economia

Correndo na esteira

Com desonerações, redução de custos das empresas, preservação de empregos e poder de compra, economia mantém o fôlego, mas ainda não saiu do lugar

SERGIO AMARAL/RBA

“Meus filhos têm curtido muito. Todo mundo sabe que carro zero é o sonho de qualquer consumidor”

Nos últimos dois anos, a doméstica Maura Helena Gomes conseguiu realizar planos que antes considerava apenas sonhos. Maura queria montar um quarto para a neta Júlia, de 8 anos, o que não teve condições de oferecer à filha – por ter sido mãe adolescente e porque as condições em que criou as crianças foram muito adversas. Com seus filhos já adultos, ela pensou em ampliar o lote onde mora em Brazlândia, na região administrativa do Distrito Federal. Colocou tudo no papel, pesou, e teve de aguardar. Recentemente, conseguiu abrir um crediário de R$ 900 e comprar todos os móveis para Júlia. “Antes eu não teria conseguido. Agora o quarto tem tudo, até cômoda, edredom bonito e bonequinhas”, conta. A decisão ficou mais fácil porque, como fez pesquisas anteriormente, notou que os preços estavam ligeiramente menores e as condições do crédito, mais interessantes.

Maura recebe um salário mínimo e sai todos os dias de casa por volta das 5h para trabalhar. Pega quatro ônibus para se locomover até a Asa Norte, no Plano Piloto de Brasília. No ano passado, a doméstica tinha conseguido adquirir uma geladeira. “Se tudo der certo, a próxima compra será uma televisão nova para minha mãe.” O comércio agradece, e os fabricantes idem.

A situação de Maria Miranda, funcionária de uma empresa de serviços de limpeza, é semelhante. Maria mora em Samambaia (outra região administrativa do Distrito Federal). E reclamava de chegar em casa cansada e ainda ter de enfrentar o tanque para lavar a roupa dos cinco filhos. A lavadora que ganhou de presente dos dois mais velhos mudou seus dias. “A prestação cabe no bolso e, se um deles não puder pagar em determinado mês, eu completo”, simplifica.

O design gráfico Leandro Luna nunca precisou carro, até se casar, no ano passado. Pesquisou, fez as contas e conseguiu comprar um Celta, com uma entrada pequena e financiamento em 48 prestações. “Hoje não consigo imaginar como seriam nossas vidas sem um carro, porque corremos muito, cada um para seu trabalho”, contou.

Com trabalho e o salário estáveis há algum tempo, o que contribuiu para a decisão desses consumidores de comprar o que antes achavam que não dava foi o preço mais em conta e o crédito mais fácil. Esse cenário se tornou possível no momento em que o governo decidiu abrir mão de arrecadar uma parte dos encargos e impostos embutidos nos preços dos produtos. A redução de tributos como IPI, PIS/Cofins e das contribuições das empresas ao INSS já atinge 43 setores da economia e deve aumentar no segundo semestre. E representará para os cofres públicos, segundo estimativas do Ministério da Fazenda, uma renúncia fiscal de R$ 202,8 bilhões até o final de 2014.

JONNE RORIZ/ESTADÃO CONTEÚDO/AEEMPREGOS
Vagas no setor eletroeletrônico aumentaram 1,77% este ano

Mantido esse volume nos mercados produtivo e consumidor, o governo espera que boa parte dele retorne de outra forma, por meio da movimentação da economia: as empresas vendem mais, mantêm ou ampliam o número de funcionários; os trabalhadores preservam seu poder de compra, realizam planos, compram bens, poupam ou pagam dívidas. E o Estado mantém em parte sua arrecadação, preservando a capacidade de investimentos graças a esse giro mais forte no motor da economia.

“Tem sido grande a procura. Lembro de uma mulher que saiu daqui toda feliz, contando que a geladeira que levava era maior que a da patroa”, diz o vendedor João Batista Diniz, de uma loja das Casas Bahia. “Trabalho nisso há oito anos, e o que aconteceu nos últimos meses foi uma revolução até maior que as facilidades de crédito.”

