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Tesouros bolivianos

A Bolívia ainda é um destino pouco conhecido dos brasileiros, mas rico em preciosidades históricas e naturais

paula sacchetta

Montanha de Chacaltaya, a 5.395 metros de altitude

Uma das maneiras mais conhecidas de chegar ao país é pelo chamado “Trem da Morte”. Ele sai de Puerto Quijarro (ou Puerto Suárez), logo depois da travessia da fronteira em Corumbá (MS), e vai até Santa Cruz de la Sierra, no oriente boliviano. A opção é mais barata e oferece desde o início uma imersão na rica cultura de nosso vizinho. Segunda maior cidade do país, com quase 1,5 milhão de habitantes, Santa Cruz não tem as famosas cholas andando pelas ruas. Sem maiores atrações turísticas, o interessante de Santa Cruz é observar e tentar entender o movimento autonomista da chamada “Bolívia branca” – e não indígena –, majoritariamente contrária a Evo Morales.

Se a opção é avião, melhor é chegar pela capital mais alta do mundo: La Paz. O avião aterrissa em El Alto, 4.100 metros acima do nível do mar e a 10 quilômetros do centro. A chegada é emocionante. A asa parece raspar os picos da Cordilheira dos Andes forrados pelas “neves eternas”. El Alto tem 20 anos de idade e meio milhão de habitantes. A maior parte da população é Aymará e Quéchua – as duas principais etnias bolivianas. Aos domingos acontece uma imensa feira, onde se vendem roupas, televisores e geladeiras usados, grãos e cereais, instrumentos musicais e edições baratas e “piratas” de livros que vão de Eduardo Galeano a Paulo Coelho em espanhol. Na descida do aeroporto ao centro de La Paz é outra surpresa a vista da cidade lá embaixo, dentro da cratera de um meteoro.

La Paz é linda, riquíssima culturalmente, mas ainda um pouco suja. A geografia impressiona, dentro de uma grande depressão rodeada pela cordilheira. Chegar de avião exige calma. Ninguém fica impune à altitude. Nos três primeiros dias podem aparecer uma dorzinha de cabeça, enjoo e tontura, mas aos poucos o corpo se aclimata e permite explorar a pé – pelas inúmeras subidas e descidas – a cidade que mais tem a cara da Bolívia. O centro urbano é pequeno por conta dos limites naturais. O transporte público e os táxis são baratos, mas o trânsito é caótico. Ande. Há hospedagens dos mais variados tamanhos e preços. Uma noite de luxo e conforto no Ritz por US$ 120 ou num albergue limpinho e arrumado por B$ 20 (pesos bolivianos), menos de R$ 10.

O Museu de Etnografia e Folclore, perto do centro histórico, é obrigatório. Guarda a história do país, tem salas divididas entre as regiões e exposições temporárias imperdíveis. Ainda no centro, na Plaza Murillo, estão os palácios Legislativo e Presidencial. Todas as paradas e festas oficiais acontecem ali. A Calle Jaén, ruazinha antiga toda em ladrilhos e onde não entra carro, também está perto. É onde fica a maior parte das construções coloniais que sobraram em La Paz, além de diversos museus, como o do Litoral Boliviano – a Bolívia perdeu sua saída para o mar em 1879, na Guerra do Pacífico contra o Chile, e até hoje tenta reconquistá-la.

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Lago Titicaca, a 3.821 metros acima do nível do mar

 

A Calle de las Brujas, perto da Igreja San Francisco, não tem esse nome à toa. Além de ponchos e casacos de lã para turistas, vende produtos místicos e pouco convencionais, como fetos de lhama envoltos por pedaços de lã colorida para serem oferecidos a Pachamama – a Mãe Terra.

Fora de La Paz, as ruínas Tiahuanaco, próximas às margens sul do lago Titicaca, ficam a pouco mais de uma hora e guardam um sítio arqueológico do povo que ocupou o altiplano boliviano por mais de 3 mil anos. É o maior exemplo arquitetônico da cultura pré-incaica na América do Sul. Passeios de um dia podem ser programados em agências do centro de La Paz, com a entrada do parque, transporte e visita guiada incluídos. Imperdível.

Para os mais aventureiros há opções muito interessantes. Descer de bicicleta a “Estrada da Morte”, até Coroico, ou subir até Chacaltaya, montanha a 5.395 metros de altitude. A primeira exige muito, mas a paisagem é impagável. O percurso de 65 quilômetros, só descida, leva cerca de cinco horas. Vale a pena fazer com uma agência de viagens com a qual você se sinta seguro e confiante, já que é perigoso. 

Para Chacaltaya é possível subir até 5.265 metros de carro. A partir daí, base da estação de esqui mais alta do mundo, muito fôlego: são 130 metros de caminhada. No gelo do inverno ou na montanha seca do verão, a caminhada exige muito, por causa do ar rarefeito. A vista lá de cima compensa o sacrifício. Dali, pode-se ver La Paz inteirinha, o altiplano e lagoas das mais diversas cores, do azul-turquesa ao laranja, formadas pelas águas do degelo da montanha.

Bolívia toda guarda surpresas para os mais diferentes interesses. Históricos, como a escola em La Higuera onde Che Guevara foi morto, e Vallegrande, em Lavanderia, onde seu corpo ficou exposto para os militares e para a imprensa, em 1967. Ou simplesmente fotográficos, como o Salar de Uyuni, um dos lugares mais inóspitos e impressionantes do continente; e Isla del Sol, no lago Titicaca, onde vale passar ao menos uma noite em algum dos simpáticos albergues. E ver o sol se pôr e o alvorecer bem no meio do lago navegável mais alto do mundo. 

