Pasquale

Um pouco da história de alguns termos médicos

Sempre digo que não acredito em médicos que não conversam com pacientes, que não os tocam, que não têm visão humanística, que não sabem que do outro lado, antes de carne e osso, há alma

mendonça

As palavras podem ser desmontadas. É possível “descobrir” seu sentido a partir desse desmonte e da análise do significado de cada elemento formador

Num desses programas televisivos de perguntas e respostas, o candidato precisava dizer qual das quatro capitais apresentadas não é “insular”. Toda vez que se faz uma pergunta aparentemente complicada nesses programas, é batata! Nos dias seguintes, as pessoas me bombardeiam. Não foi diferente com “insular”. Foram tantos os que me interrogaram, que consegui até memorizar as quatro cidades listadas no programa: Rio de Janeiro, São Luís, Vitória e Florianópolis.

Como não consigo responder a nada sem antes entrar no mérito da questão, perguntei a meus vários inquisidores o que é uma península. Cada um a seu modo, alguns souberam dizer que “península” significa “porção de terra cercada de água por todos os lados, menos por um”. Pois então, disse eu, se essa porção de terra fosse cercada de água por todos os lados, não seria uma península; seria uma ilha. Ao pé da letra, “península” significa “quase ilha”. Esse “pene” de “península” vem do latim, significa “quase” e é o mesmo de “penúltimo” (“quase último”) ou “penumbra” (“quase sombra”).

O elemento “insula”, também latino, é o que dá origem, por exemplo, a “ilha” e a “isolar”. Estar ilhado não é o mesmo que estar isolado? A esta altura, deve ter ficado claro que “insular” se refere a “ilha”. As tais capitais insulares nada mais são do que capitais que ficam em ilhas. A resposta à questão formulada na tevê, portanto, é Rio de Janeiro.

Finalmente chegamos ao ponto-chave: as palavras podem ser desmontadas. É possível “descobrir” seu sentido a partir desse desmonte e da análise do significado de cada elemento formador. Será que o “rino” de “rinoceronte” é o mesmo de “otorrinolaringologia”? É, sim. “Rino” vem do grego e significa “nariz”, mas a surpresa não pára aí. Na formação de “rinoceronte”, temos ainda o elemento grego “kéras”, “kératos”, que, em medicina, encontra-se, por exemplo, em “ceratite” (equivalente de “ceratomalacia” ou “ceratomalácia”). E que significa esse elemento? Nada mais do que “chifre”, “corno”, “córnea”. O rinoceronte tem um corno no nariz; a ceratite é uma lesão na córnea. Se os oftalmologistas sempre explicassem a seus pacientes que “ceratite” nada tem que ver com “cera”, não os deixariam intrigados e doidos de vontade de fazer uma certa perguntinha: “Mas cera não é no ouvido?”

E a bendita capital insular? De que serviu, afinal? Usei a história só para introduzir o assunto? Também, mas não só. Sabe, caro doutor, por que a insulina tem esse nome? Alguma relação com a “insula”, do latim? Sim! Criado por franceses, o termo designa um hormônio pancreático, secretado em áreas do pâncreas denominadas “ilhotas de Langherans”.

O fato é que os termos médicos não necessariamente vêm de um mundo à parte; muitas vezes vêm do vocabulário comum, da vida comum, do dia-a-dia. Por que será que os nódulos têm esse nome? Não será porque “nódulo” é diminutivo de “nó”, assim como “glóbulo” (de “glóbulos vermelhos”) é diminutivo de “globo”? E por que depois dos 40 padecemos do que vulgarmente se chama de “síndrome do braço curto”, cujo nome técnico é “presbiopia”? Teria o nome desse mal alguma relação com “presbítero”? Certamente, sim. Em “presbiopia”, temos a associação do elemento grego “presbi”, que significa “velho”, “ancião”, com “opia”, também grego, que significa “vista”, “olho”. Como se vê, “presbiopia” significa “vista de ancião”, ou “olho de velho” ou… Cada um faça a combinação que quiser. Bem, antes que me esqueça, em “presbítero” temos o elemento grego “tero”, que indica noção de comparação. Ao pé da letra, “presbítero” significa “mais velho”. A palavra é usada para designar sacerdotes, padres. Entre os presbiterianos, o presbítero é o elemento escolhido pela congregação para ser o chefe.

Em meio ao emaranhado de termos técnicos, muitas vezes o médico não se dá conta de que, por trás do nome de um órgão ou de uma doença, pode haver uma história, pode haver um pouco da própria história do homem. E aí pode estar um bom começo para uma boa conversa entre médico e paciente. Sempre digo que não acredito em médicos que não conversam com pacientes, que não os tocam, que não têm visão humanística, que não sabem que do outro lado, antes de carne e osso, há alma.

“Alma”, por sinal, vem do latim “anima” (“sopro”, “ar”, “alento”, “princípio de vida”). Seus correspondentes de origem grega são pelo menos dois: “psico” (também “sopro”) e “timia” (“alma”, “espírito”, “emoção”, “coração”, “afetividade”, como define o Houaiss). “Psico” se costuma usar como antepositivo (como em “psiquiatria” e “psicoterapia”); “timia”, como pospositivo (como em “ciclotimia” e “lipotimia”).

Ia-me esquecendo de dizer que a parte dos estudos lingüísticos que se ocupa da origem e da evolução das palavras é a “etimologia”. Essa palavra é parecida com “etiologia”, muito usada em medicina. Fazem parte de “etiologia” os elementos gregos “etio”, que significa “causa”, e “logia”, que significa… Bem, doutor, agora é com você.

Pasquale Cipro Neto é professor de Língua Portuguesa, idealizador e apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, da TV Cultura