As caras das ruas

As redes sociais, a violência policial e a adesão da mídia

Entre o início dos protestos e o ápice, as manifestações ganharam grupos diversos. A brutalidade das PMs e o repentino apoio da imprensa aos “ex-baderneiros” ajudaram

danilo ramos/rba

Atos contra o aumento da tarifa começaram modestos, condenados pela mídia e reprimidos pela polícia; o repúdio à brutalidade causou comoção e inflamou as ruas

Tudo começou na tarde de 6 de junho, quando 2 mil pessoas, convocadas pelas redes sociais pelo Movimento Passe Livre (MPL), parou a Avenida Paulista em protesto contra o aumento das passagens de ônibus e metrô de R$ 3 para R$ 3,20. As manifestações se encorparam nos dias seguintes, assim como a repressão policial. No ápice da barbárie, a Polícia Militar parou São Paulo com uma violência indiscriminada, atingindo até jornalistas e pessoas alheias aos atos. Os movimentos dos “vândalos” e “baderneiros” eram, até então, condenado com veemência por toda a imprensa.

Atividades ocorriam também em outras cidades, especialmente Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília. Novas reivindicações, como deslocamento para saúde e educação de recursos públicos destinados à Copa, eram incorporadas. A convocação de nova rodada de protestos, para 17 de junho, se espalhou pelas redes, reforçada pelo sentimento de solidariedade contra a violência e por outras bandeiras de luta, contra a Copa, a corrupção, a violência e o abandono nas periferias. Mais de 65 mil pessoas marcharam em São Paulo, 100 mil no Rio, 10 mil em BH, 5 mil em Brasília – calculou-se em 250 mil o volume de participantes dos protestos.

As manifestações passaram a ser saudadas pela imprensa como “pacíficas” e os gestos violentos foram tratados como de “uma minoria”. Os “baderneiros” desaparecem das manchetes. Vídeos, fotos e mensagens de grupos “sem rosto”, “sem liderança”, direcionam a fúria para os políticos e a política. No dia 18, novos atos, sem polícia. O jornal O Estado de S. Paulo lança novo serviço pago de notícias em tempo real, a Globo exibe em horário nobre propaganda contra impostos, um vídeo veiculado por uma “brasileira de Los Angeles” convoca estrangeiros a boicotar a Copa; a prefeitura de São Paulo é depredada, sem reação policial.

O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o prefeito Fernando Haddad anunciam o recuo na tarifa, assim como Eduardo Paes no Rio. O mesmo se sucede em dezenas de outras cidades. Mas o preço das passagens já não era a estrela das manifestações. No dia 20, calculou-se em 1 milhão o volume de gente que saiu às ruas para protestar. A “voz das ruas” saiu do varejo municipal, ecoou no Planalto, estilhaçou vidros da Praça dos Três Poderes, acuou o sistema político do país e atormentou a ciência política.

Até o 20 de junho, as principais lideranças políticas do país estavam emudecidas. Quando Dilma fez um pronunciamento em rede nacional na noite do dia 21, pouca gente de expressão havia arriscado alguma avaliação mais apurada do que acontecia.
“Ninguém em sã consciência pode ser contra manifestações, porque a democracia não é um pacto de silêncio, mas sim a sociedade em movimentação, em busca de novas conquistas”, afirmou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu perfil no Facebook na noite de 17 de junho. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso também foi cauteloso: “Isso é a democracia. Sempre há coisas para melhorar. E quem quiser tirar proveito disso já perdeu, porque não é o momento político, é o momento social”.

No decorrer daquela semana, porém, as diversas faces e sotaques das ruas passaram a se aglutinar em formas mais bem definidas. Os movimentos sociais mais tradicionais e os sindicatos, habituados às ruas mas não às redes, identificaram nos clamores bandeiras históricas. Com diferenças aqui e ali, abraçaram a mobilização. Enquanto isso, extremismos, à esquerda e à direita, completavam a difusão de vozes, movidas essencialmente pela agitação virtual.

Choque de causas

As análises das tribos nas redes identificaram a apropriação da onda de manifestações em várias cidades por pautas conservadoras. Na semana do 20 de junho, campanhas com esses perfis atingem milhares de compartilhamentos. Do “fora Dilma” ao “assuma Joaquim Barbosa”, da convocação de uma greve geral para 1º de julho por um internauta ao “contrabando” de causas desconexas. O MPL chegou a declarar que não convocaria mais protestos, criticando a violência contra organizações políticas na Avenida Paulista.

A reportagem da Rede Brasil Atual testemunhou um jovem, conhecido como Bahia, de 21 anos, tentando por mais de meia hora convencer alguns sobre o despropósito da intolerância e da violência. “É doentio. É assustador. É a barbárie. As pessoas agem como animais”, dizia. Organizações sociais mais tradicionais e movimentos comunitários das periferias também passaram a discutir ações conjuntas com a finalidade de disputar o espaço, contra a desvirtuação dos protestos. “O movimento vem sendo ocupado por fascistas, neonazistas ou a extrema-direita brasileira, e o problema da direita brasileira, ao contrário da europeia e norte-americana, é que não aceita o processo democrático”, comentou o jurista Pedro Serrano.

