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Olhar a moldura síria para entender o quadro no Oriente Médio

Conflito aparentemente sem saída na Síria espalha tensão na região e traz ecos da antiga Guerra Fria

“PAREM DE MATAR” Entre alauítas, xiitas, sunitas, sauditas, israelenses, governo e rebeldes, existe o povo da Síria

Se você (leitora ou leitor) debruçar sobre o mapa do Oriente Médio e focalizar a Síria, verá, como parte da mídia ocidental gosta de descrever, bandos de alauítas (o governo de Bashar Al-Assad), xiitas (com base no Irã, em geral aliados dos alauítas, neste caso) e sunitas (apoiados pela Arábia Saudita, pelo Catar e por grupos dessa etnia com base no Iraque) se engalfinhando entre si numa guerra mortífera e, grosso modo, sem saída até agora. A pequena distância, no Líbano, os xiitas do Hezbollah apoiam o governo sírio, e a média distância os israelenses vigiam os caminhos sírios para impedir que armas iranianas caiam nas mãos do Hezbollah.

Mas isso é apenas metade do quadro. Para ver o quadro inteiro, é necessário, em primeiro lugar, empreender uma viagem no tempo. O governo de Bashar Al-Assad é herdeiro (mais presuntivo do que de fato) dos movimentos antigos dos vários nacionalismos árabes, que o Ocidente sempre sabotou, e que no caso da Síria se encastelaram no Partido Baath – do qual, aliás, Saddam Hussein fez parte. Esses movimentos nacionalistas do mundo árabe sempre contaram com o apoio da extinta União Soviética – de que o governo russo, chefiado por Vladimir Putin, se coloca como herdeiro (também mais presuntivo do que de fato).

Por aí já se vê que uma parte do quadro, na verdade, se pinta na moldura. Como se não bastasse, é evidente para o observador que a Arábia Saudita e o Catar estão disputando a primazia em fornecer dinheiro e armas para os rebeldes. A Arábia Saudita é dirigida por uma monarquia sunita. Mas nessa composição pesam tanto o termo sunita como o outro – monarquia. Os movimentos nacionalistas do mundo árabe, no passado remoto e no pós-Segunda Guerra, foram a ameaça mais intensa que essas monarquias – todas extremamente reacionárias, em todos os sentidos – tiveram de enfrentar. Portanto, além de combater xiitas, para esses governos de monarcas e emires (Catar) é importante exterminar o vírus nacionalista e baathista onde quer que ele esteja.

Israel se sente na obrigação de intervir nesse quadro – mais para manter a ideia de que é o guardião do Ocidente diante da barbárie árabe do que para ser efetivo no conflito. Então bombardeia (como sempre, sem declarar nem que sim, nem que não) alvos do governo sírio em torno de Damasco, com a desculpa de que podem ser pontos de transferência de armas do Irã para o Hezbollah, no Líbano – como se isso não acontecesse de outras formas.

Nesse quadro complexo, os Estados Unidos, que temem armar grupos da Al Qaeda ou próximos, que estão cada vez mais controlando espaços políticos e militares entre os rebeldes, decidem anunciar o rompimento do embargo contra o fornecimento de armas a estes. Terá sido uma tentativa de manter o controle sobre para onde essas armas irão? Ou uma tentativa tardia de fortalecer os rebeldes para que estes se assentassem de fato na projetada (que hoje está abortada) reunião de negociações entre o governo sírio e aqueles, em Genebra? Não se sabe. Mas o certo é que, em retaliação, o governo de Moscou decidiu entregar armas antiaéreas (para combater os raids israelenses) ao governo de Damasco, e o governo de Bashar Al-Assad se apressou em anunciar isso aos quatro ventos. Ou seja, esses últimos movimentos trouxeram de volta o esquadro e o compasso da Guerra Fria que muitos consideram finada – algo ingênuo, para dizer o mínimo.

O exército sírio, de Bashar Al-Assad, não é o iraquiano, de Saddam Hussein, que era um castelo de cartas, na verdade sem armas significativas (as alegadas para justificar a invasão) para se opor às potências ocidentais. Aí está uma das chaves da questão. Esse exército – uma corporação fortíssima, como o seu congênere turco, logo ao lado – não vai entregar a rapadura tão facilmente. Uma pergunta que deve obrigatoriamente ser respondida, para chegar a uma deposição – suave ou dramática – de Bashar Al-Assad, é o que fazer com o exército sírio, além daquela sobre o que fazer com o governante.

Como sempre, tais situações intrincadas exigem que se puxe algum fio para que a meada comece a se desfazer. O exército sírio pode ser esse fio. Na verdade, trata-se de negociar com seus líderes militares o que acontecerá na Síria pós-Bashar. Isso envolve a Rússia – afinal, na Síria está a única base naval que ela mantém em porto fora de seu território, numa posição vital para o acesso ao Mediterrâneo, sem passar pelo Mar Negro, cujos estreitos (Bósforo e Dardanelos) são controlados pela Turquia, país membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Aliás, este é um outro país-chave para entender a moldura da questão. A Turquia – agora também sob um governo de partido islâmico, às voltas com rebeliões internas – conta com um exército de tradição nacionalista, repressiva, e disposto a ter uma preponderância regional. Haja vista o esforço que realizou, junto com Brasil, para chegar a um entendimento sobre o programa nuclear iraniano, com evidentes intenções de jogar água fria na fervura nessa espinhosa questão regional e mundial.

Como não bastasse a confusão até aqui descrita, movimentos salafistas em todo o mundo árabe vêm encontrando facilidade entre jovens, muitas vezes desempregados, para recrutá-los para lutar pela “causa islâmica” na Síria, contra o governo de Damasco. Os salafistas eram um movimento doutrinário, de apoio a uma “pureza islâmica”, que foram mobilizados pelo Ocidente na luta para se contrapor à influência soviética na região do norte da África. Terminou medrando entre eles um braço militarizado que, como a Al Qaeda no Afeganistão, galvanizou o movimento.

Ah, sim, antes que a gente se esqueça: no meio disso tudo está o povo sírio. Mas quem se lembra disso, numa hora destas?