Crônica

Terra estrangeira

“Fiquei por lá e pude participar do longa-metragem. Walter Salles não faz ideia de que eu existo, nem naquela época, nem hoje, que escrevo e arranjei um pseudônimo argentino”

mendonça

Eu tinha 17 para 18 anos. Já morava com meu marido e queria prestar vestibular para Cinema. Caí de paraquedas na produtora dos comerciais mais cults da temporada. Campanhas de cigarros para as quais diretores como Walter Salles fazia películas sensíveis e coloridas.

Entrei como estagiária de produção. Calcule que produção é um trabalho falsamente objetivo levando em consideração as várias decupagens subjetivas em que é exposto um filme, mesmo que publicitário. Conte que uma estagiária de produção pode recolher sacos de 100 litros de folhas secas no Parque do Ibirapuera para uma tomada de um comercial da Gelol. Essa foi minha primeira tarefa. Meu primeiro set de cinema foi um comercial de Gelol.

Cheguei numa “refação”, ou seja, o filme já tinha perdido horário de inserção pelo atraso das filmagens. Há dez anos os computadores não resolviam o que resolvem hoje. Éramos analógicos, no máximo alguém carregava um bip nas calças. A equipe estava tensa, bastava uma gota para arrebentar os nervos do maquiador ao diretor.
O menino que caía da bicicleta trabalhava em circo. Depois de inúmeras tentativas, o pai disse que ele faria só mais uma cena e o levaria de volta para casa, que aquilo já era palhaçada. De repente, de um dia garoento, surgiu o sol. Iluminou as folhas devidamente colocadas por mim, a última camada de lasanha, perfeita. Tudo pronto.

Eu ficava embaixo do precipício de onde o menino se jogava com a bicicleta, com uma flanela limpava o atorzinho da lama caso repetissem a tomada. Não foi preciso, a cena foi um sucesso, o tombo perfeito, a luz de Akira Kurosawa. Só não foi ao ar, coroando o dia, porque eu, a estagiária, apareço chacoalhando a flanela em flagrante emoção na frente da câmera. Bem no desfecho da cena.

Se eu tivesse amor-próprio, nunca mais teria voltado à produtora, tomei pedrada de toda a equipe. Como me amo com parcimônia e meu primeiro trabalho foi numa loja de sapatos, aquilo tinha pelo menos um charme. Fiquei por lá e pude participar de Terra Estrangeira, longa-metragem de Walter Salles.

Quando rolou o filme eu já sabia me comportar e me mantive quieta e atrás das câmeras. Filmaríamos de madrugada na Avenida São João, num apartamento alugado onde morava o personagem Paco. Eu teria de ser a primeira a chegar e deixar o café-da-manhã pronto para a equipe. O diretor de produção, Afonso Coaracy, pediu que eu fizesse 20 litros de café. Acordei às duas da manhã para a tarefa. Munida de walk-talk, ouvi o produtor dizer ao maquinista:

– O café tá bom?

– Pelo menos tá coado.

Meu nome está nos créditos finais, lá no fim, quase encostando no Panavision. Pena que quando a equipe foi a Portugal não pude ir. Uma estagiária de produção se arruma em qualquer esquina. Walter Salles não faz ideia de que eu existo, nem naquela época, nem hoje, que escrevo e arranjei um pseudônimo argentino.

Andréa del Fuego, escritora, é autora da trilogia de contos “Minto Enquanto Posso”, “Nego Tudo” e “Engano Seu” e do romance juvenil Sociedade da Caveira de Cristal. Blog: www.delfuego.zip.net