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Projetos baseados no Cultura Viva ganham o continente

Projetos inspirados no conceito adotado na gestão Gilberto Gil se multiplicam na América Latina e perdem força dentro de casa

Rogério Reis/Tyba/rba
Rogério Reis/Tyba/rba
O ponto de cultura aos Pés do Santa Marta, no Rio, tem escola de música com direito a bateria infantil. O projeto atinge 4.800 moradores

“Cultura Viva é a revolução do século 21.” A frase de Ivan Nogales, diretor boliviano do Teatro Trono-Compa e coordenador do 1o Congresso Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária, realizado em maio em La Paz, dá a dimensão que o programa Cultura Viva – uma invenção brasileira – tem hoje para a América Latina. “Já não somos apenas o ruído, a ressonância e o apoio estético dos grandes movimentos sociais. Somos também atores de um movimento próprio de transformação social: nós por nós mesmos e um apoiando o outro”, define Nogales.

Construído sem o patrocínio de governos, o congresso reuniu gente de 17 países, dos 35 que compõem o continente, e 1.500 “artivistas” de diferentes faixas etárias e redes culturais. Entre as resoluções, a Declaração de La Paz teve como principal mensagem a defesa da destinação de 1% dos orçamentos dos países para suas respectivas pastas de Cultura – sendo pelo menos 10% desse orçamento endereçado ao Cultura Viva Comunitária. “O mais importante é que foi criado um conselho executivo para encaminhar o plano de trabalho aprovado”, informa Eduardo Balan, idealizador do encontro e membro do Pueblo Hace Cultura (Argentina).

O palhaço Brian, 17 anos, membro da Corporación La Tartana, de Itaguí (Colômbia), viajou nove dias para chegar ao congresso. Mesmo sendo muito jovem, ele não escapou do sorochi – o mal-estar que acama visitantes mais sensíveis aos mais de 3.600 metros de altitude da capital boliviana. “Tudo isso não pesa tanto quanto vale estar aqui e sentir todos juntos revolucionando a cultura latino-americana”, conta.

O espírito “revolucionário” contagiou gestores e parlamentares presentes ao evento. “O congresso foi fogo em barril de pólvora e vai dar um desdobramento fantástico, porque o grande objetivo foi integrar, e integrar para sempre”, afirma a deputada federal brasileira Jandira Feghali (PCdoB-RJ), que coordena junto com Glória Flores, senadora colombiana do Parlamento Andino, a Frente Parlamentar Latino-Americana de Cultura Viva Comunitária lançada no Congresso.

Além da Frente, foi criada uma rede de gestores, composta inicialmente de 47 representantes governamentais de 20 cidades, dez países e cinco ministérios. Essa rede aprovou uma plataforma de ação, definindo responsabilidades a serem executadas nos próximos anos. Para Lula Martinez Cornejo, autora da Lei Cultura Viva aprovada na cidade de Lima (Peru), o encontro mostrou que existem, além de processos e organizações de cultura, servidores públicos que estão assumindo, entre as tarefas de Estado. “Isso representa um trabalho de fortalecimento de coletivos culturais e a promoção da legislação de Cultura Viva como uma política de Estado.”

Para entender o que é Cultura Viva é preciso perguntar: quem faz cultura? “As pessoas acham que o artista é uma qualidade especial de ser humano. Mas, na verdade, cada ser humano é uma qualidade especial de artista”, responde o coordenador do Laboratório de Políticas Culturais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Alexandre Santini.
Isso quer dizer que todos fazemos cultura? Exatamente. Mas como? Segundo o conceito de Cultura Viva, cultura é tudo, daí o desafio de compreender a dimensão que esse conceito representa. Nesse sentido, todo espaço coletivo que expresse potência criativa e afetiva pode ser considerado um ponto de cultura.

Segundo o historiador Célio Turino, idealizador do Cultura Viva durante a gestão de Gilberto Gil (2003-2007) no Ministério da Cultura no governo Lula, não se trata mais de um programa, mas de um conceito que tem ganhado adesão pelo mundo. “Cultura Viva é a potência da energia criadora do povo. É uma política pública que se estrutura a partir dos pontos de cultura e que, na América Latina, incorporou o comunitário – que é a fixação do Cultura Viva em um território, seja ele físico ou mesmo virtual, a partir de comunidades com o mesmo interesse”, define.

Na prática, isso se traduz em programas que buscam reconhecer com dignidade diversos coletivos populares – muitos até então marginalizados, discriminados ou estigmatizados – como pontos de cultura, o que significa também apoiá-lo com recursos do Estado. No Brasil, segundo dados de 2010 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o programa Cultura Viva envolveu 5 mil iniciativas, desenvolvidas por 3 mil pontos de cultura, que atingiram 8,4 milhões de pessoas em 1.100 municípios.

O MinC paga R$ 60 mil por ano, durante três anos – cada repasse é dividido em 12 parcelas mensais de R$ 5 mil – aos pontos de cultura selecionados em editais. A gestão dos recursos é compartilhada entre as organizações e o Estado. O valor deve ser usado apenas para compra de equipamentos e pagamentos de despesas com obras ou ações culturais desenvolvidas pelos pontos.

