trabalho

Tudo para não dividir o bolo

Num ambiente de democracia, crescimento e altos lucros em todos os setores da economia, muitas empresas ainda tentam sufocar sindicatos em vez de discutir civilizadamente como compartilhar os resultados

Gerardo Lazzari

Por vezes a força policial é desmedida nas manifestações sindicais

Representantes do banco Santander e dos funcionários reúnem-se por determinação do juiz Alexandre David Malfatti, da 7ª Vara Cível da capital paulista. O Santander quer impor multa de R$ 50 mil para cada dia que o Sindicato dos Bancários de São Paulo permanecer em frente a um prédio do banco na zona sul paulistana. Era outubro de 2005, a categoria estava em greve, mas o Santander não queria ruído na sua porta. Atento ao direito “de ir e vir”, mas também ao de livre manifestação, o juiz convocou o diálogo.

O acordo foi assim expresso por Malfatti: “As partes reconhecem, de um lado, os direitos fundamentais de liberdade de manifestação, de reunião e de greve e, de outro lado, o direito de propriedade e o direito ao trabalho… Os réus poderão exercer, pacificamente e respeitando a livre escolha do funcionário, o direito de convencimento. E o banco poderá exercer, pacificamente e respeitando a livre escolha do funcionário, o direito de convencê-lo a não aderir. Em suma, fica claro que, de lado a lado, poderão atuar no convencimento sobre adesão ou não. A atuação será pacífica e sem constrangimentos”. Obra-prima do bom senso para relações de trabalho que se pretendem modernas, o acordo firmado é ainda uma exceção.

No tempo do autoritarismo, usava-se a força para impedir manifestações. Com a democracia, ficou um pouco mais difícil. Para constranger a liberdade dos trabalhadores de se organizar, os patrões buscam brechas na lei e contam, em boa parte dos casos, com o conservadorismo de setores da Justiça, recorrendo a uma medida chamada “interdito proibitório”. Trata-se de ação jurídica para situações em que o direito de posse ou de propriedade está sendo ameaçado. Está no Código Civil desde o início do século passado, interessando principalmente a fazendeiros que viam ameaça de ocupação de terras. Da década passada para cá, tem sido usado por empresas para tentar manter grevistas bem longe não de suas dependências, mas de suas proximidades. O raciocínio é simples: evitar que um funcionário perceba o respaldo de um movimento coletivo.

Liberdade

Recentemente, o movimento sindical lançou dois contra-ataques judiciais diante do que considera abuso das empresas sobre o direito de greve. Uma ação movida pelo Sindicato dos Bancários de Belo Horizonte questiona a competência da Justiça Comum para julgar esses casos. Outra, da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM/CUT), contesta o uso de interdito em greves e manifestações. As duas tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) e trazem para o debate nacional a liberdade de greve e de organização. Apesar de previsto na Constituição com status de “fundamental”, o direito de greve tem sido duramente ameaçado.

Os abusos ficam mais claros, por exemplo, quando se está diante de uma campanha salarial. Os trabalhadores de uma determinada categoria, em assembléia, decidem entrar em greve. No mesmo dia, uma empresa procura a Justiça Comum e entra com ação de interdito, alegando que manifestações próximas às suas dependências ameaçam o direito de “posse” da empresa sobre seu espaço. Caso o juiz concorde, a manifestação pode acabar em confronto com a polícia e multas milionárias para o sindicato.

“A utilização do interdito não cabe nessa situação, pois não se trata de ameaça à posse”, avalia a advogada trabalhista Deborah Blanco, assessora jurídica da Confederação dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf/CUT). “Mas há juízes que aceitam essa argumentação”, explica. Assim, impõe-se pesada restrição à liberdade de expressão dos trabalhadores. “O interdito proibitório não é compatível com o direito de greve. A greve não busca expropriação da propriedade”, afirma o juiz Grijalbo Fernandes Coutinho, presidente da Associação Latino-americana de Juízes do Trabalho. Para ele, o fato de uma greve afetar os bens da empresa é conseqüência do conflito social: “Se não houver prejuízos, não faz sentido fazer greve”, explica.

No julgamento da ação dos bancários de Belo Horizonte, o STF determinou que interditos sejam analisados pela Justiça do Trabalho. Ítalo Souza Nicoliello, advogado do sindicato, explica que a Justiça Comum tem visão mais dissociada do fenômeno greve. “A Justiça Comum não investiga motivações de um movimento. Com a fixação na Justiça do Trabalho, teremos ambiente mais propício para esse tipo de discussão”, avalia. O placar da votação no STF, oito votos a favor e um contra, no último dia 10 de setembro, indica que poderá ser editada uma súmula vinculante a respeito do tema – e que a interpretação poderá ser seguida em instâncias inferiores.

