Ponto de Vista

Valeu a pena

Com todos os percalços, marcados pelos anos Collor e FHC, os 20 anos do restabelecimento das eleições diretas para presidente da República merecem ser comemorados

Em 1989 o Brasil realizava as primeiras eleições diretas para a Presidência da República desde 1960. A renúncia do presidente Jânio Quadros, em agosto de 1961, iniciou o processo de crise institucional que levaria ao golpe de abril de 1964 e a 21 anos de regime militar, interrompido com a eleição indireta de Tancredo Neves em 1985. O longo período deixou graves sequelas históricas.

A pior foi a deseducação política, que trouxe o conformismo das pessoas, o desencanto com a cidadania e com a corrupção, que atingiu quase toda a sociedade. O regime cooptou políticos conservadores e estimulou a entrada dos aproveitadores e oportunistas, que sempre existem, para o simulacro de atividades políticas. No Congresso Nacional e nas assembleias estaduais formaram-se maiorias de cooptados, filiados à Arena. O problema se agravou em 1968, com a instituição do AI-5, que encabrestou a Justiça, extinguiu as eleições para governadores e fechou, por algum tempo, o Congresso, para reabri-lo depois, mais acovardado.

A democracia é um regime cujas virtudes só descobrimos quando dela estamos privados. Em 1964, tal como haviam feito em 1954, quando Getúlio Vargas f oi levado ao suicídio, os grandes jornais e emissoras de rádio se orquestraram, alimentando a histeria dos desinformados. Dizia-se que Jango e todos os que com ele se aliavam eram comunistas, partidários do amor livre, ateus, que iriam fechar igrejas, confiscar apartamentos da classe média para entregá-los aos favelados e acabar com a propriedade privada.

O cardeal Jaime Câmara, do Rio, trouxe ao Brasil um sacerdote norte-americano, o padre Peyton (ex-capelão militar), a fim de pregar a derrubada do governo democrático, nas ruas do Rio e de São Paulo, em “defesa da família”. As consequências históricas e imediatas foram curiosas: durante a ditadura militar, e talvez em decorrência da repressão, do desemprego e do arrocho salarial, os costumes brasileiros sofreram violenta revolução.

Depois de vários anos de exaustiva e persistente luta política, o poder passou às mãos civis, ainda em pleito indireto, com a eleição de Tancredo Neves, em 1985, frustrada por sua doença e sua morte. Seu sucessor, José Sarney, cumpriu no principal o compromisso da aliança que derrubara o sistema autoritário. Promoveu a abolição dos sistemas repressivos, legalizou os partidos de esquerda então proscritos, convocou a Assembleia Constituinte que elaborou a Carta de 1988 e garantiu as eleições presidenciais de 1989. Em três décadas de jejum eleitoral para a escolha de presidentes, censura à imprensa e cassações de mandatos, pouco se haviam renovado os quadros políticos.

Acrescia-se, ainda, o trauma nacional com a morte de Tancredo, o que favorecia a escolha de um candidato jovem. Essas circunstâncias, aliadas a uma propaganda política caríssima e agressiva, “construíram” a candidatura de Fernando Collor.

O homem que era a representação mais autêntica das oligarquias foi transformado em defensor dos descamisados e caçador de marajás – que retornaram mais tarde, recebendo todos os atrasados. Poucos meses depois de sua posse já se sabia das atividades cada dia mais ousadas de Paulo César Farias, o tesoureiro íntimo do governo. A corrupção era o de menos: Collor privatizou 11 empresas estatais, colocou na rua mais de 100 mil servidores, promoveu o desemprego em massa. Após o impeachment de Collor, coube a Itamar Franco restaurar em parte a credibilidade na política e no Estado, embora seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso, tenha adotado a política neoliberal de Collor, com as privatizações desastradas.

Com todos os percalços, esses 20 anos de democracia foram positivos. Possibilitaram que um trabalhador chegasse ao poder. Sem diploma universitário, ele liderou a recuperação da economia, redistribuiu parcelas da renda por meio dos programas sociais, fundou universidades e escolas técnicas e colocou o país na agenda política do mundo.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil