Crônica

A cidade pelos olhos de um cão (guia)

O bicho ajuda o cego a desviar de obstáculos, a atravessar a rua, a encontrar caminhos e a ser livre

São 8 da manhã de uma sexta-feira. Já passaram pela plataforma de embarque do metrô Barra Funda alguns milhares de pessoas. Na minha distração sonolenta, observando o vaivém das escadas rolantes, o trem se aproximava. Senti um solavanco leve nas costas. Na esquiva instintiva, virei e topei um cego e seu cão-guia. Dei licença o mais rápido que pude, enquanto os dois, bem jovens, se falavam sobre o destino. “Direita, para a plataforma de embarque”, pediu o rapaz, roupa bem cortada. A cadela, uma beleza de labradora de pelo curto caramelo, o olhava de soslaio como quem diz “eu sei chefe, mas isso aqui tá uma bagunça”.

Com sua coleira adaptada para a situação, ela decifrou o caminho. O vagão lotou em segundos. Uma senhorinha dessas com cara de avó, já sentada na cadeira azul-clarinha – daquelas reservadas a idosos, grávidas, mulheres com crianças de colo e pessoas com deficiência –, ficou confusa com aquele rapaz com uma cachorra diante dela. Após um vai não vai de segundos, ele solicitou com gentileza à senhorinha que se sentasse na cadeira imediatamente ao lado, ao que foi atendido com um sorriso que diz tanta coisa que dispensa qualquer palavra. Não tinha capricho nenhum naquele pedido, mas uma questão simples: quanto mais perto da saída, menor o enrosco.

Acomodados, ele sacou do bolso um petisco que a companheira engoliu num piscar de olhos. Em seguida, ele fuçou um celular com teclado que puxou do bolso, colocou fones de ouvido brancos e se confortou ao som de alguma música. Na ligeireza habitué, o metrô corria para a estação Santa Cecília, a segunda parada. Eu os observava de perto, num misto de admiração e encantamento. Ela jogada no chão com seu focinho rente ao assoalho, ali no meio da passagem, com ar clássico de cachorro que deixa a gente babando e com vontade de fazer uma carícia. As pessoas desviavam de sua dócil cabeça, enquanto ela acompanhava com olhar de pouca importância.

Desci na estação República, a próxima, e os dois foram em frente. A cena ficou em mim. Coincidentemente, eu havia lido na Folha de S.Paulo um texto que dizia das dificuldades dos deficientes visuais de conseguir um anjo de quatro patas. Logo concluí sem esforço que a batalha foi árdua para aqueles dois estarem no metrô naquele dia.

Oitenta deficientes visuais têm cães-guia no país, num universo que, segundo o IBGE, passa dos 2 milhões. É uma dificuldade atender à demanda de quem deseja um companheiro de quatro patas. Primeiro, pelo alto custo para formação e treinamento, entre R$ 20 mil e R$ 40 mil. A maioria dos bichos vem do exterior, principalmente dos Estados Unidos, pois aqui, diz a matéria, a formação esbarra “na falta de boas linhagens e treinamento correto”. Do que pesquisei, posso dizer que o trabalho de quem busca dar conforto ao deficiente visual por meio de um companheiro cão é louvável. As iniciativas, como em tantas outras questões que merecem atenção pública, vêm dos particulares que se organizam.

Também é recente, de 2005, a lei que dispõe sobre o direito de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhado de um cão. Ou seja, restaurante, shopping, teatro, supermercado, casa noturna, meio de transporte não podem negar acesso.

Mas o que significa ter um cão-guia? À parte o fato de ajudar o cego a desviar de obstáculos, atravessar a rua, encontrar caminhos mais simples e dar, sobretudo, autonomia e liberdade, o bicho faz companhia, traz amor, aprendizado e sorrisos gratuitos.

 

Crônica publicada originalmente no blog Nota de Rodapé.
Leia a íntegra em http://bit.ly/rodape