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Salar de Uyuni, gelado deserto de sal

Onde o tempo não existe

Com 12 mil quilômetros de extensão, o Salar de Uyuni é um imenso deserto de sal nos Andes, a 3.600 metros do nível do mar. E assombra com paisagens congeladas, onde nada se move, exceto os poucos habitantes das comunidades. A região já foi mar há milhares de anos e hoje é a única fonte de sal da Bolívia, que não tem litoral. Em cada uma das casas do pequeno povoado de Colchani o quintal é recoberto de sal grosso extraído à mão. No fundo, famílias inteiras enfileiram-se de cócoras para separar e embalar o sal já seco depois de dias exposto ao sol. Cada 50 quilos de sal é vendido pelo equivalente a R$ 0,10. Fechando cada pacotinho com um maçarico, Cecílio tem 18 anos, mas parece ainda adolescente; masca folhas de coca e fala pouco. Perguntado se se incomoda com os turistas, é seco: “Sim”.

Apenas as 15 casas de Colchani dão alguma cor ao horizonte. O chão tem rachaduras, como num semiárido. O céu azul é pontilhado por poucas nuvens. Entre dezembro e março, por causa das chuvas, a água chega a se acumular de 20 a 25 centímetros sobre o chão branco amarelado de sal, que vira um espelho. A paisagem surrealista se duplica – as nuvens, os vulcões, as montanhas.

Parada obrigatória para quem parte da pequena cidade de Uyuni – a cinco horas de Potosí – é a ilha Incahuasi e seus cactos gigantes. Outra atração são os hotéis construídos com blocos de sal – como suas camas e mesas –, com diárias por US$ 20. Tudo é esculpido. O chão é revestido de carpetes com temas andinos e colchões e almofadas ajudam a combater o frio, que no inverno chega a menos 18 °C. O pôr do sol aos pés do vulcão Tunulpa colore o céu e o chão de vermelho. Nas bordas do Salar existem rastros de antiga civilização pré-incaica que ocupava a região de Coquesa, ao norte. Para quem tem tempo para um tour de quatro dias, vale uma volta pela região árida a oeste, em direção à fronteira com o Chile. No Parque Nacional Eduardo Avaroa, lagoas coloridas servem de habitat para milhares de flamingos.  

Destino ainda pouco conhecido na América do Sul, por causa da precária infraestrutura (a primeira estrada de asfalto, que liga a cidade de Uyuni até Potosí, ainda está em construção), o Salar deve ganhar notoriedade este ano, quando começam a ser produzidas as primeiras toneladas de carbonato de lítio. O minério é usado em baterias de longa duração, pela indústria automobilística para ser combustível de carros elétricos. É o “pré-sal” boliviano, visto pelo governo Evo Morales como tesouro do futuro industrial do país – sua reserva de 9 milhões de toneladas é a maior do mundo.

Vale uma visita antes que a letra se espalhe. O turismo é pouco ordenado e barato, com centenas de agências oferecendo tours em jipes apinhados de gente, estadia em alojamentos frios e sem estrutura por cerca de US$ 25 por dia. Os tours costumam ser apressados e com pouca preocupação ambiental, próprios para quem não se importa em passar por cenas desagradáveis, como ter de esperar o motorista ficar sóbrio. Vale pesquisar bem: www.boliviacontact.com/OperadoresdeTurismo_Uyunis.html. 

Aos poucos começam a aparecer empresas com prática mais sustentável. A Senda Andina busca e devolve passageiros em La Paz por US$ 85 a US$ 105 por dia. Leva no máximo cinco pessoas por jipe e possui instalações próprias e ambientalmente corretas. Com latrinas que produzem composto orgânico, luz solar e construídas com material reciclado, elas ficam em locais mais sossegados e afastados – aos pés do vulcão Tunulpa e da reluzente lagoa Hedionda. “Queremos que pessoas de todas as idades possam visitar essa maravilha no futuro”, diz o proprietário Mueses Calcina. Informações: www.boliviadesiertos.com.  

Estude o roteiro
Para quem escolhe ir de Quijarro a Santa Cruz, há opções de ônibus, táxis ou o “Trem da Morte”. Neste caso, leve garrafas de água, sopas instantâneas, produtos integrais e, se puder, garrafa térmica, copo e talheres, pois as condições higiênicas no trem são desoladoras. Em qualquer tempo, a madrugada é muito fria. De Santa Cruz para La Paz de ônibus será mais um dia de viagem, com parada obrigatória em Cochabamba.

A Rota do Che, de Santa Cruz a Vallegrande, leva à região onde o guerrilheiro e seus companheiros foram enterrados. Seus corpos estão em um mausoléu. Nas ruínas de El Fuerte Samaipata, “descanso nas alturas” em quéchua, a 2 mil metros de altitude, fica a chamada “colônia de férias” dos chefes incas.

Na cidade, um museu (patrimônio da humanidade) abriga relíquias incas e a memória da guerrilha. A viagem até Samaipata custa B$ 15 (pesos bolivarianos); para Vallegrande, B$ 35. O trajeto é belíssimo. O passeio nas ruínas pode ser feito em uma tarde, B$ 60 para o táxi e B$ 50 para entrar no parque e no museu.

Por fazer parte do Mercosul, basta estar munido de carteira de identidade (a de motorista não é aceita, somente o RG ou o passaporte). Não aceite cobrança de nenhum valor para a travessia na fronteira, que é livre de tarifação. Os pacotes vendidos em território brasileiro são muito mais caros. Vale estudar previamente a viagem para, com atenção, contratar os serviços localmente. 

Reportagens de Paula Sacchetta, Eloisa Benvenutti, André Berger e Natalia Viana