Crônica

Um xiita em Brasília

A cidade é cheia de políticos, tem muita rotatividade de gente e, teoricamente, é lugar para não se confiar em ninguém. Mas ainda tem gente como o Mahmud, que oferece crédito a um cara que vê uma vez só

mendonça

A Célia e eu estávamos morando em Brasília, num apartamento bom e bem localizado, no comecinho da Asa Sul, mas com um problema: ele tinha janelas amplas e carpete. O sol entrava no apartamento inteiro e deixava um calor insuportável, que o carpete conservava a noite toda. E não dava pra dormir de janela aberta, porque havia muito barulho de trânsito, que só diminuía um pouquinho em alta madrugada e já começava de novo logo que amanhecia.

Resolvemos mudar. Procurando anúncios de apartamento para alugar, vimos um na quadra em que morava o Chico Villela, a 407 Norte. Havíamos visitado o Chico algumas vezes e resolvemos ir conferir o tal apartamento. Era pequeno, menos da metade do que aquele em que estávamos morando, mas bom, no meio da quadra, protegido do sol, sem carpete e sem barulho. E além disso teríamos o Chico como vizinho. Era, como o anterior, um apartamento mobiliado. Só tínhamos de levar a roupa, computador, uns trens de cozinha e pouca coisa mais. Alugamos.

No dia da mudança, deixamos as tranqueiras todas lá e fomos comprar cerveja, pra ir bebericando e arrumando as coisas. O Chico costumava freqüentar o Mercadinho Amazonas, e fomos lá. O dono era um libanês xiita, seu Mahmud. Pegamos meia dúzia de latas de cerveja e fomos pagar. Ele me olhava curioso, até que falou com sotaque carregado:

– Parece que eu já te conheço.

– Tomei uma cerveja aqui com o Chico Villela, faz uns três meses.

– Ah… Você é amigo do Chico?

– Sou. E estamos mudando pra esta quadra.

– Por que vocês não levam cerveja em garrafa? Sai mais barato que em lata.

– Não temos vasilhame.

– Vocês não vão morar aqui? Levem as garrafas, quando esvaziar vocês trazem.
Aceitei a sugestão e fui logo perguntando quanto era o depósito.

– O que é depósito? – perguntou ele.

– O dinheiro que a gente deixa como garantia de que vai devolver as garrafas.

Ele ficou ofendido. Morador da quadra, ainda por cima amigo do Chico… Como eu poderia pensar que ele ia fazer uma coisa dessas, cobrar esse negócio de depósito?

Voltamos pro apartamento rindo, falando das surpresas de Brasília. Uma jornalista amiga, a Teresa, que havia mudado para lá uns anos antes, comparava Brasília ao próprio Cerrado: “De longe, vista em conjunto, parece toda igual e sem graça. Mas, de perto, é cheia de detalhes interessantes, tem muitas belezas”. Concordei com ela. Brasília é um lugar cheio de políticos (não que todos sejam ruins, mas a fama é triste), ainda por cima com muita rotatividade de gente, que mora pouco tempo lá e volta para sua cidade. Então, teoricamente, um lugar para não confiar em ninguém. E havia gente como o Mahmud, com essa confiança, de dar crédito a um cara que viu uma vez só. E o detalhe, para quem tem preconceito: o sujeito é “turco” e xiita.

No dia seguinte, a Célia resolveu comprar um pacote de macarrão, pro almoço. Pegou o dinheiro e foi de novo ao Mercadinho Amazonas. Pegou o pacote de macarrão, resolveu levar também um litro de vodca, um pacote de café, frutas e outras coisas. Aí, lembrou que tinha levado dinheiro só pro macarrão e foi recolocar tudo nas prateleiras. Seu Mahmud viu e foi perguntar por que ela havia desistido de comprar aquilo.

– Não trouxe dinheiro.

– Leva, depois você paga.

Quando ela ia saindo, ele a chamou:

– Você não quer fazer uma caderneta? Pode pagar tudo no final do mês.

Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é jornalista e geógrafo.
Publicou vários livros, entre eles o Anuário do Saci (Editora Publisher Brasil, 2006), ilustrado por Ohi