Entre crises e paixões, cresce na Catalunha a fervura da autonomia
Região rica da Espanha e sede do clube mais popular do mundo recebe a estreia de Neymar neste agosto. Fora dos gramados, a difícil situação espanhola aguça a sanha separatista
Publicado 11/08/2013 - 11h03
Concerto pela Liberdade, realizado em junho passado em apoio à soberania da Catalunha no estádio do Barça
Nove horas da noite de 30 de junho. Estádio do Futebol Club Barcelona, que em 2001 adotou, por referendo, o nome de Camp Nou (Campo Novo, em catalão). Não cabe nem um alfinete na maior arena da Europa, com lugares numerados e confortáveis para 99 mil pessoas. Tremulam bandeiras com as efígies de Puyol, Xavi, Iniesta, Messi – e Neymar. Parece tudo nos trinques para o início de um dos mais carismáticos clássicos planetários – entre o Barça e o Real Madrid.
Mas, nessa noite, quem adentra o gramado é a cidade de Barcelona, em nome de toda a Catalunha. Uma versão catalã da pátria de chuteiras. Isso é que é jogar em casa.
Os culés (como são chamados os torcedores do Barça, desde que o estádio ainda estava em construção e eles se sentavam nos muros, sobressaindo os culos – traseiros, em catalão) cantam, dançam, ficam com pele de galinha e fazem biquinho de pura emoção. Na tribuna de honra, os presidentes do Barça e do governo da Catalunha riem de orelha a orelha, que nem se Messi tivesse marcado o enésimo gol de placa nas redes do merengue Casillas. Em uníssono, anônimos e VIPs professam fervorosamente a soberania da Catalunha.
O clamor ruge em ponto de bala às 23h, quando um mosaico humano compõe a frase “Freedom Catalonia 2014” (Liberdade para a Catalunha 2014) – em inglês, para pedir ao mundo solidariedade com a causa. Nos telões, desponta um vídeo do secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Ban Ki-moon, apelando ao respeito pela vontade dos povos. Nas cadeiras, são erguidos cartazes como “Catalonia, Europe’s next State” (Catalunha, o próximo Estado europeu), ou “Catalonia is not Spain” (A Catalunha não é a Espanha). Nesse ambiente – uma paella política, social e esportiva, regada a muita malagueta tipo pólvora –, Neymar jogará as próximas temporadas.
Uma cidade, uma região/nacionalidade, um clube – todos com a mesmíssima alma. Cerca de 5 milhões de pessoas vivem na área metropolitana de Barcelona. O porto da cidade é o mais importante do Mediterrâneo em tonelagem de mercadorias e contentores. A esfera cultural também pinta e borda: Museu Dalí, Fundação Joan Miró e Antoni Tàpies, o parque temático de Gaudí. Quando era o técnico do time, Pep Guardiola papeava semanalmente com escritores como Javier Cercas, Manuel Vázquez Montalbán, Vila-Matas – todos culés roxos.
Nariz empinado
A Catalunha possui instituições financeiras tentaculares, como La Caixa ou o Banco Sabadell. Sua indústria também deita e rola: é a área com maior participação no PIB espanhol, 25%. Daí que o governo de Madri tenha um piti a cada vez que ouve falar da independência catalã, sobretudo em época de crise galopante.
É bem verdade que a própria economia da Catalunha já não está com essa bola toda. No fim do ano passado, as dívidas regionais bateram nos € 42 bilhões. O que levou os adversários da independência a esgrimir outro argumento: que graça teria o Barça disputar um campeonato exclusivamente catalão? Dada a disparidade de pedigree, os títulos consecutivos seriam uma baba insípida.
