionando sua própria origem: “Tenho muito orgulho de ter em minhas veias o sangue guarani, herdado de minha mãe, Ambrosia ­Cabañas, de 81 anos, que ainda tem mãe, minha avó Sixta Cabañas, que completou 100 anos, ambas paraguaias que falam o guarani fluentemente”.

Caminho certo

Ao obter três concessões para operar em FM – na Grande São Paulo (98,9), no litoral paulista (102,7) e na região de Catanduva (93,3) –, a Rádio Brasil Atual conseguiu realizar o “sonho da casa própria”, depois de nove anos de projetos tocados em horários alugados em outras emissoras. A rádio está no ar em caráter experimental desde agosto de 2012, tem o jornalismo diário, das 7h às 9h, como carro-chefe e prepara a expansão da grade de programação.

gerardo lazzari/rbanascimento humanizado
Thielly, Marcos e Miguel: histórias de vida e de luta narradas por Anelize na série de reportagens “Dores do parto”

Anelize As histórias das repórteres premiadas têm em comum, além da emissora, o jornalismo humanizado, matéria-prima dos profissionais reunidos nesse coletivo que mantém, além da rádio, jornais impressos, a Revista do Brasil e o portal Rede Brasil Atual. De acordo com o editor do site, João Peres, o objetivo da pauta da RBA é dar ao leitor o direito de formar sua própria opinião sobre os principais assuntos em debate no país. “Existe uma preocupação, em todas as reportagens, de garantir que diferentes pontos de vista estejam contemplados, embora nosso ponto de partida nas pautas seja sempre o tema que interfere no dia a dia dos trabalhadores”, afirma Peres, também ele jornalista premiado.

Em 2011, uma série de reportagens sobre a vida do cardeal­ Paulo Evaristo Arns – de sua autoria e de Virgínia Toledo, no site e na Revista do Brasil de setembro daquele ano – recebeu menção honrosa no Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Sul (OAB-RS).

“O reconhecimento da nossa política editorial premia o caráter humanista e a qualidade profissional que movem o trabalho e os objetivos de todo esse coletivo, que é produzir informação em sintonia com o novo Brasil que queremos construir”, diz o diretor-geral da Rede Brasil Atual, Paulo Salvador. “Estamos nessa batalha há nove anos, primeiro com programa de rádio, depois veio a criação da revista, em 2006, o site em 2009, a concessão da TVT em 2010 e dos canais FM para a Rádio Brasil Atual no ano passado”, lembra Salvador, listando as iniciativas de comunicação capitaneadas pelos sindicatos dos Bancários de São Paulo e Metalúrgicos do ABC, com apoio de dezenas de outras entidades, como químicos, professores, do setor elétrico, profissionais de saúde, de editoras de várias regiões do país. “É uma sucessão de etapas vitoriosas que nos estimula a continuar batalhando para expandir as parcerias, disputar a audiência e fazer a diferença no jornalismo brasileiro.”

A preocupação com a expansão da rede de apoiadores para manter esse projeto de comunicação está na ordem do dia. “Acho que faltam liderança e segurança no movimento sindical para canalizar recursos, hoje pulverizados em muitas iniciativas nessa área, e construir um grande instrumento de comunicação”, diz o coordenador-geral do Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo, Osvaldo Bezerra da Silva, o Pipoka. “A Revista do Brasil é uma grande iniciativa, mas tem apenas trinta e pouco sindicatos contribuintes, apesar de, no campo da CUT, existirem 3.800. Talvez esse seja o salto que precisa ser dado. Você precisa convencer, porque nós temos condições de potencializar esse instrumento.”

Entender o conceito

O jornalista e historiador Heródoto Barbeiro destaca o forte simbolismo dessa premiação na área. “É um prêmio que todo jornalista gostaria de ganhar, uma vez que as questões relacionadas aos direitos humanos, infelizmente, não têm na mídia a projeção e o espaço que merecem”, diz Barbeiro. A escritora e jornalista Eliane Brum concorda e assinala que os repórteres são reconhecidos pela premiação ao registrar histórias que ficariam esquecidas na história do país. “O prêmio é inspirado no jornalista que teve o maior dos direitos humanos, o de viver, roubado pela ditadura. E um repórter homenageado sabe que conseguiu incluir uma narrativa invisível no grande painel humano do Brasil, transformando a história esquecida em história contada, silêncio em memória.”