“Dentro de uma comunidade, o Morro Santa Marta, por exemplo, existe muito resquício daquela coisa do bandido. Então, quando a gente se tornou ponto de cultura, as pessoas disseram: ‘Ah, o ponto de cultura ganha R$ 60 mil’. O que é R$ 60 mil? Não é nada. A pessoa vê você comprando os instrumentos e acha que você está ganhando dinheiro, mas não, você está ganhando os instrumentos”, afirma o músico Robespierre Avila, coordenador do ponto de cultura Aos Pés do Santa Marta, no Rio de Janeiro, e diretor-presidente da ONG Atitude Social, à qual o ponto está vinculado. O projeto nascido em 2003 conta hoje com uma escola de música e uma ilha de edição audiovisual. Cerca de 4.800 moradores de uma das favelas mais famosas do Rio são alcançados pelas atividades.

Amaury Lima, de 16 anos, participa do Aos Pés do Santa Marta desde os 10. Aprendeu a tocar violão, guitarra, percussão e bateria. “Eu não conhecia Bossa Nova, não conhecia MPB. O ponto de cultura abriu minha cabeça, mudou minha visão, me fez conhecer novas possibilidades”, conta Amaury, que já tocou prossionalmente e hoje se dedica aos estudos  de fotografia e ainda atua como figurinista num grupo de teatro. “Nossos sonhos são, sim, possíveis de serem realizados, os meus estão sendo. Mas precisa correr atrás.”

De baixo para cima

“Como historiador, não vejo nenhum outro programa de baixo para cima que incorpore os conceitos Estado-rede, do Manuel Castells, e de Estado ampliado, do (Antonio) Gramsci, na escala em que nós implantamos o Cultura Viva no Brasil. Agora está tendo um refluxo. O MinC fala em 3 mil, mas hoje deve haver no máximo mil pontos recebendo recursos”, lamenta Turino.

“A expansão dos pontos foi desacelerada nos últimos anos”, admite Pedro Vasconcellos, diretor da Secretaria de Cidadania e da Diversidade Cultural, área responsável pela gestão do programa dentro do MinC.  “O programa Cultura Viva encontrou problemas na sua execução, gerando dificuldades para o MinC e especialmente para os pontos de cultura. Diante desse cenário, desde 2010, mais especialmente, estamos buscando soluções. Alguns caminhos foram validados ao longo do tempo, outros sofreram questionamento dos órgãos de controle e estão sendo reelaborados”.

Uma saída para o impasse se dará com a aprovação do projeto de lei que institui a Política Nacional de Cultura Viva (PL 757, de 2011). Depois de ser aprovado pelas comissões de Cultura e de Finanças, o PL agora vai para a Comissão de Constituição e Justiça, concluindo a tramitação na Câmara e seguindo para o Senado. “Se o Senado não fizer nenhuma alteração, o PL não voltará para a Câmara e seguirá para a presidenta assinar. Depois de sancionado,  Dilma terá 180 dias para regulamentar o projeto”, informa Marcelo das Histórias, do Ponto de Cultura Nina Griô, formado por educadores, contadores de histórias, músicos, atores, artistas visuais, em Campinas (SP). A expectativa é aprová-lo até outubro.

Em meio ao cenário de incertezas, as experiências que resistem são um alento para o programa. “Não vamos esperar a atual gestão, nós temos de efetivamente trabalhar com a auto-organização, formas de certificação e reconhecimento desses saberes. Eu entendo todas as universidades públicas latino-americanas como gestoras dessa política”, defende a diretora da Escola de Comunicação da UFRJ e coordenadora do Pontão de Cultura da universidade, Ivana Bentes.

Diversidade

A criatura já superou o criador quando o tema é Lei Cultura Viva. Se no Brasil o PL ainda é um sonho no plano nacional, ele já é uma realidade em níveis locais nas cidades de Lima (Peru), Bogotá, Medellín, Cali (Colômbia), Buenos Aires (Argentina) e Cartago (Costa Rica). “O programa impulsionado pelo município de Lima e o programa Pontos de Cultura, implementado pelo Ministério da Cultura no Brasil, coincidem em trabalhar para ampliar o acesso à diversidade cultural como um direito à cidadania, para dar visibilidade aos êxitos e conhecimentos provocados pelas organizações e para construir uma relação dialógica entre o Estado e a sociedade civil”, explica a coordenadora de Projetos e Gestão Cultural do Ministério da Cultura do Peru, Paloma Carpio Valdeavellano. Desde agosto de 2012 foram reconhecidos 87 pontos de cultura, para os quais o governo peruano oferece oportunidades de financiamento, capacitação, sistematização de experiências e intercâmbios.

Segundo Jorge Melguizo, ex-secretário de Cultura Cidadã de Medellín, apenas em 2013 o orçamento da cidade destinou o correspondente a US$ 470 mil para o Cultura Viva. Não há números oficiais sobre os pontos ativos. “Com certeza há pelo menos 35, mas o número pode ser dez vezes maior, uma vez que cerca de 300 organizações participaram do processo de aprovação da lei em 2010”, atesta. Um dos pioneiros na execução do programa na região, Melguizo discute a autoria brasileira sobre a política: “O Cultura Viva Comunitária não é um modelo made in Brasil, e sim um experimento coletivo na América Latina”.

Ciente desse debate, o brasileiro Vasconcellos, do MinC, avalia: “O êxito desse evento é que finalmente o Brasil não está mais de costas para os seus vizinhos. Então, pode-se dizer que o encontro da Bolívia é um marco nessas relações de cooperação internacional”. Ao se espalhar pela América Latina, o Cultura Viva dá novo fôlego para o programa no país. Bem ao estilo tupiniquim “distraídos venceremos”, como dizia o poeta curitibano Paulo Leminski.