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Três irmãos de sangue

A história de Betinho, Henfil, Chico Mário e do Brasil pelo qual lutaram é marcada pelas atitudes em defesa da vida. E ensina que o tempo é muito valioso. Devemos fazer da vida e do tempo, todos os dias, o melhor

Patrícia Santos/Folha Imagem (Betinho). Antonio Lucio/AE (Chico Mário). Avani Stein/Folha Imagem (Henfil)

O filme Três Irmãos de Sangue nasceu num momento de morte para se tornar um manifesto pela vida. No dia em que Betinho se foi, seu sobrinho Marcos, filho de Chico Mário, pensou: a vida dos irmãos Souza tem de ser contada. Herbet, o Betinho, ficou conhecido pelo movimento Ação da Cidadania Contra a Miséria, a Fome e Pela Vida. E já estava no imaginário nacional por ser o irmão do Henfil eternizado por Elis Regina em O Bêbado e a Equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco. Henrique, o Henfil, conquistou os brasileiros com seu humor instigante e audaz, seus personagens inesquecíveis. Cunhou o bordão “Diretas Já”. Chico Mário foi violonista excepcional, ativista da música independente e da luta por um país mais justo. Segundo a jornalista Marília Gabriela os irmãos tinham, cada um ao seu modo, “uma preocupação social colocada vivamente em seus trabalhos”.

É impactante ouvir Joyce cantando a música que Chico Mário fez para denunciar a tortura. É hilariante relembrar a crítica inteligente de Henfil à ditadura por meio da coluna Cartas à Mãe. É emocionante acompanhar a volta de Betinho e tantos outros ao Brasil como saldo da luta pela anistia.

Diante da responsabilidade de dirigir esse documentário, deparei com alguns desafios. O primeiro deles ligado à riqueza das histórias e à quantidade de material disponível. Tarefa à qual Cristiano Gualda e eu, no roteiro do filme, nos dedicamos com afinco. A cada momento em que o processo avançava surgiam mais histórias interessantes. Começamos com uma pequisa preliminar de texto e imagem, depois vieram as pré-entrevistas, as gravações, mais material de arquivo (muita coisa antiga sendo recuperada) e por aí foi.

Ligada a tudo isso tínhamos a história do Brasil – quarto personagem desse roteiro. Pessoas que viveram momentos como a ditadura e a anistia, ao final da primeira exibição fechada do filme, reviram parte importante de sua vida. Já os mais jovens demonstraram imenso interesse em saber mais sobre a época. Mais do que fatos cronológicos apresentados friamente, o que nos conecta à nossa história é conhecê-la através dos olhos de pessoas que a viveram de modo tão intenso e apaixonado.

Outro desafio foi lidar com a memória afetiva das pessoas. Ao entrevistar amigos e parentes dos três, a tônica foi o respeito ao turbilhão de emoções relacionado aos tópicos que eram tratados. Acredito que o melhor modo de contar histórias reais, como no caso dos irmãos, é mesmo seguir a intuição e deixar a sensibilidade falar mais alto. Quando acabou a primeira exibição para convidados e a Maria, viúva do Betinho, me abraçou, minha sensação foi uma mistura de alívio, alegria e emoção.

Atitude

Agora Três Irmãos de Sangue entra em cartaz. Exatos dez anos após a morte de Betinho. E a força do exemplo deixado por esses três irmãos renasce a cada dia. Como diz o compositor Fernando Brant no início do documentário: “A vida deles poderia ser uma ópera. No sentido que ela tem o começo, o meio e o fim. Tem o drama e acaba em tragédia, mas se renova e volta ao começo na esperança”.

À medida que o tempo passa parece que o filme me toca ainda mais. Não sinto que fiz parte do processo de realizá-lo. Coloco-me como espectadora e aprendo cada dia um pouco mais com esses irmãos tão peculiares. Com Henfil aprendi como se consegue driblar os obstáculos da vida por meio do riso. Não um riso qualquer, mas sim um riso revolucionário. Com Chico percebi como é importante empregar nossos talentos para modificar a realidade que nos cerca. Já Betinho me ensinou que, se queremos de verdade viver em uma sociedade melhor, cada um deve fazer sua parte. Ele, que podia ter se conformado, nunca deixou de sonhar e agir.

Por serem hemofílicos, os três irmãos contraíram o HIV em transfusões de sangue. Se hoje o Brasil se destaca mundialmente no combate à aids, isso se deve em grande parte à luta dos três irmãos contra a discriminação e pela qualidade de vida dos pacientes. Betinho, como Henfil e Chico, escolheu combater suas limitações, impossibilidades e dores para defender as idéias nas quais acreditava. Ao percebermos que nossas ações não acabam em nós mesmos, nem mesmo quando nossa vida acaba, mas se perpetuam no impacto que continuam a ter sobre outros seres humanos e sobre a sociedade, tomamos consciência da importância de nossos atos.

Se escrevo sobre eles, agora, é porque suas atitudes mudaram o Brasil, mexeram com a vida das pessoas. Como diz o médico Walber Vieira, Betinho não tinha uma atitude diante da morte: “Ele sempre tinha atitudes diante da vida”. Ou como dizia o próprio Betinho: “A vida é uma só. É valiosa. O tempo é muito valioso. E nós devemos fazer da vida e do tempo o melhor que nós pudermos, todos os dias”. Que a história desses irmãos seja sempre fonte de energia para se recuperar o valor da dignidade humana, tão esquecido ultimamente.

Documentário entra em cartaz este mês
Ângela Patrícia Reiniger é diretora do documentário Três Irmãos de Sangue (2005, 104 minutos). O roteiro é dela e de Cristiano Gualda, com fotografia de Márcio Zavareze e música de Chico e Marcos de Souza. O filme entra em cartaz em agosto. Parte da renda do documentário, assim como o cachê por este artigo, será destinada à Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia).