cultura

Trilha sonora da folia

Mesmo ofuscadas pelo sucesso das escolas de samba e pelo desprezo das gravadoras e emissoras, as marchinhas resistem bravamente e voltam à cena com independência, qualidade e alegria

divulgação

Na Fundição Progresso, na Lapa carioca, a moçada se aglomera para avaliar as composições do concurso de marchinhas

O ano era 1899, quando a pedido dos foliões do cordão Rosa de Ouro, a já consagrada compositora Chiquinha Gonzaga compôs Ó Abre Alas, a primeira música de carnaval. Começava a história da marchinha, gênero da música brasileira com origem nas marchas militares e populares portuguesas das quais herdou o compasso binário, embora mais acelerado, e a batida forte. Crônicas urbanas sobre política, economia e futebol eram cantadas em melodias simples e letras irreverentes e engraçadas. No Rio de Janeiro, ganhou o nome de marcha-rancho por animar os ranchos de foliões, antigos blocos de rua.

O ritmo – difundido em rádios, bailes, cordões e concursos – consagrou compositores como Noel Rosa, Lamartine Babo, Braguinha, Ary Barroso e intérpretes como Carmem Miranda, Silvio Caldas, Emilinha Borba e Dalva de Oliveira. O jornalista e pesquisador Sérgio Cabral observa que o estilo prevaleceu sobre o samba entre as décadas de 1920 e 1970. “No tempo em que havia música feita especialmente para o carnaval, o repertório era dividido entre sambas e marchas, tanto que a prefeitura carioca fazia um concurso com prêmio para cada gênero. O samba, geralmente, falava de coisas do amor, enquanto as marchinhas eram mais brincalhonas, crônicas da vida brasileira.”

A partir dos anos 70, começou a sair de cena e abriu espaço para o samba-enredo. As escolas de samba se fortaleciam a cada ano e os desfiles viraram espetáculos de mídia. A produção de novos discos de marchinhas diminuiu, porque para as gravadoras era mais barato lançar músicas estrangeiras que produzir discos inteiros. Além disso, havia o jabaculê, “incentivo” pago para as rádios veicularem as músicas. As marchinhas já não eram mais tocadas e os tradicionais bailes, muito caros, foram perdendo prestígio. Os trios elétricos baianos começaram a arrastar multidões.

A música do carnaval não era mais a marchinha. Para os foliões restavam os velhos clássicos e alguns novos sucessos, como A Filha da Chiquita Bacana, gravada em 1975 por Caetano Veloso, ou Festa do Interior, de Moraes Moreira, gravada por Gal Costa nos anos 1980.

Resgate

A herança dos velhos tempos de folia permaneceu e o gênero continuou vivo no inconsciente coletivo. No Rio de Janeiro, o bairro da Lapa foi fundamental para o seu ressurgimento. Antigo reduto da malandragem boêmia, hoje área de preservação do Rio antigo e polo cultural, a Lapa tornou-se local de resistência do carnaval de rua e das marchas. Algumas iniciativas começaram a surgir de forma despretensiosa. Artistas e empresários passaram a investir na folia, o movimento ganhou força e vive um grande momento.

Em 2006, o 1° Concurso Nacional de Marchinhas da Fundição Progresso, na capital carioca, resgatou o estilo. O evento foi idealizado por Perfeito Fortuna, produtor cultural e presidente da Fundição, que sonhava em reviver os antigos festivais de marchinhas. A alegria contagiante da antiga batida carnavalesca deu ânimo a Perfeito quando foi preso pela ditadura, em 1968. Na noite de réveillon daquele ano, os companheiros de cela estavam tristes e amedrontados. Então, conta, ele resolveu brincar e cantar no banheiro. “Era um momento muito difícil. As marchinhas me deram força e resistência. Eu cantava bem alto ‘oh, joga a chave, meu amor’, mas ninguém jogava”, diverte-se.

O concurso está na quarta edição e desta vez homenageia Carmem Miranda, que completaria 100 anos neste 9 de fevereiro. Foram inscritas 843 marchinhas de 25 estados brasileiros. As dez melhores serão gravadas em CD e as três primeiras ganharão troféus e prêmios em dinheiro. Entre os finalistas de 2009, além de vários músicos, estão um funcionário público, um auxiliar protético, uma psicanalista e um profissional de informática. Para um deles, o cantor e compositor Edu Krieger, essa mistura democratiza o concurso.

O projeto também organiza um desfile pelas ruas da Lapa, o Marchódromo, além de bailes de salão com a apresentação das finalistas, festa de lançamento do CD e a grande final para a escolha da marchinha vencedora. O cantor e compositor Eduardo Dussek já compunha uma marchinha todo ano por amor ao estilo. “Fui classificado em todos os anos, mas só ganhei prêmio uma vez. Na verdade, quem ganha com isso é o movimento das marchinhas.” Para Dussek, faltam apoio das rádios e arranjos mais modernos para as marchas voltarem a fazer sucesso.

Edu Krieger não quer modernização. Para ele, qualquer compositor contemporâneo é influenciado por seu tempo. “O problema é que gravadoras, jabá, indústria da Sapucaí, tudo está a serviço de um interesse econômico. Se tivesse uma rádio que tocasse, já seria grande coisa. Antigamente, elas começavam a tocar em setembro e em fevereiro o público já conhecia todas as letras”, disse.

A psicanalista aposentada Vera Holanda Mascarenhas inscreveu-se no concurso por farra. No ano passado, o filho, Pedro Holanda, foi classificado. “Fizemos a maior bagunça, nos fantasiamos. Aí decidi participar. O edital dizia que a inscrição era aberta a qualquer cidadão brasileiro. Deu vontade.” Vera compôs a irreverente marchinha Velhinha Animada, que diz: “Eu sou uma velhinha animada/ Este ano destinada a brincar o carnaval/ Dor de coluna joguei fora/ Esquecimento, ora ora…”. Outra finalista, César Beliene, do grupo Eletrosamba, fala da política atual: “O Collor fez o Lula e o Bush fez Obama”.

