Educação

Limites da expansão

Iniciada há dez anos, a ampliação da rede federal de ensino superior dobrou o número de vagas. Mas ainda faltam pessoal e a conclusão das obras

Acervo professores drª Gisele felice e Dr. mauro farias/Univasf

Alunos da Univasf fazem escavação no Parque Nacional da Serra da Capivara. Enquanto aprendem técnicas, têm a chance de novas descobertas, como os restos de uma fogueira, cerâmicas e utensílios de populações que viveram no local há 2 mil anos

 

No sudeste do Piauí, em pleno semiárido nordestino, o Parque Nacional da Serra da Capivara abriga a maior concentração de sítios arqueológicos das Américas, muitos dos quais com pinturas rupestres e outros vestígios da presença do homem pré-histórico. É num desses sítios que os alunos de arqueologia e preservação patrimonial do campus São Raimundo Nonato da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) fazem escavações. Enquanto aprendem técnicas, têm a chance de novas descobertas, como os restos de uma fogueira, cerâmicas e utensílios de populações que viveram no local há 2 mil anos.

Muitos desses estudantes vêm de várias regiões do país – e, como o Indiana Jones do cinema, em busca de aventura. Mas encontram a rotina árdua do trabalho em campo, em laboratórios, e dali saem preparados para trabalhar em centros de pesquisa, órgãos públicos e grandes empresas no Brasil e no exterior. “Esta é a primeira universidade federal a oferecer um curso fundamental para a nossa descoberta enquanto sociedade, enquanto nação, e para a preservação de nosso patrimônio”, diz o professor Mauro Farias Fontes, já viu cinco turmas se formarem ali.

Adolfo OkuyamaUnivasf
A univesidade foi criada para promover o desenvolvimento de todo o semiárido nordestino

Segundo ele, outro diferencial do campus é a parceria com o parque nacional e com a Fundação Museu do Homem Americano (Fundham), entidade científica criada em 1986 por pesquisadores brasileiros e franceses, entre eles a arqueóloga paulista Niède Guidon.

Aos 80 anos, Niède está à frente de diversas atividades. Dá palestras, recebe alunos para discutir projetos, compartilha informações e pesquisas. Com sede em Petrolina (PE) e unidades em Juazeiro, Senhor do Bonfim e projetos para outra em Paulo Afonso (BA), a Univasf foi criada para promover o desenvolvimento de todo o semiárido nordestino. Oferece graduação em ciências biológicas e agrárias, medicina, enfermagem e engenharia, entre outras áreas, além de residência médica e multiprofissional e mestrado no campus da Bahia e no de Petrolina.

Integração Sul

Integração regional é objetivo de outra instituição, a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Sonho antigo dos moradores do sudoeste paranaense, oeste catarinense e noroeste gaúcho, a instituição mantém unidades em Chapecó (SC), Cerro Largo e Erechim (RS) e Realeza e Laranjeiras do Sul (PR). Esta última foi em parte construída num assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A universidade tem ao todo 33 cursos, entre os quais Medicina, Administração, Arquitetura e até Engenharia de Energias Renováveis e de Aquicultura.

“Em Laranjeiras, a agroecologia é tema transversal dos cursos e projetos para a produção industrial orgânica, inclusive de leite. A de Ciências Econômicas tem ênfase no cooperativismo”, conta o coordenador administrativo do campus, Elemar Cezimbra, que conhece bem a história da UFFS.

Segundo ele, a instituição é conquista de movimentos sociais, igrejas e sindicatos de toda a região que, em 2005, se uniram em prol de uma universidade federal. Juntos, pressionaram autoridades, formaram comissões, ajudaram a elaborar o projeto de lei que a criou, acompanharam a tramitação no Congresso e, como não podiam ajudar a elaborar o plano pedagógico porque é “coisa de doutor”, brigaram para indicar representantes. Para completar, criaram o chamado Conselho Estratégico Social, de caráter consultivo, aprovado pelo regimento da universidade e com assento no Conselho Universitário.

Adolfo OkuyamaParque Nacional da Serra da Capivara
Parque Nacional da Serra da Capivara

Em abril passado, ficaram prontas as instalações próprias, com alojamento e refeitório que poderão ser usados por cursos de extensão nos fins de semana para famílias inteiras de agricultores. “Pôr a universidade para funcionar mesmo enquanto era construída foi uma briga nossa; não podíamos esperar mais”, diz Elemar, lembrando que os mais de mil alunos da unidade, todos vindos da escola pública e com rendimento familiar de até três salários mínimos, não teriam onde estudar.

Até 2004, o Brasil tinha ao todo 45 universidades e 148 campi federais. O estado de Tocantins, por exemplo, não tinha nenhum, assim como as regiões onde hoje estão a Univasf e a UFFS. Essa realidade começou a mudar com o Programa Expansão, criado pelo governo federal em 2003 para atender às metas do Plano Nacional de Educação (PNE) de expandir o sistema e o acesso, reduzir desigualdades regionais e formar recursos humanos para pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico. Pela primeira vez, passaram a ser construídas unidades universitárias públicas e gratuitas no interior do país voltadas às necessidades e potencialidades regionais.

