História

Entre crises e paixões, cresce na Catalunha a fervura da autonomia

Região rica da Espanha e sede do clube mais popular do mundo recebe a estreia de Neymar neste agosto. Fora dos gramados, a difícil situação espanhola aguça a sanha separatista

Andreu Dalmau/EFE

Concerto pela Liberdade, realizado em junho passado em apoio à soberania da Catalunha no estádio do Barça

Nove horas da noite de 30 de junho. Estádio do Futebol Club Barcelona, que em 2001 adotou, por referendo, o nome de Camp Nou (Campo Novo, em catalão). Não cabe nem um alfinete na maior arena da Europa, com lugares numerados e confortáveis para 99 mil pessoas. Tremulam bandeiras com as efígies de Puyol, Xavi, Iniesta, Messi – e Neymar. Parece tudo nos trinques para o início de um dos mais carismáticos clássicos planetários – entre o Barça e o Real Madrid.

Barça, o clube agora conta com o craque NeymarMas, nessa noite, quem adentra o gramado é a cidade de Barcelona, em nome de toda a Catalunha. Uma versão catalã da pátria de chuteiras. Isso é que é jogar em casa.
Os culés (como são chamados os torcedores do Barça, desde que o estádio ainda estava em construção e eles se sentavam nos muros, sobressaindo os culos – traseiros, em catalão) cantam, dançam, ficam com pele de galinha e fazem biquinho de pura emoção. Na tribuna de honra, os presidentes do Barça e do governo da Catalunha riem de orelha a orelha, que nem se Messi tivesse marcado o enésimo gol de placa nas redes do merengue Casillas. Em uníssono, anônimos e VIPs professam fervorosamente a soberania da Catalunha.

O clamor ruge em ponto de bala às 23h, quando um mosaico humano compõe a frase “Freedom Catalonia 2014” (Liberdade para a Catalunha 2014) – em inglês, para pedir ao mundo solidariedade com a causa. Nos telões, desponta um vídeo do secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Ban Ki-moon, apelando ao respeito pela vontade dos povos. Nas cadeiras, são erguidos cartazes como “Catalonia, Europe’s next State” (Catalunha, o próximo Estado europeu), ou “Catalonia is not Spain” (A Catalunha não é a Espanha). Nesse ambiente – uma paella política, social e esportiva, regada a muita malagueta tipo pólvora –, Neymar jogará as próximas temporadas.

RBAperseguição
O presidente do Barça, Josep Sunyo, republicano, acabou assassinado por partidários de Franco

Uma cidade, uma região/nacionalidade, um clube – todos com a mesmíssima alma. Cerca de 5 milhões de pessoas vivem na área metropolitana de Barcelona. O porto da cidade é o mais importante do Mediterrâneo em tonelagem de mercadorias e contentores. A esfera cultural também pinta e borda: Museu Dalí, Fundação Joan Miró e Antoni Tàpies, o parque temático de Gaudí. Quando era o técnico do time, Pep Guardiola papeava semanalmente com escritores como Javier Cercas, Manuel Vázquez Montalbán, Vila-Matas – todos culés roxos.

Nariz empinado

A Catalunha possui instituições financeiras tentaculares, como La Caixa ou o Banco Sabadell. Sua indústria também deita e rola: é a área com maior participação no PIB espanhol, 25%. Daí que o governo de Madri tenha um piti a cada vez que ouve falar da independência catalã, sobretudo em época de crise galopante.

David Ramos/Getty ImagesAmbição
Além de independência, a Catalunha almeja se tornar Estado da Comunidade Europeia

É bem verdade que a própria economia da Catalunha já não está com essa bola toda. No fim do ano passado, as dívidas regionais bateram nos € 42 bilhões. O que levou os adversários da independência a esgrimir outro argumento: que graça teria o Barça disputar um campeonato exclusivamente catalão? Dada a disparidade de pedigree, os títulos consecutivos seriam uma baba insípida.