“A decisão reforça a tese de que o que está em discussão é o direito de greve e não o direito de propriedade”, avalia o juiz Coutinho. Sua interpretação fortalece, também, a ação movida pela CNM/CUT. “Existe uma colisão de direitos, entre greve e propriedade. Mas a Constituição determina a função social da propriedade, e um dos critérios para isso é o respeito aos direitos fundamentais, entres os quais está o de greve”, argumenta o advogado Marthius Sávio Lobato, da Confederação.

Abuso da lei

O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista enfrenta uma situação que demonstra até onde vai o abuso dos interditos. A Ecovias, concessionária que administra a Via Anchieta, conseguiu por esse meio vetar passeatas na rodovia. “Como um sindicato vai se manifestar se não pode fazer uma passeata? Há juízes que vão mais longe, criminalizando dirigentes sindicais, que têm de responder individualmente por um conflito que é coletivo”, afirma Sávio.

A ação da CNM/CUT está a cargo do ministro Carlos Ayres Brito. Caso o STF decida favoravelmente, será uma vitória importante para a garantia do direito de organização e manifestação. No entanto, outras ameaças continuarão, entre elas, a própria Lei de Greve. Promulgada em 1989, prevê as condições a serem cumpridas para que uma greve não seja considerada abusiva, como publicação de aviso de 48 a 72 horas antes da paralisação, entre outras. Deborah Blanco considera a lei desatualizada frente às mudanças do mundo do trabalho. “Se um banco é avisado com tanta antecedência, tem amparo tecnológico de transferir operações para outros locais. O direito de resistência, que está no direito de greve, é o direito de causar prejuízo. Sem isso, não se alcançam novas conquistas”, argumenta.

Para Coutinho, a lei é muito detalhista ao prever ações que configuram abuso por parte dos trabalhadores, mas pouco diz sobre as condutas anti-sindicais praticadas pelos patrões durante ou antes de uma paralisação. Um dos principais problemas da lei seria a possibilidade de aplicação de multas aos sindicatos. “A imposição pecuniária afeta a liberdade sindical, pois as multas podem simplesmente impedi-los de atuar”, avalia.

Caso exemplar desse problema aconteceu em 1995, quando, acionado pelo governo FHC, o Tribunal Superior do Trabalho julgou abusiva uma greve na Petrobras e impôs multa de R$ 100 mil à Federação Única dos Petroleiros por dia não trabalhado. Uma lei propondo a anistia da multa foi aprovada no Congresso e vetada duas vezes por FHC. Somente em 2003 foi sancionada por Lula.

E como solucionar os problemas da legislação e garantir a livre manifestação? “O direito do trabalho não nasceu da obra de grandes doutrinadores ou do Estado. É fruto da luta e organização dos trabalhadores, e o direito de greve tem um papel fundamental”, defende Coutinho. “Mas não esperem que esses problemas sejam corrigidos sem mobilização social”, finaliza.

Campanha em alerta
Em Gravataí (RS), a Federação Estadual dos Metalúrgicos (FEM-RS) e o sindicato da categoria em Porto Alegre foram alvos de ações de interdito no mínimo curiosas, movidas em 2001 pela fábrica da General Motors local e também pela Força Sindical, que reivindica a representatividade dos empregados. A multa de R$ 700 mil, se executada, inviabilizaria as entidades. A Federação enfrenta ações semelhantes em Canoas, Panambi e Caxias. “Já fazem de tudo para dificultar a atuação dos sindicatos nos locais de trabalho. Se não pudermos usar o espaço que sobra do lado de fora, como um sindicato pode atuar?”, questiona Milton Viário, presidente da FEM-RS.

Na capital paulista, o Sindicato dos Bancários não pode abrir faixas na calçada do Banco Real, na Avenida Paulista, sob pena de amargar prisões e multa de R$ 1 milhão por dia. Se protestar a menos de 200 metros (quatro vezes a largura da avenida), mais multa, de R$ 100 mil por dia. Há cerca de 70 processos de interdito movidos por bancos que somam um prejuízo potencial de R$ 4 bilhões à entidade. O que isso tem a ver com direito de propriedade? Nada. O que está em jogo é impedir trabalhadores de pressionar.

O sindicato lançou campanha publicitária para levar o debate à sociedade, com propagandas em rádio, cinemas e no metrô. Um histórico publicado em sua página na internet (www.spbancarios.com.br) explica didaticamente os abusos. “Queremos quebrar o silêncio em torno de um tema que interessa a todo mundo que busca manter seus direitos por meio de manifestações públicas”, diz o presidente do Sindicato, Luiz Cláudio Marcolino. A entidade espera ainda reunir autoridades num grande seminário sobre o tema. O ministro da Justiça, Tarso Genro, informado sobre as ações judiciais que ameaçam o direito de greve, sinalizou apoiar alterações na lei.

Colaborou Ricardo Negrão

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