Crônica

Trem doido

Panelas e comida, doença e remédio, material de escritório e até mulher: para os mineiros tudo é trem. Menos o trem

mendonça

Mineiro gosta mesmo de trem. Não tem jeito. Inclusive chama tudo de trem. Refere-se às panelas e aos pratos como trens de cozinha. Doença é um trem e o remédio também. Um mineiro piorava de saúde e me dizia que teve um trem esquisito, mas depois tomou um trem que o farmacêutico receitou e ficou bom.

Já vi gente comprar trem de escritório, trem de matar mosquito, trem de tudo quanto é tipo. Até quando está com fome, vai ali e come um trem. Mulher bonita é trem bão, ou trem doido. Como diz a piada, mineiro só não chama uma coisa de trem: o trem, quer dizer, o trem de ferro, como o chamávamos. Contam que uma família esperava o trem numa estação mineira e, quando ele apontou se aproximando da estação, o homem falou pra mulher:

— Mulher, pega os trens que lá vem o baita.

Eu sou mineiro de uma cidade que nunca teve trem – quer dizer, trem de ferro. Porque outros trens tinha aos montes, já que a gente também chamava tudo de trem. Então tinha muito trem, mas não o baita, “de ferro”. Uma frustração!

Do quintal da minha casa, em Nova Resende, olhando os morros cobertos de café, de mata ou de pastos, eu via distante, a mais de vinte quilômetros, lá embaixo, um trem da Rede Mineira de Viação, que ia de Muzambinho a Monte Belo e de lá para Juréia. Mas nem dava pra ver como era, só via aquele risquinho distante, se movimentando. E sonhar com uma viagem de trem. E quando vim para São Paulo, foi de trem da Mogiana, que peguei em Guaxupé.

Já em São Paulo, sempre que podia, viajava de trem. Quando vi que acabavam com as ferrovias no Brasil, viajei de trem o máximo que pude. Eram viagens divertidas, apesar de demoradas, porque a gente ia conversando, ouvindo histórias, conhecendo o povo, andando de um vagão para outro, parando no vagão restaurante pra tomar uma cerveja…

Foi uma grande sacanagem a política de favorecimento do transporte rodoviário. Acabou com as ferrovias. A última perversidade feita com elas foi a privatização, que praticamente acabou de vez com o transporte de passageiros no Brasil. Sobraram, claro, os trens urbanos e umas poucas linhas interurbanas, a maioria delas de trens turísticos.

Os viajantes de hoje nem imaginam como era divertido, bonito e enriquecedor (no sentido cultural) cruzar o Pantanal de trem, ir de São Paulo a Uruguaiana, de Belo Horizonte a Salvador, de Fortaleza ao Crato… Era bom viajar de trem.

Mas às vezes era difícil. Muitos dos próprios ferroviários, ou melhor, dos burocratas das ferrovias, contribuíram para a extinção desse meio de transporte. Alguns faziam verdadeiras campanhas contra ele. Lembro-me de uma vez que estava em Teresina, no Piauí, e resolvi ir de trem para São Luís do Maranhão. Fui comprar passagem para o dia seguinte, o homem do guichê falou:

— De ônibus, você gasta seis horas daqui lá, por que quer ir de trem, que gasta mais que o dobro?

— Porque eu gosto de andar de trem.

— Mas vai demorar muito.

— Não tem importância, eu tô à toa. Quero uma passagem pra amanhã, às oito da manhã.

— O trem de amanhã tá atrasado, não vai sair nesse horário.

— Eu espero.

— Não sei nem se sai amanhã.

Nisso entrava um trem do tipo maria-fumaça na estação. Falei:

— Olha ele aí. Tá chegando, então vai poder sair amanhã mesmo.

Ele não se deu por achado:

— Esse é o que devia ter chegado ontem e vai sair só depois de amanhã. O de amanhã, que devia ter chegado anteontem, ainda não chegou.

Não sei se era verdade, mas desisti. O certo era que o burocrata não queria me vender passagem, de jeito nenhum. E venceu!

Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é jornalista e geógrafo.Publicou vários livros, entre eles o Anuário do Saci (Editora Publisher Brasil, 2006), ilustrado por Ohi