A psicóloga Raquel Moreno, especialista em sexualidade e gênero, observa que os temas abordados nas reportagens merecem destaque por serem pouco explorados e ainda tratados como tabu pela mídia e por alguns setores da sociedade. “Falar em parto humanizado no país campeão do mundo em realização de cesáreas é um desafio. Fiquei contente com o prêmio, merecido, para a Rádio Brasil Atual”, afirma. Para Cléber Buzzato­, secretário-geral do Cimi, o jornalismo atuante é de suma importância para as causas dos direitos humanos. “Enaltecemos o trabalho da rádio pelo jornalismo em defesa dos direitos humanos praticado por ela, que precisa ser efetivamente valorizado.”

Além de a imprensa tradicional não ajudar o público a entender o conceito de direitos humanos, muitas vezes atrapalha, como se fosse um tema que não estivesse intimamente ligado às condições elementares para uma vida digna em sociedade – tais como acesso a saúde, educação, segurança, mobilidade, cultura, igualdade de oportunidades, informação. “Temos pouca consciência do papel fundamental que a consciência sobre direitos humanos pode exercer para uma vida melhor. Reclamam, dizendo que direitos humanos é obviedade, que está em todo lugar e se tornou cansativo, mas percebemos com facilidade que são muitas as pessoas que ainda não perceberam seus próprios direitos”, afirma o jornalista Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP. Por esse motivo, o prêmio Herzog desempenha função essencial nos dias de hoje. “A Rádio Brasil Atual está num caminho fecundo que a sociedade brasileira saberá valorizar”, avalia.

Para a filósofa Marilena Chaui, o compromisso da Rádio Brasil Atual com a cidadania e os direitos humanos é um exercício inerente a qualquer democracia. “Não existe democracia sem o direito à informação. Nada mais justo do que receber o prêmio que leva o nome do jornalista que é símbolo da luta pela liberdade, pensamento e verdadeira comunicação, que foi Vladimir Herzog”, diz a professora da USP. E a ampliação da democracia passa, ainda, por um marco regulatório das comunicações, que garanta uma mídia plural e livre, como acrescenta o presidente da CUT, Vagner­ Freitas. “Estou orgulhoso do prêmio, que representa nossa luta por uma mídia independente, que expresse a opinião de toda a sociedade, e não apenas de meia dúzia de famílias, como acontece hoje”, diz o sindicalista.

A TVT e os talentos invisíveis da periferia

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Bruno e os personagens de sua reportagem: literatura da periferia

Bruno

No mesmo 22 de outubro em que as repórteres da Rádio Brasil Atual recebiam o Prêmio Vladimir Herzog, o jornalista Bruno Mascarenhas participava no Rio de Janeiro da entrega do Prêmio Petrobras de Jornalismo em nome da equipe da TVT responsável pela reportagem especial “Literatura na periferia – as vozes das quebradas”. Exibida no programa ABCD em Revista, que vai ao ar todas as sextas-feiras, às 19h30, foi vencedora na categoria Reportagem Cultural Regional São Paulo e Sul. É a primeira edição do prêmio criado pela estatal, que teve inscritos 1.179 trabalhos de jornalistas de todas as regiões do Brasil. Somente 34 foram premiados. Os temas se dividiram em cultura, responsabilidade socioambiental, esporte, fotojornalismo e reportagens sobre petróleo, gás e energia.

O trabalho vencedor da TVT foi ao ar no primeiro semestre. “O que causou uma grande surpresa foi a ousadia dos jurados, que valorizaram, além do conteúdo, a forma, a criatividade dos jornalistas”, diz Mascarenhas, diretor do programa. “Uma TV educativa como a TVT deve ter compromisso com a experimentação, com a criatividade, e o ABCD em Revista tem a linguagem bem fora do padrão.”

