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À margem da margem

Por resistência das próprias comunidades e por falta de políticas públicas, a identidade cultural das populações ciganas sofre com o preconceito, a desinformação e até o risco de extinção

Paulo Pepe

De longe já se avistam as tendas de lona laranja, enfeitadas com panos coloridos, em meio a tufos de mato. No acampamento cigano próximo à estação de trem de Itaquaquecetuba, São Paulo, vivem cerca de cem pessoas. Não há água encanada nem banheiros. As necessidades são feitas atrás de uma construção abandonada. Crianças correm entre as tendas e mulheres sentadas no chão de terra conversam. Acabam de voltar do centro da cidade, onde foram tentar ler a sorte de quem aceitasse o serviço. Sorriem com dentes encapados de ouro, mas segundo Elizete de Moraes, mulher do chefe do acampamento, o dinheiro é pouco. “Dá para levantar uns R$ 25 por dia. É difícil. As pessoas têm medo da gente.”

A pouco mais de uma hora dali, Yáskara Guelpa, com feições e roupas indianas, vive numa ampla casa no bairro do Brooklin, de classe média-alta. Na espaçosa sala, panos indianos forram o teto e as paredes, ao lado de quadros de deuses hindus e santos – como a Santa Sara Kali, protetora para muitos ciganos. Filha de indianos, Yáskara é jornalista, feminista e muçulmana. Como muitos ciganos no país, nunca foi nômade e é realizada profissionalmente – foi diretora de uma grande revista feminina. Embora transmita aos filhos, netos e bisnetos a tradição herdada dos pais, não sai por aí dizendo que é cigana.

O preconceito sempre fez parte da vida dessas duas mulheres. Elas compõem uma das minorias mais marginalizadas do Brasil. Apesar de viverem no país há quase 500 anos, muitos ciganos mantiveram-se à parte da sociedade, com língua própria, vida nômade e costumes nunca compreendidos pelos “gadjôs”, os não ciganos. Falar mal ou desconfiar deles é absolutamente comum. A reportagem saiu à rua para perguntar o que as pessoas achavam deles. “Ladrões”, “vagabundos” e “aproveitadores” foram as respostas mais usadas. Mio Vacite, famoso músico do Rio de Janeiro (sua história foi contada na novela Explode Coração, de 1995), passou grande parte da vida brigando para mudar a definição de “cigano” nos dicionários: “boêmios; astutos, velhacos, trapaceiros”, eram sinônimos que constavam do Aurélio.

A generalização evidencia a ignorância sobre essa comunidade tão heterogênea. Existem três clãs no Brasil, cada qual com sua história e língua particulares. Os ciganos Calon, de origem ibérica, aportaram aqui expulsos como bandidos de Portugal, na época colonial, e ainda vivem em barracas e mantêm o estilo de vida nômade. Os Rom e os Sinti, vindos da Europa Central e do Leste, chegaram no início do século passado, integraram-se à sociedade e hoje são ricos comerciantes, advogados, acadêmicos. Mas não importa a classe social, o estigma atinge a todos. “Dizem que nós roubamos galinha, roupa de varal, bujão de gás e crianças”, resume Cláudio Iovanovitch, de uma rica família de comerciantes em Curitiba. “Só não lesamos o erário, isso fica por conta de outras etnias”, brinca o ativista, presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana do Paraná.

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Luana recolhe do varal os panos coloridos que enfeitam sua tenda no acampamento de Itaquaquecetuba

Nomadismo e rolos

A discriminação prejudica ainda mais os ciganos nômades, os Calon. É difícil arrumar terreno para montar acampamento, e muitas famílias seguem sendo expulsas de cidade em cidade como na época colonial. “Você arma a barraca todinha e de um dia pro outro tem de tirar e ir embora. Chega o pessoal da prefeitura e diz que não pode ficar”, conta Claudinei Pereira, do acampamento de Itaquaquecetuba. O estigma é ainda mais reforçado porque, na falta de alternativas, alguns acabam sendo empurrados para a ilegalidade para conseguir dinheiro. O chefe do acampamento, Euclides Ferreira, conta como os homens levantam algum trocado: “Vivemos de rolo: vender carro, trocar, a gente compra mercadoria para revender do Paraguai…”.

