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Vida, paixão e tortura. Bradley Manning não é uma exceção

Disse o alemão Bertolt Brecht, o famoso autor de teatro: “Infeliz é o país que precisa de heróis”. Mas talvez mais infeliz seja o país que persegue os seus heróis

Lexey Swall/Getty Images

Marcha civil realizada em junho em Fort Meade, onde está sediada a NSA (agência de segurança norte-americana), pede a libertação de Bradley Manning

Algumas das personalidades mais destacadas do passado dos Estados Unidos foram assassinadas em público, como Abraham Lincoln, John e Robert Kennedy e Martin Luther King. Hoje em dia os heróis americanos não são mais “justiçados”: são perseguidos pela Justiça. É o que acontece com jovens como Bradley Manning, o que transmitiu ao Wikileaks os documentos confidenciais da diplomacia americana e os vídeos das atrocidades americanas no Oriente Médio. Ou Edward Snowden, o que revelou ao mundo a rede global de espionagem internética e telefônica pelo governo dos Estados Unidos.

Enquanto Snowden se abriga temporariamente na Rússia, Manning, a cumprir todas as penas por seus “crimes”, passará o resto da vida preso. Sobre ele acaba de sair em inglês, pela editora Verso, o livro The Passion of Bradley Manning – The Story Behind the Wikileaks Whistleblower, do advogado especializado em direitos civis Chase Madar, baseado em Nova York e tão isento na defesa dos direitos individuais que é colaborador da publicação esquerdista francesa Le Monde Diplomatique e da revista direitista americana The American Conservative.

O título do livro pode ser traduzido para “A paixão de Bradley Manning – A história por trás do denunciante do Wikileaks”. Whistleblower, literalmente “o que sopra o apito”, tem sido traduzido em português por “delator”, mas não tem em inglês o sentido pejorativo dessa palavra portuguesa; “denunciante” fica melhor.

Como bom advogado, Madar escreveu o livro em grande parte para provar que as condenações a Manning foram altamente exageradas. Das 250 mil mensagens diplomáticas que ele deu a público, nenhuma era “altamente secreta”. Menos de 16 mil eram “secretas” e mais da metade eram públicas. O próprio governo americano elaborou um documento que diz que as revelações de Manning “não comprometeram a segurança nacional”, mas esse próprio documento foi classificado como “altamente secreto”, e inicialmente não foi possível ter acesso a ele durante o julgamento.

Mas quem é Bradley Manning? É um típico rapagão do interiorzão americano que só vai fazer 26 anos em dezembro próximo e que nasceu no vilarejo de Crescent, mil habitantes, no estado de Oklahoma. Madar, para descrever o lugar, usa a frase da poeta Gertrude Stein “lá não existe lá”. Nem mesmo Manning é o primeiro gay de Crescent a se tornar um denunciante de fama. Em 1974 morreu num misterioso desastre de carro a sindicalista Karen Silkwood, que havia denunciado vazamentos numa usina de plutônio na área rural da região.

Manning passou grande parte de sua vida na casa de dois andares de seu pai, antigo soldado da Marinha que serviu no País de Gales e casou com uma galesa. Cumpre notar que seu pai não está autorizado a revelar o que fazia na Marinha. A casa tinha no quintal dois cavalos, uma vaca, porcos e galinhas. Bradley herdou as habilidades do pai. Desde criança sabia fazer complicadas operações no computador. Descobriu-se gay aos 13 anos e seu patriotismo já arraigado se intensificou com os atentados de setembro de 2001, quando tinha 14 anos. Sua mãe era alcoólatra e se divorciou; o adolescente foi morar com ela em Gales.

Corrigir um grande mal

Baixinho, gay e estrangeiro, Bradley sofreu bullying – chegou a ser semienterrado entre estacas. Levava tudo a sério e costumava dizer: “Ainda vou corrigir um grande mal”. Logo seu pai arrumou-lhe um emprego numa firma de software, em Tulsa, também em Oklahoma, e ele voltou para os Estados Unidos. Mas foi expulso de casa pelo pai e pela madrasta por ser gay, e se tornou trabalhador itinerante em empregos de salário mínimo, até se estabelecer em 2006, aos 19 anos, na casa de uma tia na capital, Washington.

