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CLT, 70 anos, e as polêmicas sobre sua origem e seu futuro

Embora um senso comum aponte inspiração fascista da CLT, há teses consistentes, à esquerda, que mostram outras tendências. E insistentes, à direita, a favor de seu fim

Operários da Viscoseda, das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, Bairro Fundação, São Caetano do Sul, SP, 1933 <span>(Foto Acervo Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul)</span>PRESSÃO Bem antes da CLT, o Brasil viveu momentos de conflito intenso entre trabalho e capital. Paralisações, como a de 1917, já apontavam necessidade de um mínimo de garantias. Na foto, enterro do sapateiro Martinez <span>(Foto Acervo Iconographia)</span>Influenciada pelo clima da época, a CLT nasceu na ditadura Vargas, que condicionou direitos ao controle das relações de trabalho. Na foto, Comemoração do 1º de maio no Campo do Vasco da Gama, Rio de Janeiro, 1942 <span>(Foto Acervo Iconographia)</span>

 

Nascida em meio a uma guerra mundial e, internamente, a uma ditadura, a Consolidação das Leis do Trabalho acaba de completar 70 anos possivelmente como uma das legislações brasileiras mais faladas (em geral malfaladas), mais estudadas e, paradoxalmente, menos conhecidas. Seus 900 artigos já passaram por várias atualizações e resistiram a diversas tentativas de reforma. O último remanescente da comissão responsável pela elaboração do anteprojeto da CLT, o jurista Arnaldo Süssekind, que morreu no ano passado, chegou a dizer que os três aspectos fundamentais da relação trabalhista – tempo, salário e dispensa – já estão flexibilizados. Ele também questionava o senso comum que relaciona a consolidação brasileira com a Carta del Lavoro, da Itália fascista, escrita em 1927.

Uma pesquisa mais cuidadosa aponta outras fontes para o que se transformaria no Decreto-Lei nº 5.452 de 1º de maio de 1943. A comissão formada para criar a CLT teria ainda se inspirado, por exemplo, na encíclica Rerum Novarum (Coisas Novas), de 1891 (papa Leão XIII), e no 1º Congresso Brasileiro de Direito Social, realizado em 1941, em São Paulo. A comissão também sofreu influência de outras linhas de pensamento – socialista, comunista, positivista.

Surgida ainda no contexto da Revolução Industrial, a encíclica deixa claro sua oposição às ideias socialistas de igualdade, ao considerar “impossível que na sociedade todos sejam elevados ao mesmo nível”, porque a natureza estabeleceu diferenças “múltiplas e profundas” entre os homens. Defende a propriedade particular e critica as greves, associando-as à desordem. Mas também fala, por exemplo, da necessidade de estabelecer limites no número de horas diárias de trabalho e de uma remuneração mais justa.

Greves

Argumenta: “O trabalho muito prolongado e pesado e uma retribuição mesquinha dão, não poucas vezes, aos operários ocasião de greves”. E julga um grande erro considerar “inimigos” o capital e o trabalho, porque, afinal, um não viveria sem o outro. Palavras parecidas seriam ditas 122 anos depois, em 9 de abril deste ano, quando o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Carlos Alberto Reis de Paula, recebeu representantes de centrais sindicais: “Não existe capital sem a valorização do trabalho e sem proteger a livre iniciativa”. Para o ministro, o princípio básico da CLT é “colocar o trabalho como instrumento básico e necessário na relação social”.

Já a Carta del Lavoro, aprovada em abril de 1927 pelo Gran Consiglio del Fascismo, órgão do partido liderado pelo então premiê italiano Benito Mussolini, exprimia os princípios sociais do ideário fascista e suas ideias de organização do trabalho, assumidamente atrelada ao Estado. No primeiro de seus 30 artigos, já afirma que a nação italiana “é uma unidade moral, política e econômica que se realiza integralmente no Estado fascista”. E acrescenta, no item seguinte, que o trabalho “é um dever social” que deve ser tutelado pelo Estado.

