Trabalho

Um dia em Brasília

Manifestantes de todo o Brasil viajaram horas, alguns até dias, para ocupar a Esplanada e levar reivindicações ao governo e ao Congresso

Augusto Coelho

Novatas Tânia e Daiane: na capital pela primeira vez

A capital federal ficou bonita no último dia 15 de agosto, quando uma multidão ocupou a cidade, deu “aquele abraço” no Congresso Nacional e deixou um alerta aos parlamentares. Mais de 20 mil pessoas de todo o país, segundo os organizadores, participaram do Dia Nacional de Mobilização organizado pela CUT, em torno de projetos em tramitação no Congresso Nacional que mexem com direitos e interesses dos trabalhadores (veja quadro na página ao lado). Já na madrugada da véspera, caravanas começavam a desembocar na Esplanada dos Ministérios. As pessoas desciam dos ônibus, algumas depois de 48 horas de viagem, e se dirigiam a uma grande tenda branca armada no canteiro central, quase em frente à catedral desenhada por Oscar Niemeyer. Muitos estavam ali pela primeira vez e queriam ver de perto os famosos edifícios dos cartões-postais, fotografar, flanar pelo amplo canteiro.

O ato, desprezado pelos meios de comunicação, habituados a empurrar à opinião pública agendas como as de reformas que reduzam direitos previdenciários e trabalhistas, não foi exatamente um movimento hostil ao governo federal – possivelmente a maioria ali era de eleitores de Lula. Mas se não é para hostilizar, para que tantas caravanas? Por se tratar de um governo com várias forças políticas apitando, é a mobilização social que vai definir para que lado as ações do Executivo e do Legislativo vão pender.

“Tem alguém cansado aí?”, ecoa o brado vindo do carro de som à frente da marcha. São 10h20 e a multidão põe-se a caminhar. Competindo em desvantagem, Vinícius Dantas, de 25 anos, estudante de Biologia da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), se esgoela no megafone para se fazer ouvir e manter unidos os 15 integrantes da delegação vinda da cidade do interior paulista em uma van alugada.

“Viemos para reivindicar do Ministério da Educação uma rubrica específica de 200 milhões de reais para assistência estudantil, que permitirá o aumento das bolsas-atividade, a construção de mais dois blocos de moradias e a circulação de mais ônibus no campus da nossa universidade”, explica Vinícius.

À frente do grupo de estudantes segue Cleusa Maria de Jesus Sanches, de 55 anos, baiana radicada em São Bernardo do Campo desde os 18. Desempregada como o marido, ex-metalúrgico, Cleusa sobrevive “vendendo bugigangas”. Apesar de otimista com os rumos do país, ela não vê razões para acomodação. “Estamos aqui para pressionar o governo e o Congresso para que tomem medidas por um Brasil melhor.

Edilberto Guimarães de Souza, de 44 anos e há 20 trabalhando como funcionário da Prefeitura de Uberlândia (MG), reitera: “Essa manifestação não é contra o governo, mas contra as medidas que o governo e o Congresso possam adotar e que sejam contrárias às propostas que deram 58 milhões de votos ao presidente”, justifica.

Uma delegação de 86 catarinenses de Chapecó e de Concórdia apressa o passo para não ficar para trás. Puxando o bloco, dois homens fantasiados de frango empurram duas cadeiras de rodas com “doentes” enfaixados até a cabeça. Denunciam as condições de trabalho a que são submetidos nos frigoríficos. Em Concórdia, a recém-criada Associação dos Portadores de Lesão por Esforços Repetitivos reúne 410 lesionados. “Trabalho desde os 14 anos na indústria alimentícia e há sete vivo de auxílio-acidente”, conta Airton Rodrigues, 38 anos, pai de dois filhos. “Para vender frango barato lá fora, os frigoríficos aumentam a exploração e aceleram as nórias, correntes que transportam os frangos dentro das unidades e ditam o ritmo da produção.”

Valdir Titão, 47 anos, acompanha Airton e está ansioso para falar. Ele é pequeno proprietário rural em Concórdia. Tem um sítio de 18 hectares que herdou do pai e, com a ajuda dos quatro filhos, tira o sustento da família produzindo milho e criando porcos para abastecer a cadeia produtiva da indústria. “Quando Lula começou no governo, fiquei animado e investi para aumentar a produção. Fiz financiamento no Banco do Brasil e na cooperativa de crédito da cidade”, relata. Mas vieram três anos seguidos de seca. Para piorar, é a indústria alimentícia que dita os preços. A saca de milho, que Valdir vendia por 20 reais há três anos, hoje sai por 15. O quilo da carne suína, 1,55 real, está abaixo do custo de produção (1,80). “Trabalho com meus filhos de sol a sol e não consigo pagar as contas”, queixa-se Valdir. “O lucro fica só com as empresas. Estamos afundando e os empresários só comprando mansões. Se o Lula não der uma mão, corro o risco de perder minha terrinha.”

