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Uma história na mão e um futuro a construir

Trabalhadores enfrentaram Estados autoritários e omissos, incorporaram direitos e influenciaram nos rumos do país. O desafio da atual geração de sindicalistas é consolidar o espaço conquistado e construir um novo padrão de desenvolvimento para o planeta

Jesus Carlos/ImagemLatina

Passeata dos Metalúrgicos do ABC em 1º de maio de 1981

Outubro de 1945, dia 29. Os militares depõem o presidente Getúlio Vargas e colocam fim à ditadura do Estado Novo. Dois dias antes, a pernambucana dona Lindu dava à luz seu sexto filho, em Garanhuns (PE): Luiz Inácio da Silva. O menino que nasceu num momento conturbado da história assumiria 30 anos depois a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, também num período ditatorial, dando início a uma nova fase do sindicalismo. Em breve, essa trajetória do imigrante nordestino que se tornou referência para os movimentos sindical e social chegará aos cinemas. Lula, Filho do Brasil, dirigido por Fábio Barreto, deve estrear em janeiro. 
O longa-metragem retrata a vida do metalúrgico de seu nascimento em Garanhuns até a morte de sua mãe, em 1980, quando estava preso pelo regime militar.

“Três quartos da população não conhecem a vida de Lula. Todo o seu carisma foi construído em cima da superação de perdas e de desafios. É isso que o filme mostra. E que, ao mergulhar no movimento sindical, ele esteve à frente do principal momento da história recente. O sindicalismo foi o coração do que fez o Brasil mudar”, ressalta o cineasta Fábio Barreto.

Essa fase foi um grande divisor de águas. O movimento, além de sofisticar os embates na relação capital-trabalho, ampliou sua atuação, passou a cobrar governos, opor-se a medidas antissociais e a formular projetos para a Nação. Não à toa, Lula se tornaria chefe de Estado – atualmente em seu sétimo ano de mandato e, mesmo ante uma feroz crise internacional, na posição de presidente com maior índice de aprovação de todos os tempos. “Quando a sociedade acredita nela mesma, o Estado muda”, sintetiza Fábio Barreto. Embora o diretor afirme que Lula, Filho do Brasil não tem cunho político nem pretende fazer reconstituição histórica, é impossível refazer o trajeto do imigrante sem observar a história do país sendo reconstruída.

Otavio de Souza/Divulgaçãopau-de-arara
No filme Lula, Filho do Brasil, o diretor Fábio Barreto recria a jornada da família de Lula rumo a São Paulo num pau-de-arara

Categoria social

Durante a primeira metade do século 20, o movimento sindical brasileiro buscava uma identidade. 
A legalização das entidades de classe começou a ganhar corpo na década de 1930, já no governo Vargas. Os sindicatos, porém, nascem e funcionam sob a tutela do Estado. Para a professora de História Contemporânea da USP Maria Aparecida de Aquino, de forma atrelada ou não, a regulamentação das entidades foi decorrência de um movimento trabalhista genuinamente nacional: “Foi a primeira experiência que, em suma, trouxe o sentimento de criação de uma categoria social. Ou seja, o reconhecimento dos trabalhadores enquanto classe e a incorporação dos sindicatos à vida da Nação”.

Antes, observa a historiadora, o Brasil viveu uma experiência sindical “importada”, o anarco-sindicalismo, com a chegada dos imigrantes europeus para substituir a mão-de-obra escrava. “As leis trabalhistas vieram com muita luta e foram reunidas anos depois na CLT. Se os sindicatos eram atrelados ou não, essas leis foram ao encontro das necessidades sociais do momento”, destaca a historiadora. Foi ali que a jornada de trabalho de 48 horas, o descanso semanal remunerado foram conquistados; surgiram a carteira profissional e a Previdência Social, o salário mínimo. O país atravessava a ditadura do Estado Novo. Mesmo assim, várias greves foram deflagradas. “O número de trabalhadores presos foi muito maior que no pós-1964, quando os alvos do regime foram outros segmentos sociais”, afirma Maria Aparecida.

Depois de uma viagem de 13 dias num pau-de-arara, em 1952, o menino Luiz Inácio, seus irmãos e a mãe chegaram ao litoral de São Paulo. Getúlio Vargas, de volta ao comando do país, dessa vez por voto direto, mantinha a mesma conduta em relação aos sindicatos, com intervenções e repressão nas entidades. Setores do movimento resistiam. Em 1953, por exemplo, foi deflagrada uma greve de 300 mil trabalhadores de várias categorias no estado de São Paulo. A paralisação durou quase um mês e conquistou 32% de reajuste salarial. Por força desse movimento, no ano seguinte o salário mínimo foi reajustado em 100%.