O professor André Singer, do Departamento de Ciência Política da USP, observou que o país pode estar diante de um novo ciclo de conflito relacionado a distribuição de renda. Disse que a presidenta Dilma tomou medidas corajosas, como estimular uma política de redução de juros, comprar uma briga com os bancos pela diminuição do spread e alterar as regras de remuneração da poupança, no que ele chama de “ensaio de desenvolvimento”. Mas a falta de investimento atual pode indicar, segundo o professor, “limites do pacto de classes” promovido desde o início do governo Lula.

Singer não vê risco de golpismo, mas pondera: “A democracia foi uma conquista árdua e intensa sobretudo para a classe trabalhadora. Agora, ouve-se o apito da panela de pressão. É possível que a gente esteja na beirada de um novo ciclo de conflito distributivo”.

Em comentários na Rádio Brasil Atual, o cientista político Paulo Vannuchi alertou que atitudes antidemocráticas exigiam um reagrupamento das forças de esquerda. “A democracia não se dá só através das instituições, precisa das ruas. Mas não existe democracia sem partidos ou instituições representativas”, afirmou. E defendeu que a presidenta Dilma exercesse a voz de comando que a democracia lhe conferiu. “É hora de ela aparecer em público.”

Reviravolta nos poderes

Ao decidir ir a público em cadeia nacional de rádio e TV na noite do dia 21, Dilma valorizou a “voz das ruas” e prometeu abrir o diálogo entre as instituições e com os movimentos organizados para melhorar os serviços públicos. O foco na reforma política tomou a dianteira no “dialogo entre as instituições”, até porque, para valer em 2014, tem de ser aprovada um ano antes. Gente de peso no Congresso, porém, não gostou de a presidenta ter-lhes jogado no colo a questão, antes uma Constituinte exclusiva, depois um plebiscito, no qual a população decida sobre onde mexer no sistema político.

Foi o preço da omissão. Projetos de mudança adormecem no Legislativo há anos e os políticos não levaram nenhum adiante, embora o tema seja um antigo clamor de entidades da sociedade.

E, se para Paulo Vannuchi o financiamento privado das campanhas “é a mãe de todas as corrupções”, para o sociólogo Wagner Iglesias a reforma política é a “mãe de todas as reformas”. “Claro que a questão do transporte, do posto de saúde, da creche, da escola, são mais prementes e urgentes na vida do cidadão. Mas a reforma de fundo, capaz de mudar a forma como o Estado brasileiro funciona, é a reforma política. E a questão central é o fim do financiamento privado de campanhas eleitorais.

Não há espaço para sermos ingênuos nessa discussão”, alerta. “Tome-se a lista de grupos privados que financiam candidatos, de A a Z, e se vê que muitos são empresas que têm negócios com o poder público. Mudar isso é revolucionar a relação entre Estado e sociedade.”

Pesquisa realizada entre abril e maio pelo Núcleo de Estudos e Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo revelou profunda desconfiança em relação aos partidos e mostrou que 89% da população considera a reforma política importante, e 65% preferem que sejam eleitos representantes exclusivamente para fazer a reforma. A ideia de uma Constituinte exclusiva chegou a ser apresentada, mas foi abortada. Restou a proposta de plebiscito, que ainda estava por se concretizar no fechamento desta edição.

Na opinião do deputado Henrique Fontana (PT-RS), ele próprio autor de um projeto de reforma política que não conseguiu fazer andar, o mais importante é que a pauta ganhou status de prioridade. “Há oito semanas ela estava totalmente paralisada”, disse.

 

Agenda a toque de caixa

danilo ramos/rbamenos circo
Movimentos querem 10% do PIB para educação

Além da reforma política, o Planalto levou a governadores e prefeitos das capitais a dedicação a cinco pactos entre os poderes públicos voltados para o atendimento das principais reivindicações levantadas pelas manifestações.

Os pactos envolvem ações em questões como responsabilidade fiscal, combate à corrupção, saúde, educação e transporte – em resumo, firmou Dilma, os governos devem “colocar o cidadão, e não o poder econômico, em primeiro lugar”.

O cotidiano do Congresso passou a ser pressionado pela iniciativa do governo de dar respostas às ruas. Os presidentes da Câmara e do Senado implementaram uma agenda de votações a toque de caixa para passar uma mensagem positiva à população.

A Câmara aprovou na madrugada do dia 26 o projeto que destina os recursos dos royalties do petróleo: 75% para a educação e 25% irão para a saúde. Os movimentos defendem que, por mais que os royalties representem um bom reforço, seria importante concretizar a destinação de 10% do PIB para o ensino público, como prevê o Plano Nacional de Educação. O orçamento atual corresponde a 6,1% do PIB de 2012, e é resultado da soma dos 18% dos impostos da União e de 25% dos de estados e municípios.

Na área da saúde, as organizações sociais também comemoram a destinação de parte dos recursos dos royalties do petróleo, mas por considerá-la insuficiente defendem uma plataforma orçamentária mais robusta. “É preciso ficar claro que esses 25% são adicionais e que se defina um mínimo que a União deva investir, além dos royalties. Se não, vamos colocar com uma mão e tirar com outra”, diz o coordenador do Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública, Ronald Ferreira.

A Constituição determina um gasto mínimo em saúde apenas para os estados e para os municípios, que têm de direcionar respectivamente 15% e 12% do seu orçamento. A União não tem um mínimo obrigatório estabelecido por lei. Os movimentos querem que se defina o comprometimento de pelo menos 10% das receitas.