Tudo bem: a Catalunha não é uma ovelha negra num Estado nacional coeso e centrípeto. A Espanha tem 17 comunidades autônomas, com suas capitais de nariz empinado. Entre elas, a Andaluzia (capital Sevilha), Aragão (Zaragoza), Galícia (Santiago de Compostela). E, claro, o País Basco (Vitória), cujo anseio de independência degenerou no terrorismo da ETA, quase a ponto de implodir o regime democrático que sucedeu ao franquismo (1936-1976), suscitando inclusive uma tentativa de golpe militar. Nos últimos anos, com a perda de popularidade local e uma repressão eficaz, a ETA sossegou o facho.

O estatuto das Comunidades Autônomas está na Constituição de 1978, que varreu o bolor autoritário do generalíssimo Franco. O artigo 2º estabelece que uma Comunidade Autônoma é uma entidade territorial dotada de autonomia legislativa e competência executiva, bem como da faculdade de administrar a si própria mediante representantes eleitos. A Catalunha, por exemplo, dispõe de um governo regional (a Generalitat), um Parlamento e uma Suprema Corte. Para não mencionar a língua catalã, falada por 12 milhões de pessoas em todo o mundo, e incompreensível para os demais espanhóis (o mesmo caso dos idiomas basco e aragonês). Mas a maioria dos catalães bate o pé por uma independência completa.

Entrou de sola

Como muitas das sagas do futebol, a história do Barcelona alterna pisadas de bola e triunfos épicos. Tanto os jogadores como os torcedores são também chamados de blaugranas, ou azul-grená em catalão, as cores do clube. Que por um triz não foram outras: as primeiras escolhas – há mais de 100 anos – recaíram no azul e vermelho. Só que o vermelho tinha acabado na paleta do desenhista do escudo e, como quem não tem cão caça com gato… Hoje o grená e o azul são as cores mais icônicas do esporte catalão.

Em 2011, o Barça alcançou 180 mil sócios (para se ter uma ideia, o Flamengo – teoricamente o clube mais popular do Brasil – não chega a 30 mil). É a segunda agremiação futebolística com mais associados do mundo (a primeira é o Benfica, de Lisboa, e a terceira o Manchester United). Existem mais de 1.800 Casas do Barcelona espalhadas pelo planeta. O FCB é um dos quatro únicos clubes profissionais espanhóis que não configuram uma sociedade anônima – assim, a propriedade continua com os sócios (os outros são Real Madrid, Atlético de Bilbao e Osasuna).

Entre os times espanhóis, só Barça e Real Madrid nunca caíram para a segunda divisão. E, durante muito tempo, o FCB se orgulhou de ser o único colosso do futebol a não usar marcas de patrocinadores em seu uniforme. Apenas em 2006 um logotipo assomou na parte abdominal das camisas, e ainda assim por uma causa nobre: o clube paga, em vez de receber, para estampar o emblema do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A partir da temporada 2011-2012, a crise econômica europeia deu um tranco na tradição e rolou o maior contrato de patrocínio da história, pelo qual o Barça passou a embolsar € 30 milhões anuais para exibir a marca da Qatar Foundation.

Há dois meses, uma pesquisa da empresa alemã Sport+Markt indicou que a torcida do Barça é a maior da Europa, com cerca de 60 milhões de devotos. Segundo as estatísticas da Federação Internacional de Futebol (Fifa), a equipe é a melhor do futebol mundial da primeira década do século 21 e sua marca, uma das mais midiáticas.

Paradoxalmente, esse clube tão cioso de seu DNA regional foi fundado por um… suíço. Em 22 de outubro de 1899, Hans Gamper, um ex-jogador, pôs um anúncio no jornal – e a coisa nunca mais parou de bombar. O dia 14 de junho de 1925 se transfigurou num dia santo para os culés: em reação à ditadura fascista de Primo de Rivera, a torcida catalã vaiou a plenos pulmões o hino da Espanha. Como represália, o clube foi fechado por seis meses.