Segundo o Ministério da Educação (MEC), até 2010 foram criadas 14 novas universidades federais e 126 campi em todas as regiões. De 2003 a 2010, houve aumento de 109,2 mil vagas e foram criados 28 mil postos para docentes e 38,5 mil para servidores técnico-administrativos. Com isso, a rede federal passou para 70,1 mil professores e 105 mil servidores. Desde 2003, foram investidos quase R$ 10 bilhões na expansão e reestruturação que permitiram elevar o número de vagas para cerca de 230 mil.

Com o Programa de Apoio aos Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), em 2008 foram criados 2.428 novos cursos. No total, de 2003 para cá, 42.099 vagas de trabalho foram abertas por meio de concurso, das quais 21.421 para docentes e 20.678 para técnicos-administrativos. Quanto à infraestrutura, do total de 3.885 obras, 2.417 já estão concluídas (62%) e 1.022 (26%), em execução. O governo prevê que até 2014 existam no Brasil 63 universidades federais, com 321 extensões distribuídas em 272 municípios.

Assessoria de Comunicação UFFS, Campus Laranjeiras do SulUniversidade Federal do ABC (UFABC)
Universidade Federal do ABC (UFABC)

No ano passado, o MEC constituiu uma comissão avaliadora com representantes do próprio ministério, da União Nacional dos Estudantes (UNE), da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) e da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Segundo seu relatório, foram construídos 368 laboratórios, 292 salas de aula, 43 bibliotecas, 61 restaurantes, 33 moradias, 182 espaços administrativos, 260 áreas multifuncionais, 43 áreas esportivas e 27 auditórios. Quanto ao aspecto pedagógico, a comissão destaca que houve uma mudança de paradigma com a organização de novas estruturas curriculares, como os bacharelados interdisciplinares implantados em 15 universidades.

Entre elas está a Universidade Federal do ABC (UFABC). Ao ingressar conforme nota do Enem, o estudante opta pelo bacharelado em Ciência e Tecnologia ou Ciências e Humanidades, com duração de três anos cada um, com metade das disciplinas obrigatórias e liberdade para compor o restante do currículo, de modo a poder refletir sobre as grandes questões da atualidade. Findo o curso, recebe diploma e tem acesso à pós-graduação ou pode cursar, na própria universidade, oito modalidades de engenharia, entre as quais aeroespacial, além de outros programas de bacharelado e licenciatura. “Esses cursos, cada vez mais valorizados pelo mercado de trabalho, proporcionam uma visão global da área escolhida antes de os alunos darem continuidade aos estudos”, afirma o reitor Helio Waldman.

Outro aspecto que distingue a UFABC é a qualidade de seus cursos de mestrado e doutorado. O de Nanociências obteve nota 5 da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), vinculada ao MEC, maior que a de cursos semelhantes em universidades mais antigas, como a de Brasília (UnB). Com unidades em Santo André e em São Bernardo, há previsão de novo campus em Mauá, também no ABC paulista.

A  retomada do Estado como indutor da expansão do ensino superior, entretanto, esbarra em questões a serem equacionadas, como a falta de valorização da carreira docente. Nos últimos anos do governo Lula e primeiros da gestão Dilma Rousseff, houve uma recuperação salarial tímida e insuficiente para impedir uma greve nacional deflagrada em maio do ano passado, que se estendeu até setembro, chegando a ter adesão de 58 das 59 universidades. “Defendemos a oferta de vagas para os filhos da classe trabalhadora, mas acompanhada da contratação de professores, técnicos e administrativos em número proporcional ao crescimento da rede e infraestrutura condizente. O trabalho é precário em unidades inacabadas, sem laboratório, funcionando em prédios inadequados, comprometendo o aprendizado”, afirma a  presidenta da Associação dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), Marinalva Silva Oliveira.

Jornal Correio do Povo do ParanáParticipação
Comunidade decide sobre abertura de novos cursos

Suas críticas são compartilhadas pelos integrantes da comissão que avaliou a expansão. Em seu relatório, eles defendem a ampliação com qualidade, de modo contínuo e cumulativo, até que a taxa bruta de matrículas atinja 50% e a líquida, 33% da população de 18 a 24 anos; o crescimento do número de mestres e doutores para, no mínimo, 75% do corpo docente, dos quais 35% de doutores; a elevação gradual das matrículas no mestrado e doutorado para formar anualmente 60 mil mestres e 25 mil doutores; e, principalmente, que os novoscursos, campi e universidades ofereçam pesquisa, extensão, graduação e pós-graduação voltadas ao desenvolvimento regional em espaços com infraestrutura adequada, professores e técnicos e políticas de assistência estudantil.

Presidente da UNE até o início de junho, Daniel Iliescu endossa as reivindicações e lembra que essa expansão universitária no Brasil veio na sequência de anos de sucateamento do setor. Nos anos 1990, ajustes fiscais, cortes orçamentários e redução dos investimentos em educação pública, em todos os níveis, diminuíram em 24% os recursos para custeio e em 77% o investimento em salas de aulas, laboratórios, computadores e acervo bibliográfico. “Em 2001, durante uma greve na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os manifestantes abraçaram um poste em referência ao corte de energia elétrica nos prédios”, diz Iliescu. Segundo ele, a situação no ensino superior federal era tão séria que, para não se perder o bonde da história, foi feito o que era preciso: trocar o pneu com o carro em movimento.