 

Tempo estável

Conforme pesquisa da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), os negócios do setor ficaram estáveis em abril na comparação com março, mas aumentaram em relação ao ano passado. As vendas e encomendas saltaram de 41%, em abril de 2012, para 60% neste ano, enquanto recuou de 36% para 19% o total de empresas que registraram queda. Na mesma sondagem, a entidade verificou que, em abril, 66% das empresas mantiveram constante o número de empregados, e 19% disseram ter contratado mais funcionários, ante 15% que informaram ter reduzido o quadro. O setor fechou o primeiro trimestre com 186 mil postos de trabalho – a alta no ano foi de 1,77%.

“Se por um lado o crescimento não deslanchou, o consenso é que as medidas evitaram grandes retrações”, diz o economista Alexandre Santos, da consultoria Ferreira Nóbrega Associados, lembrando que o país vem conseguindo se proteger de reflexos da crise que abala a Europa. “Sem os incentivos, podemos dizer que o desempenho certamente teria sido bem pior”, afirma o ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda Júlio Gomes de Almeida.

Na indústria automobilística, as vendas de veículos leves nacionais entre janeiro e abril alcançaram resultado 13,9% a igual período do ano passado. Foram vendidas 866 mil unidades nos primeiros quatro meses do ano, 250 mil só em abril. Ainda assim, o cenário é visto com cautela. O presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Luiz Moan Yabiku Júnior, pondera que a comparação com 2012 é prejudicada. “Janeiro a abril do ano passado foi uma fase muito difícil de vendas. A redução do IPI só ocorreu no final de maio.” Para ele, a base de análise estará mais confiável do meio do ano para a frente. De todo modo, o desempenho repercute bem. O setor empregava 145,1 mil trabalhadores há um ano. Em abril de 2013, eram 153 mil.

Se o presidente da Anfavea ainda não tem base segura para avaliar o impacto da redução do IPI, a empregada doméstica Maria Claudinei da Silva tem. Ela diz que o preço mais em conta a encorajou a trocar o carro de dez anos por um modelo zero. Claudinei trabalhava na roça, no Piauí, antes de mudar para Sobradinho (DF). Ela conta que apanhou na vida para ter as contas sob controle e sempre pensa muito, antes de gastar. Nos últimos seis anos, fez uma poupança e no ano passado tomou coragem. “Meus filhos têm curtido muito. Todo mundo sabe que carro zero é o sonho de qualquer consumidor.”

O que são desonerações

Efeitos das desonerações

Impactos futuros

SERGIO AMARAL/RBASonho realizado
Maura percebeu que os preços estavam mais baixos e montou o quarto para a neta Júlia

Quando se fala em desonerações, as pessoas lembram mais facilmente da redução do IPI e da facilidade observada nos últimos anos para a compra de carros e eletrodomésticos. Mas o setor de bens de capital também teve desonerações da folha de pagamentos, com redução da alíquota patronal a recolher à Previdência, e melhores condições de manejar tanto os créditos tributários como as linhas de financiamento do BNDES com taxas de juros reduzidas. As desonerações abrangem da indústria automobilística ao setor têxtil, passando por petroquímica, informática e até a cesta básica.

Uma das iniciativas mais polêmicas é o alívio na contribuição previdenciária patronal. O benefício ocorre da seguinte forma: o recolhimento das empresas ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), em torno de 20% sobre a folha, passa a ser na forma de uma taxa entre 1% e 2% do faturamento. A previsão é que a renúncia fiscal apenas com essa medida  seja de R$ 35 bilhões nos próximos dois anos. “Assim, as empresas poderão contratar mais trabalhadores, aumentando o emprego no país para esses setores”, resumiu em abril, durante entrevista, o ministro da Fazenda, Guido Mantega.

A expectativa é baseada na própria experiência. Uma das respostas do Brasil à crise de 2008 foi estimular o mercado interno, com a redução do IPI, em 2009, sobre o preço dos carros – uma vez que a cadeia automobilística tem impacto no emprego em vários ramos da indústria. O governo esperava que a medida ajudasse a União a ter em 2010, juntando desonerações tributárias, previdenciárias e financeiras, uma renúncia fiscal de R$ 113,8 bilhões. O resultado acabou sendo de R$ 144 bilhões – sendo R$ 21 milhões a parte das medidas adotadas. Em compensação, a arrecadação total da Receita Federal ficou em R$ 979,07 bilhões.