Nas primeiras semanas da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), o então presidente do Barça, Josep Sunyo, que era republicano, acabou assassinado por partidários do general Franco, cujas tropas ocuparam e detonaram Barcelona na última fase do conflito. Com a vitória dos nacionalistas, Francisco Franco proibiu oficialmente o uso da língua catalã. Durante os 36 anos de ditadura, a vida do clube e dos culés descambou numa urucubaca lascada. O único reduto em que ainda se falava catalão era o estádio do Barça – fundindo ainda mais clube e região.

O general Franco era tiete do Real Madrid, o que atiçou as saias-justas entre os dois times. Um episódio – protagonizado por um dos maiores craques de todos os tempos – radicalizou aquele antagonismo. O nome da fera era Di Stefano, para muitos um jogador da estirpe de Pelé. Em 1953, o Barça contratou o argentino, depois de Di Stefano ter comido a bola numa excursão pela Espanha de seu time, o Milionários da Colômbia.

Mas aí o Real Madrid meteu o bedelho. Enquanto os blaugranas negociavam com o portador do passe do craque (o clube River Plate), o Real foi direto ao Milionários.
Di Stefano já tinha até disputado três amistosos com a camisa do Barça. No entanto, com o franquismo entrando de sola a favor do time da capital, o melhor que o clube catalão descolou foi uma proposta absurda: o astro argentino faria temporadas alternadas em cada equipe – começando pelo Real. O Barcelona mandou-os catar coquinho, mas nunca engoliu aquele sapo. Daí que atropelar os merengues na corrida pelo passe de Neymar teve um gostinho todo especial.

Ao contrário da maioria dos clubes espanhóis, o Barcelona jamais solicitou reconhecimento pela monarquia nem tratamento de “Real”. Para numerosos escritores, como Manuel Vázquez Montalbán (autor de Autobiografia do General Franco), o Barça cumpre na Catalunha o papel da seleção catalã. Ainda assim, nos últimos anos o clube patrocinou vários amistosos entre um combinado catalão e seleções de outros países – entre os quais o Brasil. Atestando que separatismo não implica provincianismo, em 2005 organizou no Camp Nou um amistoso contra uma seleção de jogadores palestinos e israelenses, que pela primeira vez partilharam uma mesma equipe.

Abençoado

Neymar terá de brilhar num momento em que o futebol espanhol tem baixa presença de jogadores brasileiros. No total, 24, espalhados por 12 clubes, participaram da temporada 2012-2013. No campeonato de 2006-2007 eram 56. Parece remoto o tempo em que Romário, Rivaldo, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho foram eleitos o melhor jogador do mundo, arrebentando pelo Barcelona com uma baciada de gols.

Essa erosão tem dois motivos. Até o título recente da Copa das Confederações, os sucessivos fiascos da seleção brasileira minaram a cotação dos craques canarinhos na Europa. Além disso, a crise econômica europeia bagunçou o cacife dos clubes de futebol. Com exceção do Barcelona e do Real Madrid (e, mesmo assim, malemá…), os outros times espanhóis estão numa pindaíba danada, com poder de investimento menor do que os principais clubes brasileiros.

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Romário, Rivaldo, Ronaldo e Ronaldinho, melhores do mundo nos últimos 20 anos

Por outro lado, Neymar vai encontrar o barcelonismo a seus pés. As reticências que subsistiam em relação ao talento do moicano ruíram com as pirotecnias dele na Copa das Confederações – incluindo um golaço na final contra a Espanha. Já a apresentação de Neymar no Camp Nou arrastou 65 mil culés, a troco de coraçõezinhos feitos com as mãos – e umas meras trocentas embaixadinhas. Proliferou no ato uma legião de neymaretes desde criancinhas. Assim, a palavra tatuada na nuca que ele fez de propósito para seu ciclo blaugrana pode muito bem ser profética: “Blessed” (em inglês, abençoado).

Se a Catalunha sabe dar um bico nas tradições mais sacrossantas da Espanha (como a recentíssima proibição das touradas pelo parlamento catalão), também sabe mimar seus xodós. Se jogar o que sabe, Neymar, que já troca juras de amor eterno com Messi, tem tudo para pegar o touro a unha – e evitar que a vaca vá pro brejo.