Ordem do dia

Para pressionar o governo federal a atentar para as pautas dos trabalhadores, os manifestantes mantiveram audiências com vários ministros e autoridades. Entre eles Luiz Dulci (Secretaria-Geral da Presidência), José Gomes Temporão (Saúde), Fernando Haddad (Educação), Miguel Rossetto (Desenvolvimento Agrário), Luiz Marinho (Previdência), Arlindo Chinaglia (presidente da Câmara).

Na agenda, dezenas de reivindicações, como a ratificação das convenções 151 e 158 da OIT; manutenção do veto do presidente Lula à Emenda 3; redução dos juros e do superávit primário; retirada imediata do PLP 01/2007; fim dos interditos proibitórios (que bancos e indústrias utilizam para impedir protestos em suas portas); negociação coletiva no serviço público e respeito total à organização dos trabalhadores; fim do fator previdenciário; contra as fundações estatais de direito privado; valorização da educação pública; mais recursos para a reforma agrária e à agricultura familiar; redução da jornada de trabalho.

‘Aos nossos filhos’

A manifestação segue ocupando três das seis pistas da imensa avenida, o Eixo Monumental. Pára em frente ao Congresso às 11h. Nas diversas reuniões com ministros e parlamentares, os dirigentes sindicais obtêm uma série de compromissos de autoridades do governo e do Legislativo. Entre eles, o apoio à ratificação das convenções 151 e 158 da Organização Internacional do Trabalho – a primeira estimula o estabelecimento de negociações coletivas entre servidores e governos, inclusive os estaduais e municipais, e a segunda inibe demissões imotivadas por parte das empresas. Com certeza, não faltará oportunidade para que a atenção a esses e vários outros compromissos assumidos seja cobrada em futuras caravanas.

De mãos dadas, duas colunas de manifestantes descem as ruas laterais ao Parlamento. Um casal de cabelos brancos ajuda a carregar uma grande faixa vermelha. Élen e Manoel Jorge da Silva são bancários aposentados. Deixaram os dois filhos e um neto no Rio de Janeiro, 20 horas de ônibus atrás. “Só os banqueiros ganham e querem retirar nossos direitos. Estamos aqui pela juventude que vem por aí. Nós já passamos”, diz Manoel. “Se a gente não lutar, não conquista nada. O que será de nossos filhos e netos?”, emenda Élen. Ao meio-dia, as colunas se encontram na Praça dos Três Poderes, entre o Congresso, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. Está dado o “abraço”, que muitos chamam de “aperto”.

Augusto CoelhoÉlen e Manoel
Disposição não tem idade – Élen e Manoel: 20 horas de ônibus

De repente, um estrondo. Depois outro, e mais outro. Demora, até as pessoas, assustadas, serem informadas da salva de 21 tiros de canhão. Um pelotão dos Dragões da Independência, a guarda palaciana, está em forma. A banda começa a tocar o Hino Nacional. No alto da rampa, Lula e sua mulher, Marisa, recepcionam o presidente Boni Yayi, do Benim, pequeno país do noroeste da África. Muitos correm e se aproximam. Os guardas palacianos se agitam. Mas ninguém transpõe a cerca móvel de metal. Só queriam ver a cena brasiliense.

Sob o azul incomum do Planalto Central, a multidão se reagrupa em frente ao Congresso Nacional para o encerramento da manifestação. As amigas Tânia Brandão e Daiane Cristina Barbosa Santos, de Presidente Prudente (SP), descansam na grama. A funcionária pública Tânia está em Brasília pela primeira vez “para lutar por minha categoria e pelas bandeiras da CUT”. Daiane, 19, é “estudante e militante”. A também estudante Aline Tibes, 18 anos, é catarinense. “Eu não trabalho, mas meu pai é trabalhador e não pôde viajar. Vim dar uma força”, conta ela, dizendo que valeram a pena as 26 horas de viagem mais quatro de manifestações. O ato termina faltando pouco para as 13 horas. Sob um sol tórrido, os manifestantes retornam lentamente aos ônibus. A brisa fria acentua o ar seco e engana, ao atenuar falsamente o ardor dos raios ultravioleta. Muitos estão com o rosto vermelho. Mas nem parecem cansados.