entrevista

Araquém Alcântara, poesia visual em cor ou preto e branco

Mais de 100 viagens à Amazônia, milhares de quilômetros percorridos mata adentro, registros de belezas e tristezas de um país diverso e gigantesco. Disso é composto o olhar do fotógrafo

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Mesmo sendo analfabeto, seu Manuel escolheu para o filho nome inspirado na literatura de José de Alencar. Araquém – “grande ave” em tupi – é pai da índia Iracema, no romance homônimo do escritor cearense. A inspiração do pai talvez explique a do fotógrafo Araquém Alcântara, ao registrar as belezas naturais brasileiras, os povos e os animais da floresta. Na adolescência, sonhava ser jornalista até assistir ao filme A Ilha Nua, do japonês Kaneto Shindô, em 1970.

O encanto apresentado em preto e branco atordoou o jovem, que no dia seguinte pediu uma câmera emprestada a uma amiga e foi para um cabaré no porto de Santos (SP), onde costumava ver shows de rock. Saiu de lá sem uma foto. Enquanto esperava o ônibus, com o sol já dando as caras, uma moça o provocou: “Quer fotografar? Fotografa aqui”, e ergueu a saia. “Fui para a zona de Santos com uma câmera e nunca mais fui o mesmo.” Aos 62 anos, o autor de Terra Brasil, seu livro mais famoso, ainda está cheio de projetos.

Como você se tornou fotógrafo de natureza?
Minha fotografia teve um encaixe perfeito, fomos nos transformando em farinha do mesmo saco, Araquém e fotografia. A fotografia é sempre a fonte, como a Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, como o tiro ao alvo, a cerimônia do chá, uma luta marcial. De uns 20 e tantos anos para cá, ficou claro que a dedicação integral a fotografar talvez a principal coisa do mundo, que é a floresta e a biodiversidade, que é a fotografia mais difícil de ser feita, se resumiu numa coisa assim: o meu modelo de universo é o Brasil, a Mata Atlântica, a Amazônia sobretudo. A minha matriz criativa é o andar. Sem andar, sem ser um fotógrafo andarilho, eu não desenvolveria essa minha obra. Como quem diz assim: “Olhem os lírios do campo!” ou “percebam o horror que é um tamanduá-mirim pegando fogo no meio da Transamazônica”. Flagrando paisagem poética e política.

Desde o início foi assim?
É impressionante como foi. Olhe como esse olhar se manteve puro apesar de 40 e tantos anos vendo tantos contrastes. Tudo isso tem uma tarefa: espalhar e repartir belezas. E o outro lado é o lado horror, a indignação diante de tantos crimes de lesa-humanidade.

A primeira vez que você registrou esse horror foi em 1973, na exposição Urubus da Sociedade?
Sim, tudo começou ali. Eu era um jornalista hippão, com aquelas bolsinhas de lado, calça de pano solto, traduzindo as primeiras coisas de Bob Dylan, curtindo Jimi Hendrix e entrando no cinema para ver Glauber Rocha. O que eu já andei é muito além do que as pessoas possam imaginar. A minha fotografia se faz ao andar. E eu me dedico integralmente a isso. Eu não faço estúdio, não faço mulher nua. A dedicação integral aos bichos me fez amigo deles. A dedicação integral às florestas me fez hóspede. Quando eu entro na floresta, sinto uma energia xamânica tão forte! Isso foi sendo preparado pelo meu pai desde que eu era pequeno. Até no nome Araquém. Disseram para ele que esse nome era o do pai de Iracema, a virgem dos lábios de mel. Ele estava desempregado no Recife, leram para ele um trecho – ele era analfabeto, cozinheiro de navio da Marinha mercante –, e ele disse que esse seria o nome do filho dele.

Você sempre sentiu essa energia ao entrar na mata, desde sua primeira pauta, quando foi chamado por um vereador para fazer uma reportagem na Jureia?
Eu já fui preparado pelo meu pai muito antes. Acredito muito no Encontro com Homens Notáveis, esse livro do iluminado (George Ivanovich) Gurdjieff. Já fui muito mais exotérico, espiritualista… Mas sou integralmente isto: desobediente, pan, holístico. O meu pai, na sua intuição rude, primitiva, ou talvez na sua clarividência extraordinária – que eu não soube perceber –, foi a primeira grande pessoa notável na minha vida, o cara que sacou que o filho tinha alguma coisa de diferente. Isso já foi uma maravilha. Eu tenho uma foto com ele, no dia do meu aniversário de 20 anos. Estamos nus numa pedra no meio da Mata Atlântica, os dois muito parecidos, cabeludos. Desde pequeno ele me protegia, queria que eu seguisse a religião dele, o candomblé, que eu fosse talvez um pai de santo. Fui várias vezes com ele, mas nunca rolou, apesar de eu ser muito bem recebido. E ele sempre dizia: “Aqui está todo o mistério, aqui está toda a unidade, aqui estás em casa, meu filho. Todas as árvores são tuas, todos os peixes, pedras, flores são teus”.

Você já sabia o que significava seu nome?
Eu nem sequer imaginava. Estou com 62 anos. Depois que completei uns 45, aconteceu meu interesse em saber o que significava. Do tronco Tupi, ara quer dizer ave. Tanto é que o Guimarães Rosa chamava a mulher dele, a Aracy, de Ave Ara. Segundo o filólogo que me deu a letra, Araquém quer dizer a grande ave. Quem diria que eu iria me dedicar a fotografar todas as aves, inclusive a grande ave, que é a harpia? Perguntei aos índios Zoés, que são uma tribo feliz do norte do Pará, qual era o maior desafio de um guerreiro. O maior desafio é caçar uma harpia porque ela enxerga a quilômetros de distância, então vê primeiro o índio. A mira e o alvo. O zen. O fotógrafo, o observador e o observado. A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, atirar só sabendo, sem pensar. A criação é um ato do amor. É por essa fenda que meu pai me levou intuitivamente. Então, quando entrei na mata, eu estava mais ou menos preparado para aceitar aquela missão em que vi aquelas caras de caiçaras reunidas na chuva, em 1979.

Qual foi sua primeira foto profissional?
Minha primeira foto profissional foi uma puta me mostrando o sexo. Eu senti que lutei por essa foto, que aconteceu no dia seguinte em que eu, totalmente apaixonado pela cultura brasileira, tomei um tapa de um filme japonês chamado A Ilha Nua. De fotografia eu não sabia nada. Eu estava começando nos grandes livros, como O Apanhador nos Campos de Centeio. Esse filme me fez pegar uma máquina emprestada e ir fotografar o povo. Fui para a zona de Santos com uma câmera, e nunca mais fui o mesmo. O que o filme me passou muito profundamente foi “essa é uma bela maneira de dizer o que eu penso”. Eu, muito radical, nos anos seguintes comecei a tropeçar nas palavras. O meu texto foi ficando horroroso, sintético demais, camuflado… A fotografia estava nascendo.

Como faz para a natureza “permitir” a sua presença?
A primeira grande dificuldade é você andar na natureza, porque ela está do outro lado. A natureza é o insólito, o perigoso. O apocalipse começou quando nós começamos a nos afastar da natureza, quando passamos a cortar um cedro de 400 anos de idade em dez minutos. O Brasil não tem política de meio ambiente. O ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) está às moscas. De 69 parques nacionais brasileiros, só 18 têm a mínima condição de receber turistas.

Nesses mais de 40 anos de andanças, quais foram as mudanças mais drásticas que você viu acontecer na natureza?
Eu vi o país se desertificando. A mata de araucária foi passando e agora 99% já se foi; a Mata Atlântica, 93%, desde 1500; o cerrado já tem 55% de terra arrasada; a caatinga, 45%; a Mata Amazônica, 17% a 20%. Nesse contexto todo, centenas de milhares de bichos ainda estão vivos, mas estão extintos biologicamente porque tiveram surrupiados os corredores ecológicos. Então temos bichos e mais bichos estudados que estão fadados ao desaparecimento. Não há mais retrocesso. Nós já deveríamos ter parado há mais de 15 anos o desmatamento da Amazônia e o desmatamento em geral. Mas não há política para isso. Talvez a melhor coisa que tenha acontecido foi no governo Lula, quando o Banco Central e o BNDES impediram que quem estivesse na lista de devastadores contumazes tivesse aceso a crédito para ampliar suas áreas; isso, junto com o aumento da fiscalização. O problema é que é tudo muito lento. Está surgindo uma nova consciência entre os meninos, mas ela também é muito lenta.

Como são suas expedições?
Eu sou duas pessoas. Se mostro uma foto em um acampamento, no mato, parece alguém das Farc, uma coisa meio guerra. Carregar pesos, equipamentos, mudanças climáticas rápidas, animais peçonhentos. Tem também os acidentes, os cortes, a malária. Já caí de avião, sofri sequestro de índios, uma canoa desgovernada de um cara irresponsável que quase nos matou em uma cachoeira… Você está em uma situação em que de repente pode acontecer um grave acidente. Isso é a coisa mais complexa dessa fotografia. Imagina isso no tempo do filme! Mas como eu sei qual é a minha na Terra, aguento qualquer negócio.

Quais são seus próximos projetos?
Eu estou envolvido com um projeto em parceria com o governo brasileiro que não está viabilizado ainda. Eles estão me dando, através do Ibama e do ICMBio, condições de chegar a lugares que eu gastaria três ou quatro vezes mais. Eu propus esse projeto de municiar todas as escolas públicas brasileiras com uma coleção chamada Chico Mendes. O Brasil tem áreas vastas e o conhecimento não circula.

Como fazia para viajar no começo da carreira?
Era tudo muito mais difícil… Mas, curiosamente, eu viajava mais, porque tinha menos compromissos. Hoje tenho dois netos, três funcionários etc. Apesar de toda a dificuldade, estou conseguindo um reconhecimento. Por exemplo, dia 27 de novembro vão lançar um livro meu, Amazônia, na França, com textos de um cara chamado Thierry Piantanida.

Tem algo a ver com o Amazônia – Planeta Verde, filme em 3D que guia o espectador pela floresta amazônica a partir do ponto de vista de um macaco-prego?
É o livro que acompanha o filme. Sou consultor do filme.

Você vai lançar também um livro sobre a onça-pintada?
Sim, estou trabalhando nisso com muito afinco. Mas o que entra na frente é o livro para a Copa, em quatro línguas, que deve se chamar “Brasil”. Ainda preciso de um subtítulo para não confundi-lo com tantos livros de ocasião. É um livro de arte que está previsto para ser lançado em maio do ano que vem. O da onça vai se chamar “Iauaretê, o Livro da Onça”. Também estou fazendo um livro sobre Santos, minha terra, com o melhor que eu produzi lá, todo em preto e branco. Mas foi na mata da Jureia que comecei a compreender os mistérios e vivenciar o que a minha alma precisava vivenciar e desenvolver, que era a união do ideológico com o místico. E isso foi um tremendo elixir da juventude. O tomar vento e tirar poeira dos olhos é extremamente rejuvenescedor.

Mesmo ficando doente e passando perrengues?
Mesmo. Porque, na verdade, o desconforto e a dor têm um código extremamente revelador. Se você só tem uma atitude confortável e não assume riscos, as coisas ficam muito comuns. A rotina criativa mata as pessoas.