Em fins de 2007, aos 20 anos, alistou-se no Exército. Acabou indo servir na Base de Operações Avançadas Hammer, no Iraque, a 60 quilômetros de Bagdá, no meio do deserto. “Operações avançadas” é eufemismo para inteligência. Bradley Manning, entretanto, levava a sério a lição deixada por um dos autores da Constituição americana e quarto presidente dos Estados Unidos, James Madison (1751-1836): “Um governo popular sem informação popular é um prelúdio a uma tragédia ou a uma farsa”.

Como analista de inteligência da 10ª Divisão de Montanha do Exército, confinado no meio do deserto, Manning teve acesso a todo tipo de informação. Milhares de textos e imagens referentes às guerras do Afeganistão e do Iraque, dos arquivos da prisão de Guantánamo, de mensagens de diplomatas americanos estabelecidos no mundo inteiro. Espantou-se como tantas coisas importantes eram sonegadas ao público. Segundo Chase Madar, o Escritório de Supervisão da Segurança da Informação, órgão federal americano, calculou em 77 milhões os documentos declarados secretos em 2010 e 92 milhões em 2011.

Em contato internético com outro jovem altamente qualificado em informática, o australiano Julian Assange, fundador do Wikileaks, Manning passou-lhe a partir de 2010 arquivos secretos, incluindo o famoso, ou infame, vídeo Assassínio Colateral, em que dois helicópteros-canhoneiras americanos aparecem metralhando do alto civis, inclusive crianças, num bairro de Bagdá, a 17 de julho de 2007. Em meio a suas trocas de informações, ele revelou ao famoso hacker Adrian Lamo que tinha sido ele, Bradley Manning, o autor da divulgação do Assassínio Colateral. Lamo era informante secreto das autoridades militares. Manning logo foi preso e ficou nove meses seguidos confinado a uma solitária.

Em seu capítulo 5, intitulado “A tortura de Bradley Manning”, o advogado conta que Manning ficava 23 horas por dia sozinho na solitária, era proibido de fazer flexões e mesmo de ficar sentando e levantando para fazer algum exercício, não podia usar óculos, era obrigado a dormir nu. Ficar vestido quando estava acordado não melhorava as coisas: a cada cinco minutos algum guarda lhe perguntava: “Você está bem?”, e Manning era obrigado a responder a cada vez.

Nove meses assim, e Madar pergunta: “Se isso fosse feito a um soldado dos Estados Unidos mantido prisioneiro na Coreia do Norte ou no Irã, nenhum figurão americano hesitaria em chamar isso de tortura. Como é que esse tratamento não pode levar qualquer um à loucura?” E pergunta ainda mais: “É certamente tentador ver a tortura do isolamento de Bradley Manning como um resultado tóxico da Guerra Global contra o Terror. O que mais poderia explicar esse abuso, por parte de uma democracia industrial avançada, contra um de seus próprios cidadãos?” Afinal, comandantes americanos administraram tratamento muito pior a presos em Abu Ghraib, Bagram e Guantánamo.

O autor ainda adverte: “Muitos de nós gostaríamos de pensar que tudo isso é uma exceção colossal e vergonhosa em relação a nossas leis e costumes. Mas as atrocidades sensacionais da Guerra Global contra o Terror que escandalizaram o mundo durante a última década são basicamente uma simples extensão de nosso modo ‘normal’ cotidiano de fazer justiça criminal.

Com certeza, o uso de tortura pela Guerra Global contra o Terror tem sido mais programático. De Guantánamo a ­Bradley Manning, a maior parte da nossa suposta resposta desmedida a setembro de 2001 tem de fato sido menos a exceção do que a regra. Em geral, a Guerra Global contra o Terror tem sido tipicamente americana”. Infeliz o país que precisa tratar assim os seus presos.