A reportagem especial apresenta quatro escritores da periferia de São Paulo, com seus trabalhos, seu cotidiano e sua contribuição para transformar a realidade da região onde moram através da literatura. “E essas pessoas tiveram a oportunidade de demonstrar o quanto são talentosas no nosso programa, que é produzido com o objetivo de mostrar algo que a grande mídia normalmente não mostra”, completa o diretor. Participaram ainda da equipe premiada, Adriana Veríssimo (pauta), Rikardy Tooge (assistente de pauta), Crystal Ferrari (produtora), Eduardo Donato (editor de texto), Marlon Marinho (editor de imagens), Weslley Mendes (animação), Rafael Borges e Willians Campos (operadores de câmera), Rafael Carvalho e Felipe Cabello (assistentes de câmera).
As entrevistas com os escritores foram feitas nos locais onde criaram suas obras.

Ademiro Alves de Sousa, o Sacolinha, por exemplo, que escreveu o livro Graduado em Marginalidade quando estava no trem, apertado, indo para a zona leste de
São Paulo, foi entrevistado no trem. Já Toni C., que escreveu sobre o hip-hop, teve entrevista gravada na Rua 24 de Maio, berço do movimento. Foi uma forma de construir uma narrativa. Depoimentos de Sergio Vaz, da Cooperifa, e do escritor Allan da Rosa (autor de reportagem à página 38) também estão lá. Todos produzem literatura que muitas vezes as pessoas não conhecem porque eles não têm espaço, com a imprensa tradicional mais preocupada em divulgar apenas o que as grandes editoras distribuem.

Para Valter Sanches, presidente da Fundação Sociedade Comunicação Cultura e Trabalho, mantenedora da TVT, o prêmio para “Literatura da periferia” é um reconhecimento para esse projeto de comunicação, que envolve, além da TVT, a Rede e a Rádio Brasil Atual, o jornal ABCD Maior e a Revista do Brasil. “A própria pauta já mostra a diferença, mostra a missão que a gente desempenha, ao dar valor à qualidade da arte da periferia. Nós damos visibilidade às pessoas que parecem invisíveis”, afirma Sanches. Na TVT, como ele assinala, os movimentos sociais em geral estão nas pautas principais dos programas. “E eles reconhecem aqui um lugar onde podem falar também.”

No evento de entrega do prêmio de jornalismo, a presidenta da Petrobras, Maria das Graças Silva Foster, destacou a importância de uma imprensa livre. “A primeira coisa que faço no meu dia é procurar informação. Eu não consigo trabalhar sem ler o clipping, sem pegar um ou dois jornais e ver como caminha a economia, saber se preciso modificar algo que não foi bem compreendido ou se a informação não estava de fato correta. É muito importante que a imprensa seja livre, que critique e ajude a Petrobras em suas decisões”, disse. Graça enalteceu todos os trabalhos inscritos e confessou que esperava no máximo 350 inscrições e acabou se surpreendendo com as mais de mil reportagens concorrentes.

O prêmio principal foi para uma reportagem especial, “Filho da rua”, da jornalista Letícia Duarte, do jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul. Ela acompanhou a vida de um garoto viciado em crack durante três anos. “Foi um projeto muito difícil e costumo dizer que é como um filho para mim também. Num tempo em que se discute sobre o fim do jornalismo de papel, a minha reportagem foi publicada em 16 páginas. Então, ter um trabalho desse reconhecido também mostra a valorização das grandes reportagens, do papel do jornalismo de provocar essas discussões sociais, sobre temas como esse da criança de rua”, disse Letícia.

O ABCD em Revista, com “Literatura na periferia”, foi também finalista do Prêmio Jornalista Abdias Nascimento – que valoriza trabalhos que discutem temas raciais e a promoção da igualdade – na Categoria Mídia Alternativa ou Comunitária.