cidadania

Um Brasil para os pequenos

O ECA surgiu há 16 anos e colocou os direitos das crianças e dos adolescentes na agenda nacional. Mas só com atenção da sociedade e do poder público vai ser, quando crescer, uma lei que pegou

Gerardo Lazzari

Crianças e crianças: enquanto algumas brincam durante a passeata para “comemorar” os 16 anos do ECA, outras atravessam a infância trabalhando pelas ruas das cidades

O Brasil celebrou no último dia 13 de julho os 16 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA. A lei nº 8.069, de 1990, reuniu experiências da sociedade civil e botou no papel desafios que deveriam ser as ambições de qualquer nação civilizada que pretenda tornar-se socialmente justa e desenvolvida quando crescer. Um de seus artigos-chave estabelece que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” para todas as crianças (até 12 anos de idade) e adolescentes (até 18) – faixa etária em que se encontra menos de um terço da população brasileira.

Não é preciso andar muito pelas cidades para encontrar trabalhando ou pedindo esmola jovens que deveriam estar na escola ou brincando; ou que se sentem mais seguros expostos aos riscos da vida nas ruas do que dentro de casa junto da família. São sintomas evidentes de que o ECA ainda é uma criança frágil, que tem um longo caminho para atingir a maioridade e se tornar uma lei que pegou.

Esse foi um dos alertas feitos por manifestações em diversos cantos do país para “comemorar” o aniversário da lei e lembrar que ela existe. Na praça da Sé, em São Paulo, dezenas de entidades promoveram a Jornada Cidadã 2006 contra o abuso e a exploração sexual, o uso de drogas e o trabalho infantil. Enquanto batucavam e dançavam, centenas de crianças e adolescentes em situação de risco social carregavam uma enorme bandeira brasileira e faixas pedindo respeito aos seus direitos.

O Brasil tem uma das leis mais avançadas do mundo. Pena que, ao longo dos anos 1990 e início da década atual, enquanto governos priorizaram uma agenda que propunha um Estado mínimo, ausente e socialmente omisso, esse conjunto de normas não conseguiu se estabelecer como deveria. 

“Infelizmente, não temos muita coisa para comemorar e a lei não saiu do papel. As políticas públicas primárias voltadas para essa área não têm avançado e, quanto mais para a periferia seguimos, mais sentimos falta delas”, lamenta Lúcia Pinheiro, coordenadora da Fundação Projeto Travessia, ONG que trabalha ações educativas e de reintegração familiar com crianças e adolescentes que moram nas ruas da região central de São Paulo. Para melhorar essa situação, Lúcia acredita que as políticas voltadas para esse público deveriam ser municipalizadas.

Apesar das dificuldades 

Para o coordenador da Pastoral do Menor, padre Júlio Lancelotti, apesar das dificuldades, há motivos, sim, para comemorar a data: “Com o Estatuto, nós temos uma ferramenta para exigir e trabalhar. Hoje há conselhos tutelares espalhados pelo Brasil, temos os conselhos nacional e estaduais, quase todas as maternidades têm alojamentos conjuntos, combatemos mais intensamente a prostituição infantil, há uma grande movimentação para que todas as crianças tenham certidão de nascimento e também uma maior conscientização da população no que se refere à cidadania e proteção integral”, avalia.

Lancelotti afirma que é preciso que todos – governos, sociedade e família – trabalhem de fato para que crianças e adolescentes tenham oportunidades como escola, lazer, cultura, saúde e capacitação para o trabalho. “Não adianta fazer como a Prefeitura de São Paulo, que gastou um dinheiro enorme com uma campanha que diz ‘não dê esmola, dê futuro’.” Para ele, esmola é o que o poder público destina ao assunto. “A Lei Orgânica do Município e a Constituição Federal dizem que a criança e o adolescente são prioridade absoluta, quer dizer, precisam ter grande parte do orçamento, mas isso não acontece”, critica o padre.

A fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança, Zilda Arns, afirma que o Estatuto trouxe um grande benefício ao Brasil, pois colocou em pauta o assunto. Mas também considera que falta ênfase nas políticas públicas para aquela faixa etária. “Para haver paz no mundo, temos de cuidar das crianças desde a gestação. O Brasil é o país que mais reduziu a mortalidade infantil nos últimos 15 anos, a desnutrição mata menos hoje do que anos atrás. Mas temos de começar a controlar a anemia e a obesidade nas crianças e melhorar a qualidade da alimentação delas.”

Segundo a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, quase 40 mil jovens entre 12 e 18 anos estão cumprindo medidas sócio-educativas e mais de 20 mil crianças vivem em abrigos, privados da vida em família; 17,4% vivem em domicílios sem abastecimento interno de água; e 18,7% não têm acesso à rede geral de esgoto, fossa séptica ou rudimentar. Apesar dessa situação, a mortalidade infantil teve queda significativa nos últimos anos, mas seus indicadores ainda não são bons. 

Dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) mostram que, entre 1994 e 2004, o Brasil registrou queda de 32,6% na mortalidade infantil, chegando a 26,6 por mil nascidos vivos, o que corresponde a 100 mil crianças mortas antes de completarem um ano. É a terceira maior taxa da América do Sul, atrás apenas da Bolívia e da Guiana. 

O número de crianças com até três anos que freqüentam creches também não é satisfatório: apenas 13%, de acordo com a Síntese de Indicadores Sociais de 2005 do IBGE. Já a freqüência escolar mostrou-se mais significativa para a faixa de 4 a 6 anos (70,5%) e no grupo etário de 7 a 14 anos, que tem 97% das crianças na escola.

Gerardo Lazzarimenino
De acordo com o IBGE, o número de crianças com até três anos que freqüentam creches é de apenas 13%

Zeladores do Estatuto

As dificuldades para cuidar da infância e adolescência no país atingem muito duramente as organizações sociais e os “zeladores do Estatuto”, os conselheiros tutelares que são eleitos por voto direto para cuidar dos casos de violação dos direitos dos menores de 18 anos. Leni Rita Brito da Costa é uma dos cinco conselheiros que trabalham na região da Subprefeitura da Vila Maria/Vila Guilherme, na zona norte de São Paulo. Ela está em seu segundo mandato, mas não sabe se conseguirá terminá-lo. “Eu pensava que conseguiria mudar a situação pelo menos das crianças da nossa comunidade, mas é muito difícil conseguir os serviços. Os órgãos públicos não têm recursos para a saúde, não têm vagas nas creches e escolas. Muitas vezes só conseguimos as coisas quando encaminhamos por via judicial e, mesmo assim, nem sempre resolve”, lamenta.

O coordenador-geral dos conselhos tutelares de Porto Alegre, André Severo, tem a mesma sensação de frustração. “A gente participa, cobra, fiscaliza, mas na maioria das vezes não adianta. Você tira um menino da rua e no outro dia lá está ele de novo. Se os municípios não se prepararem para enfrentar as demandas dos problemas que a infância e a juventude enfrentam, o ECA ficará banalizado. Os conselheiros brigam para isso não acontecer.”

O Comitê Betinho dos Funcionários do Santander Banespa também comprou a briga para tirar o ECA do papel e integra um pool de entidades que conseguiu apoio da Secretaria Nacional de Direitos Humanos para relançar exemplares do documento em formato de gibi, concebido pelo desenhista Mauricio de Souza assim que a lei foi promulgada. “Somos um band-aid”, diz o coor-denador do comitê, José Roberto Barbosa. “Quem tem de fazer o ECA avançar são os governos, por meio de políticas públicas. Por outro lado, não dá para ficar esperando por elas, precisamos lutar. O Betinho nos ensinou que este é um processo de construção do qual somos coadjuvantes.” 

O padre Júlio Lancelotti afirma que é preciso saber usar essa importante ferramenta na defesa da vida de crianças e adolescentes: “Tem que saber acionar o Ministério Público, o conselho tutelar da sua cidade, cobrar os direitos difusos e coletivos e denunciar abusos e maus-tratos. Somos todos responsáveis pela situação que temos hoje”, garante. 

Lúcia Pinheiro, do Projeto Travessia, considera importante que as organizações da sociedade civil se fortaleçam e unam esforços para pressionar o poder público. “Nossas crianças ainda crescem sabendo que não terão boa escola, que não entrarão em faculdade pública ou particular nem terão emprego digno. E quando não tem aumento do emprego formal e informal, há o aumento do emprego ilegal, e vemos nossas crianças e jovens serem organizados pelo crime. É esse o futuro que queremos para o nosso país?”

Para a superintendente da Fundação Abrinq, Sandra Faria, o Estatuto ajudou o país a tirar essa fatia da população do esquecimento. “Eles entraram para a agenda nacional. Nós percebemos que todos estamos devendo um pouco para eles, até a própria família, que precisa se responsabilizar mais por seus filhos”, opina. 

Denuncie
Procure o telefone do Conselho Tutelar mais próximo e denuncie a violência doméstica ou exploração sexual infanto-juvenil discando apenas o número 100.

Algumas unidades regionais do Ministério Público do Trabalho dispõem de serviço de discagem gratuita para receber denúncias de trabalho infanto-juvenil: RJ – 0800-221331; SP – 0800-111616; MG – 0800-313800; e PA 0800-916060. Veja relação completa das 24 Procuradorias Regionais do Trabalho em www.prt9.mpt.gov.br/denuncia/telefones.htm.

Acompanhe a execução das ações voltadas para crianças e adolescentes previstas nas leis orçamentárias pela internet: www.orcamentocrianca.org.br.