A professora doutora Marly Cardone, livre-docente em Direito do Trabalho pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que há muitas identidades entre o texto italiano e o brasileiro. E cita, já questionando: “Espírito colaboracionista das entidades sindicais (negando o conflito), sindicato único por base territorial, direito a férias após um ano de serviço, repouso semanal remunerado, limitação da jornada de trabalho, trabalho noturno com remuneração superior à do diurno, indenização por tempo de serviço. Será preciso mais?”

Contexto

A professora observa que as primeiras leis trabalhistas surgiram nos anos 1930, com caráter “tuitivo” (defensor) dos direitos do trabalhador. O modelo sindical, em sua análise, pretendia negar o conflito de classes, com empregados e empregadores devendo buscar sempre a conciliação. “Era uma filosofia, ou um princípio, que infelizmente prejudicou nosso sindicalismo”, afirma Marly, para quem isso ajudou a criar os chamados “pelegos”, dirigentes que só desfrutavam do posto ao não desafiar o atrelamento determinado pela estrutura oficial.

O 1º Congresso Brasileiro de Direito Social “começou a sistematizar o incipiente Direito”, diz Marly, que também é presidente do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior, entidade responsável pelo evento de maio de 1941. “A legislação trabalhista era um punhado de leis. Iniciou-se a ciência do Direito Social”, afirma.

Com 500 participantes e 155 teses inscritas, o congresso, por sinal, foi realizado em comemoração aos 50 anos da Rerum Novarum. Algumas das ideias iriam parar na CLT, como o artigo 9º, que considera nulos os atos praticados com o objetivo de “desvirtuar, impedir ou fraudar” a aplicação dos preceitos contidos na consolidação. Uma das recomendações do encontro foi justamente a criação de um Código do Trabalho. “Se houve leis sociais antes de 1930, não houve uma legislação social (…) Ninguém ignora que vivemos sempre, até 1930, no regime do puro individualismo”, discursou no encerramento o próprio Cesarino Júnior, pioneiro do tema, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Para o coordenador de Estudos Sociais e Culturais da Fundação Joaquim Nabuco, Túlio Augusto Velho Barreto de Araújo, a CLT deve ser vista em seu contexto histórico. “Havia um debate intenso entre o liberalismo, como marco do capitalismo, e a visão corporativa do Estado. A CLT, e toda essa legislação trabalhista que vai se esboçando a partir de 1930, com a revolução, significava também a possibilidade de universalizar direitos que as categorias, individualmente, iam conquistando.”

O pesquisador observa que só foi possível criar essa estrutura porque havia um Estado autoritário na época (o Estado Novo terminaria apenas em 1945). Mas, do ponto de vista dos direitos sociais, considera “extremamente avançada” a legislação criada na era Vargas. “A contrapartida para ter esses direitos de forma universal é o Estado exercer o controle absoluto das relações de trabalho”, diz Araújo, identificando um dilema presente até hoje: se de um lado pode ser vista como um certo empecilho para a negociação coletiva, de outro funciona como proteção social para categorias menos organizadas.

Industrialização

Diretor do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), José Dari Krein concorda em ressaltar as circunstâncias históricas que antecederam a CLT, com uma profunda crise da ordem liberal no mundo, consolidação dos Estados nacionais e surgimento do capitalismo baseado na grande empresa, o que exigiria regulação. Seriam três as alternativas, muito discrepantes, aliás, ao liberalismo: a Revolução Russa, a social-democracia ou o fascismo-nazismo.

As forças que chegam ao poder no Brasil em 1930 por meio da Aliança Liberal, lideradas por Getúlio Vargas, embutem pensamentos inspirados no positivismo e um novo projeto, baseado na industrialização – até os anos 1940, a agricultura era a principal força econômica brasileira. “Essas forças sabem que a industrialização significa a introdução do assalariamento”, analisa Dari. Uma nova força operária pode significar conflitos, greves. Assim, o sistema de regulação do trabalho que começa a ser pensado “busca a paz social, busca evitar a existência de uma sociedade conflitiva, mas considerando também que o trabalho precisa ser valorizado”.

