Ponto de Vista

Uma capital sequestrada

A autonomia do Distrito Federal, nos moldes atuais, é uma excrescência que a Nação não pode continuar tolerando

Como o princípio é tudo, como disse Guimarães Rosa, vamos começar do começo, para mostrar a falta de lógica na autonomia de Brasília. Os escândalos que têm marcado a capital da República, e dos quais ela esteve poupada apenas durante o governo petista de Cristovam Buarque, se explicam pela entrega do governo da cidade a aventureiros.

Em 1763, a capital do Brasil Colônia se transferiu da Bahia – onde sempre residiram os governadores gerais – para o Rio de Janeiro. Os governadores passaram a usar o título de vice-rei. O Brasil era então Estado unitário, sob o domínio de Portugal, e administrativamente dividido entre capitanias. Em 1808, com a chegada da família real, a cidade passou a ser sede da monarquia portuguesa, mas em estranha situação do ponto de vista do direito internacional.

O Brasil continuava a ser uma colônia, embora servisse de refúgio à família real diante da invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão. Em 1815, com o aval do Congresso de Viena, que reorganizou a Europa depois da derrota da França, o Brasil passou a integrar o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Assim, o Rio foi elevado ao estatuto de capital do Império português. No mesmo ano, as capitanias se transformaram em províncias do Reino Unido. Com a partida do rei, em 26 de abril de 1821, o Rio passou a ser a residência do príncipe regente, Pedro I. Essa situação durou até outubro de 1822, quando, logo depois do grito do Ipiranga, o príncipe foi aclamado imperador. O Rio se tornou a sede do Império brasileiro, mas continuou uma cidade da província do Rio de Janeiro. O imperador abdicou em abril de 1831 – após dez anos da partida de seu pai – e voltou a Portugal. Três anos depois, durante a Regência, com o Ato Adicional à Constituição do Império, foram criadas as assembleias legislativas provinciais. Com a relativa autonomia das províncias, exigia-se a separação entre o Rio, como capital do Império, e a província do Rio de Janeiro. Assim, o Rio foi transformado em “município neutro”, e a cidade de Niterói, que se chamava Vila Real da Praia Grande, se tornou capital da província.

A ideia, clara, lúcida, dos legisladores de 1834 era  que a capital do Império tinha de estar desvinculada dos interesses particulares das regiões e submeter-se ao todo nacional. A mesma consciência tiveram os constituintes de 1891, ao acatar a necessidade de transferir a capital para o interior do Brasil e determinar a criação do Distrito Federal no centro do território.  Quando se proclamou a República, o Rio não era só a capital do Império, mas centro da vida comercial do país, com população politicamente ativa, que reclamava representação política própria. Até então, embora o município neutro contasse com representação parlamentar quase simbólica, homens públicos que viviam no Rio de Janeiro se elegiam pelas províncias.

A Constituição de 1891 – em um dos poucos pontos que contrariaram o modelo norte-americano – consagrou a representação política do Distrito Federal, fixando-lhe o mesmo número (três) de senadores por Estado (artigo 30). Como se sabe, nos Estados Unidos só se elegem dois representantes ao Senado por Estado, e o distrito de Colúmbia, sede do governo norte-americano, não elege senador. Elege somente um representante à Câmara, com o mesmo estatuto das colônias de Porto Rico e do território norte-americano situado nas Ilhas Samoa.

A organização política e administrativa de Brasília foi definida na Lei nº 3.751, do Congresso Nacional, de abril de 1960 – oito dias antes da transferência da capital. Ela não previa representação política de Brasília junto ao Congresso nem a eleição de prefeito, que seria nomeado pelo presidente da República e demissível a qualquer momento. Admitia, sim, uma Câmara municipal com 20 vereadores. Mais ainda, o artigo 38 determinava que qualquer alteração no Plano Piloto e na urbanização de Brasília dependeria de lei federal. A autonomia do Distrito Federal, outorgada pelos constituintes de 1988, por mais democráticas tenham sido suas intenções, converteu o Distrito Federal em uma cidade sequestrada por um bando de meliantes (com raríssimas exceções), que compõem sua “Câmara Distrital”. É uma excrescência que a Nação não pode continuar tolerando.  

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980