Existem no Brasil milhares de acampamentos como esse. A maioria não tem infraestrutura nem recebe visita de agentes de saúde ou assistente social. A Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) estima que 90% sejam analfabetos. Em Itaquaquecetuba, a maioria das crianças nunca foi à escola, nem seus pais. Claudinei teve de brigar por uma vaga para o filho de 8 anos. Diferentemente da maioria dos ciganos nômades, ele quer que os filhos estudem, tenham carteira de motorista, possam chegar num lugar e se virar sem ter de perguntar que ônibus é esse ou que placa é aquela

Por falta de certidão de nascimento, não podem ter carteira de identidade ou de motorista, votar, entrar na fila da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) nem se alistar no programa Bolsa Família. “Muitas vezes o cigano só ganha certidão de nascimento quando morre. Há séculos os ciganos nascem, vivem e morrem às próprias custas e risco”, explica Cláudio Iovanovitch. Muitas vezes, o Estado só chega em forma de polícia. O padre Jorge Pieron, da Pastoral dos Nômades, diz que as visitas são frequentes e muitas vezes agressivas. “A polícia não reconhece que a barraca é o lar do cigano e, portanto, inviolável segundo a lei brasileira”, conta ele, que já morou em acampamentos em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. “Muitas vezes eu preciso agir para evitar prisões arbitrárias.”

Políticas públicas

Acabar com esse círculo vicioso é ainda mais complicado pela total falta de informação por parte do poder público. Nunca foi feito um levantamento oficial sobre quantos são os ciganos ou como vivem. O IBGE jamais incluiu a categoria nos seus levantamentos. Nem mesmo as organizações ciganas têm números confiáveis: as estimativas variam de 250 mil a 1 milhão de indivíduos no país. “É uma falha nossa”, admite o subsecretário de Promoção dos Direitos Humanos da SEDH, Perly Cipriano.

Para Yáskara Guelpa, que representa a etnia na Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, a desinformação leva à discriminação nos serviços essenciais. “Os profissionais de saúde não sabem quem somos, alguns têm preconceito e outros um romantismo estereotipado”, diz.

Em 2002, demandas dessa população começaram a ser incorporadas ao Plano Nacional de Direitos Humanos. Recentemente, alguns avanços têm ocorrido. Em 2006, o 24 de maio, dia de Santa Sara Kali, tornou-se Dia Nacional dos Ciganos. No ano passado, o Prêmio Culturas Ciganas, do Ministério da Cultura, ofereceu R$ 10 mil a 20 projetos de resgate e valorização dessa cultura. E foi lançada a Cartilha Nacional dos Direitos Ciganos. Elaborada pela advogada cigana Mirian Stanescon, representante dos ciganos no Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, a publicação conta um pouco da história do povo no Brasil e lista direitos e reivindicações do movimento.

Desde o lançamento, a cartilha vem sendo divulgada em comunidades em todo o país, em um projeto liderado pelo Centro de Referência dos Direitos dos Povos Ciganos, parceria da SEDH com a Pastoral dos Nômades, que oferece assessoria jurídica à comunidade. Outros ministérios acompanham a caravana para divulgar políticas voltadas ao povo cigano. “Queremos resgatar sua autoestima. É a primeira vez que o governo escuta os ciganos”, conta Mirian Stanescon. “A proposta é combater o preconceito que existe entre as autoridades”, explica o padre Wallace Zanon, coordenador do Centro de Referência.

Mas muitas políticas anunciadas pelo governo – como um projeto educacional voltado para a etnia e inclusão do grupo no cadastro nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) – ainda não andaram. Segundo o Ministério da Saúde, o processo está parado porque o cartão do SUS está sendo reestruturado. Mesmo assim, alerta o Ministério, é inconstitucional negar atendimento hospitalar a ciganos, mesmo sem documentos. Por isso, um dos focos desses encontros tem sido levar informação aos municípios, para que atendam os ciganos e disponibilizem terrenos com infraestrutura para eles. Mas as conversas são apenas informais. “Não temos autonomia para exigir nada deles”, diz Perly Cipriano, da SEDH.

Cláudio Iovanovitch se diz cético: “O governo brasileiro está inadimplente com a nação cigana. Aquele ciganinho debaixo da tenda, por mais paupérrimo que seja, gera impostos sobre tudo o que consome, mas por enquanto não existe ainda nenhuma política pública em prol desse segmento”. Padre Wallace reconhece as boas intenções, mas reclama da falta de ações concretas. “Enquanto isso não acontecer, os ciganos continuarão comemorando o seu dia nacional na condição de povo invisível, à margem da margem da sociedade.”

