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O Egito, o Thermidor e a Restauração: um pulo para trás

Depois de uma primavera da qual vertem mais espinhos do que flores, o país arrisca-se à beira de um outro tenebroso inverno de autoritarismo

Eman Helal/efe

Seguidores do presidente deposto Mohamed Morsi elevam o símbolo de uma mão com quatro dedos em referência à mesquita de Rabaa al Adauiya, onde centenas de pessoas foram mortas pelas tropas do governo golpista no último dia 15 de agosto

Thermidor era o nome do segundo mês do verão do Calendário da Revolução Francesa, instituído pelos reformadores que sucederam a monarquia derrubada em 1789. O nome, pelos eventos que levaram à destituição e execução de Maximilien Robespierre, em julho de 1794, ficou associado à ideia do fim de um processo revolucionário e do começo de um processo de recuo e restauração. De certo modo, isso de fato aconteceu na França pós-revolucionária, pois em seguida à queda de Robespierre houve uma razzia contra os partidários de esquerda que sobreviveram à primeira leva de execuções. Depois, veio o processo que levou ao império napoleônico.

Provavelmente estamos assistindo, neste terceiro mês de verão do hemisfério norte, em 2013, a algo parecido no Egito, um Thermidor do ímpeto de avanço democrático que se seguiu à queda do ditador Hosni Mubarak. Sinal destes tempos, hoje, quando escrevo estas notas, em 22 de agosto de 2013, noticia-se a libertação do ex-ditador. Mas não se espera que ela represente um risco de sua recondução ao poder.

O que se espera, na verdade, é algo pior: um “mubarakismo” sem Mubarak. O atual general no poder, responsável pela deposição do presidente eleito Morsi, da Irmandade Muçulmana, era o chefe do setor de inteligência do antigo regime. O presidente que ele nomeou pertencia ao sistema judiciário “mubarakiano”. O vice El Baradei, nomeado para agradar aos liberais de centro e de centro-esquerda, renunciou e está, no momento, na Áustria, devido à hostilização que passou a sofrer por parte dos partidários desse nouveau-ancien-régime.

Para tentar entender a crise egípcia para além da confusa situação cotidiana, é necessário levar em conta pelo menos cinco fatores.

O primeiro deles é o papel das Forças Armadas egípcias. Desde que decapitadas de seu impulso nacional-transformador nasserista, as FFAA do Egito se enredaram numa complicada rede de ligações entre o setor público, que dominam, e o setor privado, que muitos de seus próceres, frequentemente reformados, administram. Há um conluio de interesses estatais e privados de que os líderes das FFAA não querem nem vão abrir mão no curto nem no médio prazo. Morsi, com sua (canhestra, é verdade) tentativa de reformular a Constituição do país, aproximando-a de valores da Irmandade Muçulmana, afrontou os poderes desse conglomerado.

Em seguida, a inépcia e a fragilidade de Morsi e da Irmandade Muçulmana. Morsi tentou levar a cabo um governo voltado apenas para seu partido. Num país rachado, para dizer o mínimo, com uma classe média em vias de empobrecimento, um setor corporativo das FFAA e do Estado egípcio percebendo seus privilégios em perigo, uma massa pobre dividida entre diferentes apelos, quis impor uma racionalidade de perfil único. Perdeu mais apoios do que ganhou, e passou a girar em falso, sem poder de constranger a oposição liberal e de esquerda nas ruas nem a palaciana, em grande parte herdeira dos tempos de Mubarak, nos corredores e labirintos do poder. Perdeu: foi deposto sem um único tiro contra ele – embora isso tenha levado ao massacre de seus partidários inconformados com a derrota institucional depois da vitória eleitoral, ainda que apertada.

Pesa também na conjuntura egípcia a barafunda do cenário internacional. Os países do Ocidente, embora mantendo a faca e o queijo nas mãos, estão relativamente paralisados no Oriente Médio, limitando-se a manter as coisas como estão: desconfiança e aperto em relação ao Irã, sustentação e tolerância em relação aos falcões israelenses, perplexidade diante da situação síria, desejando a queda de Bashar Al-Assad, mas perdendo controle progressivamente sobre a oposição ao governo de Damasco, cada vez mais tomada por grupos radicais anti-Ocidente, antitudo, alegadamente (inclusive pelos mesmos) islâmicos. Nesse vazio quem está crescendo é o que de pior existe no Oriente Médio: a reacionária monarquia saudita. A Arábia Saudita vem ocupando o espaço deixado em aberto pela queda de Mubarak. Forçou o congelamento de ajuda financeira ao governo de Morsi, e agora a escancarou para o novo governo chefiado “de facto”, como gostam de dizer os conservadores, por Al-Sisi. Bilhões de dólares estão fluindo para os cofres egípcios, bilhões que antes foram negados a Morsi, que tinha o apoio menos eficiente do Qatar.

Um quarto elemento a compor a análise é a fragmentação, sob aparência de união, da oposição laica ao governo de Morsi, liberal e de esquerda. Essa oposição, cujos líderes também são ávidos pelo poder, acreditou na ilusão de que derrubaria Morsi sem o concurso das FFAA. Preferiu a via do “Fora Morsi” à via mais lenta da reconstrução democrática do país. Morsi, afinal, ganhara a eleição. Enveredara pela via da autorreferência, isolando-se, é verdade. Mas, em vez de propiciar ao governo uma oposição que lhe servisse também de baliza, os descontentes tentaram o viés da derrubada pelo poder das ruas, o que desembocou nesse retorno do poder à sombra das casernas.

Por fim, não há a menor simpatia pela Irmandade Muçulmana no Ocidente. Há, ao contrário, um temor infuso e difuso do seu crescimento institucional e dos reflexos que isso poderia ter, por exemplo, na Europa, que já se vê pressionada pelas posições de governos como os da Tunísia e da Turquia. Isso tem levado a declarações vagas de “repúdio à violência”, em vez de a uma condenação mais clara dos massacres perpetrados pelas FFAA egípcias, polícia e grupos paramilitares evidentemente herdeiros das hostes, transformadas em hordas, mubarakianas, que hoje patrulham as ruas lado a lado a soldados e policiais.

A continuar esse quadro, não haverá sequer um Napoleão egípcio, levando adiante mesmo que à força de baioneta uma revolução burguesa na Europa que minou de vez o poder do Ancien Régime, mesmo depois da restauração, a partir de 1815. Haverá apenas uma dinastia disfarçada de generais e quadros corporativos herdeiros dos tempos de Mubarak, sem Mubarak.

O que pode mudar isso? Durante dois anos, o Egito viveu uma grande expectativa democrática, emoldurada pelo desejo de melhoras sociais profundas. Se isso levar a novas pressões políticas que não caibam no escopo da renascente restauração, esta poderá se romper novamente. Mas será necessário também que a oposição, de centro, de esquerda, laicas, considere a possibilidade de se unir a forças menos sectárias da Irmandade, numa frente comum, que leve o país a uma nova rotação democrática.
Difícil, não? Mas não impossível.