Em 2011, o total da renúncia fiscal foi de R$ 187 bilhões – R$ 20,7 bilhões provenientes de medidas de desoneração. Mesmo assim, a arrecadação geral da União subiu para R$ 1,07 trilhão. Em 2012, o governo elevou o volume de itens desonerados para R$ 44 bilhões. E conseguiu manter a arrecadação geral do Tesouro, que fechou em R$ 1,08 trilhão.

Sobre uma eventual repercussão nas contas da Previdência, o ministro deixou claro que o déficit previdenciário está sob controle e a União está preparada para compensar eventual redução na arrecadação, mas acredita que essa compensação virá das próprias medidas de estímulo, com mais contratações, mesmo com a redução da contribuição patronal. “A renúncia significa que vamos arrecadar um pouco menos nesse imposto, mas, como ela estimula um crescimento maior, se deixa de receber na folha de pagamentos e acaba se arrecadando mais PIS/Cofins, assim como os estados arrecadarão mais ICMS e outros tributos. Há uma compensação pelo nível de atividade maior.”

ASSUERO LIMA/RBAChance
Eduardo Carneiro comprou equipamentos novos para suas pizzarias

Apesar da confiança, a iniciativa tem preocupado entidades como a Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas (Cobap), que teme baixas nas contas da Previdência. O pesquisador Paulo Kliass, doutor em políticas públicas e gestão governamental, observa que, quando se consideram apenas as parcelas do sistema que têm suas contas corretamente equacionadas (os trabalhadores urbanos), o regime apresenta superávit. “Se considerarmos o acumulado das operações de 2012, a situação dos trabalhadores apresentava um volume de receitas de R$ 274 bilhões e um total de despesas de quase R$ 250 bilhões”, afirmou Kliass em artigo recente. No entanto, ele receia que a desoneração da folha desarrume essa situação de equilíbrio e exija compensação mais sistemática por parte do Tesouro Nacional no futuro.

Alguns especialistas, com apoio das centrais sindicais, chegaram a defender a disseminação da contribuição sobre o fatu­ramento, e não sobre a folha de pagamentos. Desse modo, quem emprega mais seria mais beneficiado; e quem fatura muito – bancos de investimento e empresas com alto desempenho tecnológico, por exemplo – contribuiria mais mesmo operando com quadro reduzido. A Previdência, entretanto, ainda não se sente pronta para efetivar uma mudança desse naipe.

Durante a publicação da Medida Provisória 582, que resultou nas últimas desonerações, emendas apresentadas por parlamentares incluiriam outros 15 setores entre os beneficiados. Mas o Executivo as vetou, levando em conta que faltaram indicações sobre seu impacto no Orça­mento. De acordo com o secretário de ­Política Econômica, Márcio Holland, todo setor incluído no programa de desoneração tem de ser objeto de análises prévias.

Para que haja tempo para que novos estudos sejam feitos, tramita no Senado outra MP (601), que inclui mais 36 setores a serem beneficiados com redução de impostos a partir de janeiro de 2014. No bolo, há empresas que prestam serviço de transporte, construção, armazenagem de contêineres, táxi aéreo, jornalístico e comércio, entre outros. Inicialmente, a MP previa apenas a inclusão de 20 segmentos ligados a construção civil, manutenção e reparação de embarcações e alguns de varejo. Mas o relator, senador Armando Monteiro (PTB-PE), ex-presidente da Confederação Nacional da Indústria, incluiu outros 16. “Há atividades importantes que não estavam contempladas”, diz.

Visões diferentes

 

Nível de emprego

As consequências e resultados das desonerações são vistos de forma diferente pelos vários setores. Para o superintendente da Associação Técnica Brasileira da Indústria de Vidro (Abividros), Lucien Belmonte, os efeitos da desoneração – no caso desse setor iniciada em janeiro de 2012 – foram pequenos para os produtores de vidro comum, usado na construção civil e em eletrodomésticos. Por isso, as áreas de varejo e construção, por exemplo, gostariam que a medida fosse facultativa, ou seja, poder optar entre recolher pela folha de pagamentos ou com base no faturamento – o que fosse menos oneroso. O governo não concordou, já que o objetivo, além de reduzir os custos e tornar o setor competitivo, é assegurar o nível de emprego, ainda que essa contrapartida não seja explicitada na letra da lei, como defendem as centrais.