Outras greves vieram depois, já com Juscelino Kubitschek no poder. “A polícia reprimia, mas não nos intimidava. Tínhamos fibra”, lembra Consuelo de Toledo Silva, a primeira mulher a integrar a direção do Sindicato dos Bancários de São Paulo, na eleição ocorrida em 1956. “A greve era a nossa pequena revolução”, completa a ex-bancária do Banco do Comércio e Indústria, hoje com 83 anos.

Mordaça e assistencialismo

Em São Paulo, Lula foi engraxate e office-boy. Aos 14 anos, estreia sua carteira de trabalho e no início dos anos 1960 consegue vaga no curso de torneiro mecânico no Senai. A organização dos trabalhadores crescia. Em 1961, uma grande greve exigia de melhores salários à formação de um ministério nacionalista. O movimento influenciaria na conquista do 13º salário dos trabalhadores urbanos. O Congresso só aprovou o decreto de João Goulart após forte pressão popular.

Quando a elite brasileira impulsiona o golpe de 1964, promove a mais intensa repressão política da história do país. As ocupações militares e as intervenções atingiram cerca de 2 mil sindicatos. Luiz Inácio passou a trabalhar em várias metalúrgicas até ser contratado pela Villares. Em 1969 foi eleito suplente da diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos. “Ele mergulhou na vida sindical como forma de superar a morte de sua primeira mulher”, conta Fábio Barreto. E assumiria a presidência do sindicato em 1975. No ano seguinte, surge o movimento contra a carestia. Protestos contra a ditadura ganham força após os assassinatos do operário Manuel Fiel Filho, em janeiro de 1976, e do jornalista Vladimir Herzog, três meses antes. As greves desencadeadas a partir de 1978, quando aquele líder passou a ser conhecido nacionalmente como Lula, promoveram o sindicalismo a uma posição definitiva de preponderância na história do Brasil.

“Os trabalhadores passaram a combinar a luta por seus direitos com a luta pela democracia”, recorda o professor João Felício, 58 anos, hoje secretário de Relações Internacionais da CUT. Felício começou a trabalhar na rede pública de ensino em 1973 e quatro anos depois ingressou na Apeoesp, que presidiria por três vezes e se tornaria o Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo.

As greves pipocaram em várias categorias. Surgiu o novo sindicalismo. “A partir daí, os trabalhadores passam a estar fortemente presentes na luta pela democracia no Brasil”, atesta a historiadora. “A atuação dos sindicatos foi decisiva para derrotar a política salarial vigente”, recorda o economista Walter Barelli, presidente do Dieese à época. “Ficou claro que não é possível estudar a sociedade sem estudar a luta dos trabalhadores”, confirma Maria Aparecida de Aquino. O filme de Fábio Barreto vai até aquele momento, enquanto a história do país começa a tomar outros rumos.

Jesus Carlos/ImagemLatinalula
Lula e Marisa em 1980. Assediado pela imprensa e conduzido pelos policiais do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), naquele ano estava preso por causa da greve dos metalúrgicos. Havia sido liberado para o enterro da mãe

Novas conquistas

Os setores mais barulhentos do movimento começam a falar na necessidade de uma nova estrutura sindical e de ir além das reivindicações de classe, retomando a tendência interrompida pelo golpe de 1964 e passando a intervir na conjuntura nacional. “A unidade foi muito grande entre os movimentos sindical e social na busca da democracia e na campanha Diretas-Já”, lembra o então eletricitário da Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) Artur Henrique da Silva Santos, 45 anos, que ingressou no movimento sindical em 1983 e hoje preside a CUT.

Lula da Silva trilhou o caminho da política por meio do recém-criado Partido dos Trabalhadores. Foi deputado no Congresso que estabeleceu jornada de 44 horas semanais, estabilidade de 120 dias para a gestante, adicional de um terço nas férias, a multa de 40% sobre o FGTS em caso de demissão sem justa causa, entre outros direitos incluídos na Constituição de 1988. No ano seguinte, foi para o segundo turno das primeiras eleições presidenciais diretas após o fim do regime militar. Lula teve 31 milhões de votos, mas perdeu a disputa para Fernando Collor de Mello por uma diferença de 5%. A década de 1990 seria um dos períodos mais delicados para os embates sindicais.

