Cultura

Personagens da vida real dão um toque inventivo à dramaturgia

Grupos de teatro desenvolvem no meio do passeio urbano uma dramaturgia contemporânea, que liga vida real e imaginário

Fernando Pires/divulgação

Grupo Falos & Stercus, de Porto Alegre

O barbeiro Miguel Arcanjo, de 62 anos, se tornou ator em seu salão em pleno horário de trabalho. A estreia foi no espetáculo teatral Barafonda, da Cia. São Jorge de Variedades, em que ele representa a si mesmo e conta histórias do bairro onde vive há mais de 40 anos. Em sua participação, faz citações ao pintor e escultor Raphael Galvez, que morou no bairro paulistano da Barra Funda e era cliente da barbearia. “O Galvez costumava contar de quando ele ia aos táxi-dança com o Mário de Andrade, que também morava no bairro”, conta, repetindo uma de suas falas. Ele também aponta a casa em que morou a atriz e cantora Inezita Barroso, em frente ao seu salão.

paulo pepe/rbaMiguel Arcanjo
“Quando vi a rea­ção das pessoas, passei a achar que estava tudo bem”, diz o barbeiro

Miguel se orgulha de ter ajudado o grupo a montar uma dramaturgia sobre a Barra Funda. Ao lado de outros moradores, ele esteve em conversas na sede da companhia para falar sobre memórias do bairro. “A gente ia lá falar com eles e não pensava que ia sair um sucesso. Tem gente que vem de outros estados para ver a peça, que foi indicada para vários prêmios”, comenta. O barbeiro diz que a encenação ajuda as pessoas a conhecer mais e valorizar o lugar. “Aqui foi o berço do samba de São Paulo, lembro do carnaval na Avenida São João. Era uma região bonita, as famílias vinham passear. O problema foi a construção do Minhocão (o Elevado Costa e Silva, construído em 1968)”, lembra.

Foi para decifrar pessoas como Miguel que, há pouco mais de um século, o cronista carioca João do Rio descreveu no livro A Alma Encantadora das Ruas a personalidade de certos locais da cidade e os tipos que os frequentam. Está certo que o lugar em questão era o Rio de Janeiro de 1908. Mas o que importa é como essa alma foi abundantemente captada pela literatura e pela dramaturgia, uma das linguagens que melhor  se apropriou dela, sobretudo na segunda metade do século 20. As encenações de rua eram usadas tradicionalmente para um teatro de roda, de origem na cultura popular, e no chamado agitprop (abreviatura de “agitação e propaganda”) – como as que eram feitas durante os anos 1960 pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes. Ainda hoje essa busca pela “alma encantadora” das ruas tem movido grupos de teatro a desenvolver pesquisas e transformá-las em encenações em cidades como Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, Goiânia e São Paulo.

O diretor e professor de teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) André Carreira desenvolve em seu livro mais recente a ideia de “teatro na cidade”. O conceito inclui o tradicional teatro de rua e acrescenta grupos que pesquisam temas relacionados ao espaço urbano. “Essa aproximação com a arte da performance construiu uma modalidade cênica que dialoga diretamente com as regras de funcionamento da cidade, por isso já não podemos nos satisfazer com a expressão ‘teatro de rua’”, escreve. Como diretor, André aplicou a teoria em espetáculos com os grupos Teatro Que Roda, de Goiânia, e Experiência Subterrânea e Núcleo ÁQIS, de Florianópolis.

Fernando Pires/divulgaçãoLinguagem física
Despedida de Palhaços, do grupo Falos & Stercus, de Porto Alegre

“Nas minhas peças, a cidade não é apenas um cenário. Ela e seus habitantes se tornam parte do desenvolvimento de uma dramaturgia”, diz. André está em turnê pelo Brasil com o espetáculo Marias da Luz, primeiro trabalho junto com o grupo paulistano As Graças. O texto foi criado a partir de depoimentos de frequentadores do Jardim da Luz, no centro de São Paulo. O local também foi usado para as primeiras apresentações. “A gente reúne frequentadores habituais do parque com um público que vem para cá em razão da apresentação. É emocionante conversar com pessoas que viveram ou conhecem histórias parecidas com as dos personagens”, afirma.