A professora e pesquisadora Magda Barros Biavaschi contesta de forma veemente a afirmação corrente sobre a relação entre Consolidação das Leis do Trabalho e Carta del Lavoro. Na apresentação de sua tese de pós-doutorado, afirma que a CLT ser cópia do texto italiano “é insustentável tanto teórica quanto empiricamente”, citando diversas linhas de pensamento do período.

Seu estudo aborda as transformações políticas e econômicas da época, quando o comunismo era visto como “ameaça” ao Ocidente. “Getúlio deparava, ainda, com uma efervescente discussão que movimentava a esquerda e a social-democracia europeia: a planificação da economia. Reformas das estruturas capitalistas eram implementadas pela social-democracia sueca, pelos EUA do New Deal e também, ainda que com marcadas diferenças, pela Itália fascista e, a partir de 1933, pela Alemanha nazista. O Brasil não poderia ser pensado descolado dessa realidade.”

Magda procura ainda demonstrar a importância da intervenção do Estado, considerando o ambiente de 1930, nas relações econômicas e sociais, “sobretudo nos processos de industrialização e transformação da sociedade brasileira em uma outra, moderna, com seus trabalhadores constituídos como sujeitos de direitos”. A superação do liberalismo passava pela regulação do mercado de trabalho. (Leia entrevista com a pesquisadora na página da Rede Brasil Atual. O atalho éhttp://bit.ly/rba_magda_biavaschi.)

A presença do Estado na vida em sociedade é a questão que se discute até hoje. E, sem meios-termos, se reflete entre quem defende e quem quer destruir a CLT.

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Entrevista: Uma utopia operária

Há décadas o professor John French, da Universidade Duke, nos Estados Unidos, pesquisa o movimento operário brasileiro. Em 2001, lançou no Brasil o livro Afogados em Leis, sobre a CLT, que ele considera uma legislação avançada. Mas faz a ressalva de que nem tudo saiu do papel.

Em seu livro sobre a CLT, o senhor diz que um historiador do trabalho acostumado com os Estados Unidos fica atônito com a liberalidade com que a consolidação estabeleceu direitos e garantias. Visto por essa perspectiva, qual é a importância da CLT no Direito Social?

No papel, o Brasil da CLT é uma utopia operária. Em comparação com a CLT, a legislação trabalhista americana é retrógrada e mesquinha. Nossa classe dominante tem verdadeiro ódio pelos trabalhadores organizados que tentam melhorar salários, benefícios e condições de trabalho. Juntando uma ideologia que não reconhece coletividades e um individua­lismo exacerbado, os governos do nosso país têm mostrado pouco apreço pelos direitos econômicos e sociais dos trabalhadores, menosprezados na prática e na legislação. No meu estado (Carolina de Norte), nossos legisladores e o governador republicanos já cortaram o seguro-desemprego, diminuindo o pagamento por semana e o número de semanas antes de perder o benefício. Fizeram isso apesar de um nível de desemprego aberto que fica entre os piores do país (9,4% em fevereiro). É um estado abertamente antissindical, com menos de 5% de operários sindicalizados e sem direito de negociação coletiva para os trabalhadores dos governos e municípios. E, sem um SUS, 10% do nosso povo não tem nenhuma cobertura de seguro médico. Nossos políticos não aceitaram um aspecto do Obamacare (como é chamado o programa de saúde elaborado pelo governo Obama) que ia dar cobertura médica com dinheiro do governo federal, deixando meio milhão de pessoas sem cobertura.

O que o senhor pensa sobre as raízes da CLT? Havia preocupação com uma efetiva proteção social ou o objetivo maior era controlar o movimento trabalhista?