Tudo bem: a Catalunha não é uma ovelha negra num Estado nacional coeso e centrípeto. A Espanha tem 17 comunidades autônomas, com suas capitais de nariz empinado. Entre elas, a Andaluzia (capital Sevilha), Aragão (Zaragoza), Galícia (Santiago de Compostela). E, claro, o País Basco (Vitória), cujo anseio de independência degenerou no terrorismo da ETA, quase a ponto de implodir o regime democrático que sucedeu ao franquismo (1936-1976), suscitando inclusive uma tentativa de golpe militar. Nos últimos anos, com a perda de popularidade local e uma repressão eficaz, a ETA sossegou o facho.
O estatuto das Comunidades Autônomas está na Constituição de 1978, que varreu o bolor autoritário do generalíssimo Franco. O artigo 2º estabelece que uma Comunidade Autônoma é uma entidade territorial dotada de autonomia legislativa e competência executiva, bem como da faculdade de administrar a si própria mediante representantes eleitos. A Catalunha, por exemplo, dispõe de um governo regional (a Generalitat), um Parlamento e uma Suprema Corte. Para não mencionar a língua catalã, falada por 12 milhões de pessoas em todo o mundo, e incompreensível para os demais espanhóis (o mesmo caso dos idiomas basco e aragonês). Mas a maioria dos catalães bate o pé por uma independência completa.
Entrou de sola
Como muitas das sagas do futebol, a história do Barcelona alterna pisadas de bola e triunfos épicos. Tanto os jogadores como os torcedores são também chamados de blaugranas, ou azul-grená em catalão, as cores do clube. Que por um triz não foram outras: as primeiras escolhas – há mais de 100 anos – recaíram no azul e vermelho. Só que o vermelho tinha acabado na paleta do desenhista do escudo e, como quem não tem cão caça com gato… Hoje o grená e o azul são as cores mais icônicas do esporte catalão.
Em 2011, o Barça alcançou 180 mil sócios (para se ter uma ideia, o Flamengo – teoricamente o clube mais popular do Brasil – não chega a 30 mil). É a segunda agremiação futebolística com mais associados do mundo (a primeira é o Benfica, de Lisboa, e a terceira o Manchester United). Existem mais de 1.800 Casas do Barcelona espalhadas pelo planeta. O FCB é um dos quatro únicos clubes profissionais espanhóis que não configuram uma sociedade anônima – assim, a propriedade continua com os sócios (os outros são Real Madrid, Atlético de Bilbao e Osasuna).
Entre os times espanhóis, só Barça e Real Madrid nunca caíram para a segunda divisão. E, durante muito tempo, o FCB se orgulhou de ser o único colosso do futebol a não usar marcas de patrocinadores em seu uniforme. Apenas em 2006 um logotipo assomou na parte abdominal das camisas, e ainda assim por uma causa nobre: o clube paga, em vez de receber, para estampar o emblema do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A partir da temporada 2011-2012, a crise econômica europeia deu um tranco na tradição e rolou o maior contrato de patrocínio da história, pelo qual o Barça passou a embolsar € 30 milhões anuais para exibir a marca da Qatar Foundation.
Há dois meses, uma pesquisa da empresa alemã Sport+Markt indicou que a torcida do Barça é a maior da Europa, com cerca de 60 milhões de devotos. Segundo as estatísticas da Federação Internacional de Futebol (Fifa), a equipe é a melhor do futebol mundial da primeira década do século 21 e sua marca, uma das mais midiáticas.
Paradoxalmente, esse clube tão cioso de seu DNA regional foi fundado por um… suíço. Em 22 de outubro de 1899, Hans Gamper, um ex-jogador, pôs um anúncio no jornal – e a coisa nunca mais parou de bombar. O dia 14 de junho de 1925 se transfigurou num dia santo para os culés: em reação à ditadura fascista de Primo de Rivera, a torcida catalã vaiou a plenos pulmões o hino da Espanha. Como represália, o clube foi fechado por seis meses.