Cacá Bernardes/divulgaçãoAplausos e risos
Barafonda, da Cia. São Jorge de Variedades, percorre bairro paulistano

Para o diretor, os espetáculos na cidade funcionam como uma ruptura poética com o cotidiano, que, no entanto, não quebra o fluxo da cidade. Por isso, as apresentações são abertas para uma troca com os espectadores – moradores ou frequentadores da região ou não – e muitos organizadores optam por não fechar o trânsito dos locais onde fazem suas “montagens”. Preferem conviver com o tráfego de pessoas e veículos, que podem alterar o andamento do espetáculo. “A peça se torna permeável, como a cidade”, comenta André.=

A cena é o momento

Colocar-se na contramão do cotidiano é o conceito usado pelo grupo Falos & Stercus, de Porto Alegre. Para seu diretor, Marcelo Restori, o teatro pode refletir a história e o momento da cidade quando consegue dar outro significado ao cotidiano, em que a realidade e o ambiente simbólico interagem. “Vemos a rua como um espaço de fluxos. A realidade pode ser invadida pela poesia e pela ficção”, diz. “Por isso, articulamos o diálogo com a cidade a partir de seu significado simbólico e nos inserimos em seu imaginário.” O Falos & Stercus desenvolve um trabalho que rompe com a palavra e concentra sua narrativa numa linguagem física, investe numa estética que aproxima o teatro da dança, reforça a linguagem simbolista e o choque estético.

A pesquisadora Beth Néspoli acompanhou o grupo Vertigem, de São Paulo, na montagem do espetáculo Bom Retiro 958 Metros. E chegou a escrever um artigo que teve o bairro como tema e território da pesquisa. “Reconsiderei um pouco a questão, porém. Penso que o tema é o capitalismo representado naquele grande shopping e no abandono do Teatro Taib. O texto retrata memórias que não estão na arquitetura nem nas pessoas. É uma região em que todo o movimento à noite é de seguranças e de reformas das lojas”, afirma. A pesquisadora aponta uma forma de pensar a relação entre o tempo e a cidade.

Beth cita também o Teatro de Narradores e a Cia. São Jorge de Variedades como exemplos de companhias preocupadas com a maneira de tratar o espaço urbano. A primeira fez uma montagem recente de A Irresistível Ascensão de Arturo Ui, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht – encenada nas ruas do tradicional bairro do Bixiga, região central de São Paulo. A segunda apresentou recentemente Barafonda, criação própria, que percorre as ruas da Barra Funda, na região central, onde fica a sede do grupo. “Eles não só dialogaram com os moradores da região no momento de criar a encenação como colocaram as pessoas do bairro para falar sobre suas memórias e histórias locais”, destaca.

Patrícia Gifford, da Cia. São Jorge, diz que a rua impõe novos desafios ao artista por ser um espaço de relações, tensões e desejos. “A dramaturgia é aberta e só se efetiva de fato ao se comunicar com a situação posta ao seu redor”, afirma. Segundo ela, moradores e trabalhadores do bairro e os espectadores que são de fora acabam desenvolvendo diferentes camadas de significado para o espetáculo. “A encenação desnaturaliza o olhar da cidade sobre ela própria e obriga as pessoas a lidar concretamente com o outro. Tudo isso no momento em que a rua está acontecendo.”

O trabalho da companhia é desmistificador. “As pessoas nos viam na rua durante o desenvolvimento do processo de criação, acompanharam o começo com poucos figurinos e equipamentos e a evolução toda”, lembra. Um dos desafios agora é viajar com a peça. “Acho que é possível, mas temos de ir antes para a cidade em que vamos nos apresentar para criar essa interação.” A própria relação da companhia com os vizinhos influencia seu teatro. O barbeiro Miguel Arcanjo, da Barra Funda, ainda não pensa em viajar, mas entendeu bem o seu papel na montagem. “O Pascoal da Conceição, um dos atores, me disse que vida de ator é feita de conquistar aplausos e risos. Quando eu vi a rea­ção das pessoas aqui na porta, passei a achar que estava tudo bem.” Aos risos, ele brinca sobre a possibilidade de continuar na carreira. “Se aparecer uma oportunidade tão boa quanto essa, por que não?”

divulgaçãoEspetáculo de rua
Circus Negro, do grupo ÁQIS, de Florianópolis