O Brasil se rendeu ao neoliberalismo, à política de deixar o mercado ditar os rumos do Estado e da economia. O índice de desemprego disparou. A pretexto de reduzir o “custo Brasil”, empresariado e governos tentaram eliminar os direitos dos trabalhadores e criminalizar o movimento sindical. “Nossa categoria encolheu 30% na época”, recorda a presidente do Sindicato dos Bancários do ABC, Maria Rita Serrano, 40 anos. Ela ressalta que naquele período houve o grande processo de fusão dos bancos e os investimentos em tecnologia avançaram sobre os empregos. “Com o desemprego, era difícil para os sindicatos mobilizar os trabalhadores”, recorda João Felício. Martisalém Covas Pontes, 65 anos, dirigente do Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo e militante sindical desde os anos 1970, reconhece: “Não desenvolvemos tantas lutas quanto antes”.

O baque para algumas categorias acabou sendo maior. “Ficamos oito anos sem reajuste salarial nos bancos públicos e travamos uma grande resistência às privatizações”, lembra Jacy Afonso, tesoureiro da CUT e funcionário do Banco do Brasil e ex-presidente do Sindicato dos Bancários de Brasília (2004-2007). “Os estragos só não foram maiores porque os bancários se organizaram nacionalmente e, desde 1992, conquistaram convenção coletiva de trabalho com validade em todo o país.”

Novo século

Em 2002, Lula obtém, em sua quarta disputa, 53 milhões de votos e é eleito presidente da República. O Brasil passa a viver um novo momento político e econômico. “Abrimos espaços consistentes de negociação, as relações com o governo ficaram efetivamente democráticas”, atesta Artur Henrique, destacando as marchas dos sindicatos e o diálogo social como responsáveis pela política de valorização do salário mínimo e de redução do imposto de renda dos assalariados.

Os trabalhadores passaram a combinar a luta por seus direitos com a luta pela democracia
João Felício

Martisalém ressalta que as mobilizações das mais diversas categorias foram retomadas e as negociações com os empresários amadureceram. “As convenções coletivas de trabalho melhoraram”, afirma. “Lula é parte de um projeto dos trabalhadores. E as greves e mobilizações que fazemos mostram que, embora apoiemos o presidente, somos independentes. Estamos fazendo o nosso papel”, defende Maria Rita Serrano. “Todas as greves deflagradas em 2008 foram nas bases dos sindicatos cutistas”, completa Artur.

Hélio Rodrigues Andrade, 40 anos, funcionário da Indústria Müller e diretor do Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo desde 2003, avalia que, num primeiro momento, as entidades de classe recuaram no que se refere ao debate de questões nacionais – por exemplo, o Fator Previdenciário, que desde 1998 reduz o valor do benefício dos que se aposentam. “Mas hoje temos uma postura mais autônoma, mais crítica”, afirma.

As convenções coletivas de trabalho melhoraram
Martisalém

Em setembro do ano passado, a crise financeira internacional desencadeada a partir dos EUA atingiu as grandes potências. No Brasil, afetado com menor intensidade, o fenômeno precipitou a queda do nível de atividade econômica e de emprego. “Temos de ficar atentos à leitura da crise. Não admitimos que seja pretexto para demissões nem que volte a acuar o movimento sindical”, diz Martisalém. Para a bancária Maria Rita, coube ao movimento sindical não deixar que o discurso da crise convencesse a sociedade de que seria preciso flexibilizar direitos. “O sistema financeiro brasileiro não sofre com a crise, mas com uma segunda grande onda de fusões que nos impõe o desafio de reagir em defesa do emprego.” 

O professor João Felício pondera, entretanto, que cabe também ao movimento sindical um embate ideológico mais consistente. “A crise evidencia que o neoliberalismo perdeu. É um momento rico para rediscutir o papel do Estado”, ressalta. “A crise existente é de modelo. É preciso rever o papel dos organismos internacionais e é uma grande oportunidade de os movimentos avançarem em sua articulação mundial.”

As greves e mobilizações que fazemos mostram que, embora apoiemos o presidente, somos independentes
Maria Rita Serrano

Outros temas devem passar a ocupar cada vez mais a agenda do trabalhador, lembra o presidente da central: “Sustentabilidade social, econômica e ambiental, mudanças no modo de consumo estão na ordem do dia. Cabe às entidades sindicais e sociais estimular a discussão de um novo projeto de desenvolvimento”, alerta Artur Henrique. “Mas não podemos correr o risco de ter os canais de diálogo fechados. Há muito a ser feito.”