O músico Edu Krieger lembra que quando a Liga das Escolas de Samba se tornou um império ficou muito difícil a disputa. “Não havia uma liga das marchinhas, um Marchódromo, não tinha estrutura financeira. Por que compor marchinha se não ia tocar em rádio? Porém, as coisas começam a mudar. As gravadoras estão falindo e não se precisa mais delas para promover um concurso.”

A maneira de compor já se modernizou. Um exemplo é a parceria dos finalistas Ramon Ribeiro e Fito Bucha, feita através da internet. “Cada um escrevia uma frase, depois fizemos a melodia. Nos inscrevemos no último dia”, lembra Ramon.

O músico Jean Phillipe, também finalista, vem de um movimento de resgate à tradição. Ele faz parte do bloco acústico Céu na Terra, que desfila e canta marchinhas tradicionais e autorais pelas ruas do bairro Santa Teresa. Os músicos seguem de bondinho pelas ladeiras e os foliões fantasiados acompanham o bloco entre bonecos gigantes e pernas-de-pau. “A gente sai com instrumentos de sopro, percussão e agogô. Minha voz não é mais poderosa do que a de ninguém, é um somatório que faz a coisa acontecer. Quem faz o carnaval de rua é a criança, o vovô, os trabalhadores que se vestem da alegria e do poder de estar ali naquele momento cantando e esbanjando felicidade”, descreve Phillipe. Em 2008, o bloco recebeu o Prêmio TIM de Música, na categoria melhor grupo popular.

Cidade das marchinhas

Rodrigo QueirozDussek
Dussek, veterano dos festivais, participa do concuso da Fundição por amor às marchinhas

As boas marchinhas não nascem apenas no Rio. São Luiz do Paraitinga, no interior de São Paulo, também classificou um finalista para o concurso carioca: Benedito Galvão, secretário de Cultura e organizador do concurso de marchinhas da cidade, que está na 24ª edição. A população da cidade, de 10 mil habitantes, multiplica-se durante o carnaval, quando as marchinhas atraem milhares de foliões. A história local é um tanto peculiar. Em 1920, o padre italiano monsenhor Ignácio Gioia proibiu os moradores de pular o carnaval. Quem desobedecesse ganharia rabo e chifres como castigo de Deus. Em 1980, a cidade ficou conhecida por essa história em uma reportagem na televisão, que dizia ser ela a única de São Paulo que não brincava o carnaval. No ano seguinte, o Clube Imperial Luisense e a prefeitura resgataram a folia.

O primeiro carnaval começou com 18 marchinhas; no ano seguinte já eram 80, e em 1984 foi criado o concurso. Hoje, os moradores se orgulham do acervo de mais de 1.500 marchinhas. “Já tivemos em nosso júri nomes como Zeca Balero, Chico César e Wanderléa. A cidade tem oito bandas que só tocam marchinhas locais. Aqui todos compõem e todos são personagens, do açougueiro ao professor”, comenta Galvão.

O concurso tem em média 60 inscrições anuais. A premiação é de R$ 2 mil para o primeiro lugar, R$ 1 mil para o segundo e R$ 500 para o terceiro. A prefeitura ainda premia o melhor arranjo e a melhor letra. “É simbólico. O concurso nasceu para estimular os compositores da região, mas já tivemos inscritos de fora”, lembra Galvão, que nunca pôde participar do concurso por integrar a equipe de organização.

A velha guarda

Quem não brincou ao som de Cabeleira do Zezé? É por isso que não se pode falar em marchinhas sem falar em João Roberto Kelly. Suas composições são mais executadas no carnaval do que as músicas de Ivete Sangalo. Rei das Marchinhas, Kelly completou 50 anos de carreira em 2008. No 4° centenário do Rio de Janeiro, em 1965, venceu o concurso da prefeitura com as músicas Mulata Bossa Nova, Joga a Chave, Meu Amor e Rancho da Praça Onze. “Meu maior prêmio é ver minha música passar de geração a geração”, diz.

Apesar do declínio das marchinhas, Kelly ainda conseguiu emplacar alguns sucessos com Chacrinha nos anos 80, como Maria Sapatão e Bota a Camisinha. No ano passado, a cantora Alcione gravou Mormaço, e o grupo Exaltasamba lançou em CD e DVD a Dança do Bole-Bole, antigos sucessos de Kelly. “Antes a folia durava apenas os quatro dias, hoje a juventude faz isso o ano inteiro, dançando rock no compasso ‘pak, pak’, como na marchinha (risos). Foi o que eu descobri lá atrás com ‘e só dá ela Iê, iê, iê, iê, iê, iê, iê, iê, na passarela’.”

Outra marchinha que faz parte de todo carnaval é Me Dá Um Dinheiro Aí, de Homero Ferreira, composta com seus irmãos Ivan e Glauco. Aos 83 anos, ele ainda está na ativa e foi o primeiro vencedor do concurso da Fundição Progresso, com a Marcha do Viagra. Para Homero, o carnaval de rua está voltando porque assistir aos desfiles das escolas de samba é caro e as pessoas querem brincar. “As novas marchas são boas, falta mídia”, critica. Segundo ele, quando apresentou a marchinha Me Dá Um Dinheiro Aí, em 1959, composta para o programa de humor Praça da Alegria, e gravada por Moacir Franco, as rádios tocavam de graça. “Não precisava ficar pagando jabá”, recorda Homero os bons e velhos tempos, que estão de volta.