Nas primeiras semanas da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), o então presidente do Barça, Josep Sunyo, que era republicano, acabou assassinado por partidários do general Franco, cujas tropas ocuparam e detonaram Barcelona na última fase do conflito. Com a vitória dos nacionalistas, Francisco Franco proibiu oficialmente o uso da língua catalã. Durante os 36 anos de ditadura, a vida do clube e dos culés descambou numa urucubaca lascada. O único reduto em que ainda se falava catalão era o estádio do Barça – fundindo ainda mais clube e região.
O general Franco era tiete do Real Madrid, o que atiçou as saias-justas entre os dois times. Um episódio – protagonizado por um dos maiores craques de todos os tempos – radicalizou aquele antagonismo. O nome da fera era Di Stefano, para muitos um jogador da estirpe de Pelé. Em 1953, o Barça contratou o argentino, depois de Di Stefano ter comido a bola numa excursão pela Espanha de seu time, o Milionários da Colômbia.
Mas aí o Real Madrid meteu o bedelho. Enquanto os blaugranas negociavam com o portador do passe do craque (o clube River Plate), o Real foi direto ao Milionários.
Di Stefano já tinha até disputado três amistosos com a camisa do Barça. No entanto, com o franquismo entrando de sola a favor do time da capital, o melhor que o clube catalão descolou foi uma proposta absurda: o astro argentino faria temporadas alternadas em cada equipe – começando pelo Real. O Barcelona mandou-os catar coquinho, mas nunca engoliu aquele sapo. Daí que atropelar os merengues na corrida pelo passe de Neymar teve um gostinho todo especial.
Ao contrário da maioria dos clubes espanhóis, o Barcelona jamais solicitou reconhecimento pela monarquia nem tratamento de “Real”. Para numerosos escritores, como Manuel Vázquez Montalbán (autor de Autobiografia do General Franco), o Barça cumpre na Catalunha o papel da seleção catalã. Ainda assim, nos últimos anos o clube patrocinou vários amistosos entre um combinado catalão e seleções de outros países – entre os quais o Brasil. Atestando que separatismo não implica provincianismo, em 2005 organizou no Camp Nou um amistoso contra uma seleção de jogadores palestinos e israelenses, que pela primeira vez partilharam uma mesma equipe.
Abençoado
Neymar terá de brilhar num momento em que o futebol espanhol tem baixa presença de jogadores brasileiros. No total, 24, espalhados por 12 clubes, participaram da temporada 2012-2013. No campeonato de 2006-2007 eram 56. Parece remoto o tempo em que Romário, Rivaldo, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho foram eleitos o melhor jogador do mundo, arrebentando pelo Barcelona com uma baciada de gols.
Essa erosão tem dois motivos. Até o título recente da Copa das Confederações, os sucessivos fiascos da seleção brasileira minaram a cotação dos craques canarinhos na Europa. Além disso, a crise econômica europeia bagunçou o cacife dos clubes de futebol. Com exceção do Barcelona e do Real Madrid (e, mesmo assim, malemá…), os outros times espanhóis estão numa pindaíba danada, com poder de investimento menor do que os principais clubes brasileiros.
Por outro lado, Neymar vai encontrar o barcelonismo a seus pés. As reticências que subsistiam em relação ao talento do moicano ruíram com as pirotecnias dele na Copa das Confederações – incluindo um golaço na final contra a Espanha. Já a apresentação de Neymar no Camp Nou arrastou 65 mil culés, a troco de coraçõezinhos feitos com as mãos – e umas meras trocentas embaixadinhas. Proliferou no ato uma legião de neymaretes desde criancinhas. Assim, a palavra tatuada na nuca que ele fez de propósito para seu ciclo blaugrana pode muito bem ser profética: “Blessed” (em inglês, abençoado).
Se a Catalunha sabe dar um bico nas tradições mais sacrossantas da Espanha (como a recentíssima proibição das touradas pelo parlamento catalão), também sabe mimar seus xodós. Se jogar o que sabe, Neymar, que já troca juras de amor eterno com Messi, tem tudo para pegar o touro a unha – e evitar que a vaca vá pro brejo.