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Nadjarah Sallen, do clã Calon, reza para Santa Sara Kali na gruta do parque Garota de Ipanema

Cultura em extinção?

Os primeiros ciganos chegaram ao Brasil degredados de Portugal entre os séculos 16 e 18, para livrar a metrópole desse povo de “escandaloso procedimento”, nas palavras de dom João V. Aqui recebiam um tratamento cruel, que só mudou em 1808. Com a chegada da corte, passaram a ser vistos com romantismo e sua cultura foi valorizada. Muitos enriqueceram, em especial com o comércio de escravos; mas com a Abolição perderam tudo. No começo do século 20 ocorreu a segunda grande imigração. Os Rom, vindos do Leste Europeu, acabaram sendo incluídos na sociedade, embora até hoje vivam com discrição. No livro A História dos Ciganos no Brasil, o historiador Rodrigo Corrêa Teixeira observa que eles historicamente aparecem como “incivilizáveis” e “inúteis”. Livrar-se deles fazia parte do projeto de construção da identidade nacional.

Um dos problemas que hoje preocupam a comunidade cigana é a perda da identidade cultural. Até por conta da discriminação, muitos grupos têm perdido o conhecimento da língua, danças e costumes. “Meu povo está em extinção”, sentencia Cláudio Iovanovitch, da Associação de Preservação da Cultura Cigana do Paraná.

Iniciativas de se organizar e reivindicar políticas públicas que preservem sua identidade esbarram muitas vezes nos próprios ciganos, que permanecem como comunidade fechada e dividida. Muitos se negam a ensinar a sua língua (que é ágrafa, ou seja, não tem escrita) para não ciganos. O linguista Fábio Dantas de Mello teve de convencer ciganos Calon da cidade de Mambaí (MG) para poder fazer sua pesquisa. As gerações mais jovens estavam perdendo palavras do seu idioma, usando-as mescladas ao português. Fábio elaborou uma lista temática de palavras-chave com sua devida tradução para publicar em livro, mas não o fez a pedido dos ciganos.

O antropólogo Nicholas Ramanush, cigano do clã Sinti, está prestes a lançar o primeiro dicionário da sua língua, o sintó. “A língua está se perdendo porque nunca foi escrita”, acredita. Para ele, os ciganos deveriam abrir sua cultura para poder preservá-la. Ao mesmo tempo, deveriam estar mais abertos à cultura e educação não ciganas. Sua ONG, Embaixada Cigana do Brasil, promove alfabetização voluntária no acampamento de Itaquaquecetuba.

Outras tradições ciganas destoam cada vez mais em tempos modernos, como o machismo, presente ainda em algumas famílias, e os casamentos arranjados entre adolescentes. O músico Mio Vacite admite ser conservador: “É uma questão de preservação da etnia. Se você deixa a menina chegar aos 20, 21 anos, ela pode se apaixonar por outro rapaz cigano ou não cigano, o que é pior ainda. Qual é a função da mulher? É seguir os costumes do marido. Então vai ser mais uma ovelhinha fora do rebanho”.

Saindo da lona

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“Tem lugares em que não dá pra falar. Não posso arriscar o emprego”, diz Adriana Sbano. Cigana do clã Kalderash, professora de circo e integrante de uma tradicional família circense, ela prefere esconder sua origem nos colégios de classe alta em que leciona.

Benedito Sbano, o palhaço Picoli, pai de Adriana, conta que muitas famílias circenses no Brasil são ciganas, mas não falam por medo de discriminação.

A história está repleta de personalidades cuja origem cigana permanece desconhecida – como a poeta Cecília Meirelles, o palhaço Carequinha e o violinista Guerra Peixe.

O caso mais ilustre foi o presidente Juscelino Kubitschek. De origem austro-húngara, seu bisavô foi um dos primeiros ciganos Rom a chegar ao país.

Mais recentemente, alguns têm assumido sua etnia. Entre eles, o músico Wagner Tiso, o comediante Dedé Santana e a atriz Maria Rosa.

“Tem alunos que acham maravilhoso, outros ficam surpresos. Seria um crime negar minha origem e não defender o povo cigano com unhas e dentes”, diz Dantas da Cruz, professor do Departamento de Biologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA).

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