Com fortes traços do corporativismo católico e fascista italiano, as iniciativas trabalhistas do Estado eram uma arma contra tentativas de organização não tutelada pelo Estado autoritário, especialmente nos primeiros 15 anos da era Vargas. Ao mesmo tempo, porém, aquelas leis dos anos 1930 também eram produto de um reformismo autóctone dentro da intelectualidade brasileira, sobretudo os advogados, que utilizavam a legislação para ampliar seu espaço de ação e influência e minimizar a opressão secular dos que trabalhavam numa sociedade injusta. O objetivo era uma “paz social” baseada no esmagamento do movimento operário antissistêmico. Desconhecendo a validade da luta de classes, o modelo clássico da CLT era baseado no vínculo estreito entre um paternalismo vazio e uma violência feroz dos operários que verdadeiramente acreditavam nas promessas feitas pelo Estado.

Ainda que nem toda a legislação tenha sido cumprida, a vida dos trabalhadores brasileiros teria sido pior se não houvesse a CLT?

Com uma classe empresarial reacionária e uma classe política retrógrada em comparação com Vargas, o império trabalhista da CLT ofereceu condições para a luta por gerações de militantes sindicais que tentavam – utilizando astúcia numa luta desigual – criar um contrapoder operário sindical e político que poderia influenciar o Estado para implementar as promessas da CLT. Os vícios da CLT consistiam em um chamamento para a luta operária, que, por sua vez, reconheceu o paternalismo cínico por meio das boas-novas da justiça social prometida.

Seria imaginável uma CLT em qualquer outro país? Nos Estados Unidos, por exemplo?

Nenhuma legislação tem um significado único e nenhum julgamento – negativo ou positivo – tem sentido eternamente, através das décadas e conjunturas diversas. Em sua origem, as leis trabalhistas eram produto de uma sociedade desigual em crise com uma nova classe nascente e vista como ameaça pelas classes dominantes de todos os matizes. A legislação era, sem dúvida alguma, inovadora em relação a um liberalismo teórico do século 19 avesso à intervenção estatal nas relações sociais e econômicas, como nos Estados Unidos. Nesse contexto, a CLT era sem dúvida avançada internacionalmente e em termos teóricos. Ao mesmo tempo, sempre houve um problema na parte prática, com seu conteúdo viciado e pela falta de vontade política para a implementação do que foi prometido no papel.

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Arqueologia da lei

Em maio de 2007, a edição número 12 da Revista do Brasil trouxe uma entrevista com o crítico literário, professor e integrante da Academia Brasileira de Letras Alfredo Bosi ao então colega de USP Flávio Aguiar, hoje correspondente da RBA na Europa. Na conversa, intitulada “Arqueologia da CLT”, ele afirma que a legislação trabalhista é positivista, e não fascista.

Na ocasião, introduzia Aguiar: “Imagine um Brasil onde os trabalhadores não têm férias nem descanso remunerado, não há salário mínimo, as mulheres não têm licença-maternidade e a jornada de trabalho não tem limite. Esse era o mundo antes das leis trabalhistas, que começaram a ser promulgadas em 1931, com a criação do Ministério do Trabalho, logo depois da Revolução de 1930. Era? Esse mundo pode estar à nossa frente, com a feroz desregulamentação das relações de trabalho promovida com ares de ‘modernização’ pela ideologia neoliberal, que tomou conta da mídia conservadora no Brasil – e também de uma parte do Congresso”.

Bosi considera a comparação entre CLT e Carta del Lavoro uma meia-verdade, aliás, menos, brinca: “Seria apenas um quinto de verdade. Em bloco, a CLT foi um passo de modernização e de equiparação da política trabalhista brasileira à do resto do mundo, digamos, civilizado. Foi um passo positivo inegável. Todas as reivindicações substantivas foram atendidas e sistematizadas”. O estudioso reforça a ideia de contextualização. “Para começo de conversa, é necessário pensar por que o grupo que assume o poder com a Revolução de 1930 foi mais sensível à questão do trabalho do que todos os outros que dominaram a República Velha, a República do Café com Leite”, diz.

A entrevista completa pode ser revista aqui