“Essas empresas têm capital intensivo, são bastante automatizadas, e por isso não têm uma folha de pagamentos pesada”, salienta Belmonte, acrescentando que entre aquelas que usam mais mão de obra, como as que produzem insumos para os setores farmacêutico e de cosméticos, a previsão é de uma economia maior.

Na Braskem, maior petroquímica da América Latina, a diretoria comemora. A previsão é que o impacto positivo da redução da alíquota de PIS/Cofins incidente sobre as matérias-primas da indústria química venha a ser de R$ 600 milhões este ano, de acordo com seu presidente, Carlos Fadiga.

A Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), por sua vez, diz que o principal efeito da desoneração foi o repasse dos ganhos para os preços praticados no mercado externo, o que permitiu a redução do valor médio da exportação do calçado brasileiro em 15,7% em 2012. “É uma boa tentativa de recuperar o terreno perdido para a concorrência asiática. Foi importante também para manter o setor estável, mas não o suficiente para restabelecer a performance de anos anteriores”, diz o diretor executivo da entidade, Heitor Klein.

De forma semelhante se posiciona a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). Segundo a entidade, a desoneração devolveu ao setor R$ 920 milhões em 2012, o equivalente a 0,9% de sua receita global. Seu presidente, Aguinaldo Diniz Filho, afirma que a intensidade do impacto tem variação, mas de modo geral houve ganho representativo. “Não resolve o problema, mas ajuda.”

Para o secretário executivo da CNI, Flavio Castelo Branco, a visão discordante das empresas tende a diminuir com o tempo, uma vez que cada companhia será estimulada a adaptar seu modelo de gestão para aproveitar os benefícios da desoneração.

 

Inquietação

CÉLIO MESSIAS/ESTADÃO CONTEÚDO/AECalçados
Para o setor de calçados, a desoneração permitiu a redução do preço do calçado para exportação em 15,7% em 2012

O país criou 196.913 vagas com carteira assinada em abril, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Foi o menor resultado para o mês desde 2009, mas o melhor do ano. De janeiro a abril, o saldo é de 549 mil postos de trabalho formais, ante 702 mil em igual período de 2012. O total chega a 1, 087 milhão em 12 meses. Desde o início do atual governo, em janeiro de 2011, o mercado formal criou 4.139.853 empregos.

O diretor do Departamento de Emprego e Salário do Ministério do Trabalho, Rodolfo Torelly, reconhece que a movimentação das vagas no ano passado foi irregular, mas está confiante em que o incremento no ritmo de novas contratações será proporcionado pelos efeitos das medidas do governo para reaquecimento da economia. Ele lembra que, além do aumento do número de setores beneficiados pela desoneração, outras iniciativas, como a redução do custo da energia elétrica, ainda influirão no desempenho das empresas.

“O estímulo à criação de empregos depende de outras variáveis, como níveis de produção, faturamento e demanda. Só num segundo momento é que os efeitos da medida serão sentidos”, acentua o professor Gilberto Fernandes, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), que está concluindo tese sobre variações no mercado de trabalho na Universidade de Brasília (UnB).

A própria Anfavea ajudou a pressionar o governo pela continuidade das medidas de desoneração, uma vez que, antes do bom desempenho em abril, no trimestre entre janeiro e março os números do setor estavam abaixo das espectativas. Posição semelhante tem a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq). Para o vice-presidente da entidade, José Velloso, as medidas ainda não foram suficientes para resolver de maneira eficaz o problema da falta de competitividade, mas ajudaram a indústria de máquinas e equipamentos depois da crise econômica mundial de 2008.

Embora satisfeitos, de um modo geral, com os benefícios, os setores vivem expectativas diferentes quanto à relação entre efeitos imediatos e os próximos momentos. “Ainda não foi observado efeito no resultado final do trabalho. Por outro lado, consegui adquirir equipamentos novos”, diz o comerciante Eduardo Carneiro, dono de duas pizzarias em João Pessoa. A expectativa de Eduardo é que as melhores condições de se equipar hoje acabem em muitas amanhã.