entrevista – parte 2

Solidariedade exigida dos ricos não é gratuita

Os países desenvolvidos têm de criar fundos e apoiar os em desenvolvimento na mudança de suas matrizes de emissão sem impactar na possibilidade deles de reduzir a pobreza

Jailton Garcia

“A solidariedade exigida dos ricos não é gratuita, é em função do que eles já emitiram, é uma obrigação”, diz Nobre

Carlos Nobre fala sobre a experiência do mercado de créditos de carbono e sua aplicação em outras modalidades de controle de emissões e de preservação de biomas. Alerta que o Brasil precisa investir no aperfeiçoamento de sua produtividade agrícola, porque o país tem plenas condições de ser o tal “celeiro do mundo” sem que para isso tenha de desmatar a Amazônia, o Cerrado e o que resta de Mata Atlântica. E defende que os países ricos têm uma obrigação solidária de ajudar os pobres e em desenvolvimento a encontrar matrizes menos poluentes de desenvolvimento sem comprometer sua capacidade de crescer e resolver suas demandas sociais.

Revista do Brasil – O mercado de crédito de carbono é suficiente para que os países que já têm bom nível de bem-estar social consigam manter seu padrão e, ao mesmo tempo, financiar o desenvolvimento sustentável em países menos desenvolvidos?

Carlos Nobre – O Banco Mundial estimou que a transferência dos países ricos para os países em desenvolvimento e pobres – para que consigamos ir para uma trajetória de sustentabilidade, reduzindo as emissões, atuando nas questões de desenvolvimento e preservando a natureza – deve ser de US$ 400 bilhões por ano, hoje.

O mercado de carbono já teria chegado a US$ 120 bilhões em 2008…

Esse número está um pouco equivocado. O número mais correto desse mercado e para essa conta é menos de US$ 20 bilhões. O resto é de países ricos trocando, entre si, direito de emitir mais – US$ 91.220 bilhões foram movimentados por esse esquema. Faz sentido para eles, mas o cálculo do Banco Mundial é para os países em desenvolvimento. O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo foi uma boa aula de coisas que poderiam ser feitas. Se ele não existisse, a gente não saberia como transformar o metano dos lixões em energia. Não podemos dizer que não serviu para nada, mas é muito pequenininho, chegou a US$ 20 bilhões, quando o Banco Mundial estima a necessidade de US$ 400 bilhões. Esse montante seria para os países em desenvolvimento e pobres alterarem sua matriz energética, para formas renováveis. Se os países desenvolvidos assumirem metas importantes agora em Copenhague, esse mercado de carbono vai se tornar mais vibrante. Mas está longe de chegar a US$ 400 bilhões.

Os ricos vão ter de ser mais tolerantes com as nossas emissões?

Eu não chamaria de tolerantes. Eles têm de reduzir rapidamente. O que precisam ser é mais solidários. Se todos decidirmos que é importante reduzir em 80% as emissões até 2050, isso significa 100% de redução deles – descarbonizar, zerar a emissão –, para que os países em desenvolvimento possam ainda emitir. Mas aí estes terão de reduzir também, porque não dá para aumentar, senão o mundo vai superaquecer. E, para os países em desenvolvimento diminuírem, para os pobres se adaptarem, o número do Banco Mundial é esse. É muito mais do que o mercado de carbono pode possibilitar. Esse mercado talvez chegue a US$ 100 bilhões – um quarto do necessário. A solidariedade exigida dos ricos não é gratuita, é em função do que eles já emitiram, é uma obrigação. Os ricos têm de criar fundos, e esse dinheiro tem de ser transferido para os países em desenvolvimento mudarem as matrizes de emissão sem que isso signifique um impacto na sua possibilidade de reduzir a pobreza.

Na Índia há 400 milhões – mais de duas vezes a população brasileira – que não têm eletricidade. Você não pode não querer ter um programa de eletrificação na Índia. A China tem 500 milhões de pobres rurais, a Índia 800 milhões de pobres, o Brasil tem mais de 100 milhões, a Indonésia, 150 milhões. Essas pessoas precisam ter acesso a uma melhor qualidade de vida – mais energia, alimentos, saneamento básico –, e precisam de dinheiro para isso.

Todas essas coisas, porém, podem significar aumento de emissões se não entendermos que o momento do modelo do combustível fóssil acabou e chegou a hora do modelo da energia renovável e da reciclagem. É agora e daqui para a frente, para o futuro. Brasil, Índia, China têm condições de avançar nessa outra trajetória, mas precisam de ajuda também. É esse acordo que esperamos que saia, mas não há certeza de que sairá em Copenhague. Pode ser que leve alguns anos.

Será que Brasil, China e Índia podem chegar a Copenhague fortalecidos e influenciar os ricos a investir nesse padrão solidário de desenvolvimento?

A posição do conjunto dos países em desenvolvimento hoje é exigir que eles assumam um compromisso de redução de emissões para até 40% do que emitiam em 1990, que é o ano de referência. O que estão exigindo é certo, têm de chamar a responsabilidade para os que mais emitiram. É uma posição absolutamente defensável, justa. Agora, é lógico que essa cobrança adquire muito mais força política se esses países também sinalizarem que querem seguir a trajetória de sustentabilidade – o que muitos estão fazendo, incluindo o Brasil. O grande trunfo brasileiro é a redução dos desmatamentos da floresta amazônica. Existe um consenso muito bem estabelecido em nível de governo federal. Na sociedade, nem se fala, pois há muitos anos as pesquisas de opinião demonstram que os brasileiros não querem mais destruição na Amazônia, não querem mais o modelo de desenvolvimento predador, que mantém a pobreza disseminada no interior da floresta. Nem desenvolvimento econômico esse modelo leva, é concentrador de renda, mais até que o sistema financeiro brasileiro.

O Brasil deu um passo importante ao se comprometer a reduzir o desmatamento na Amazônia. Essa política, que o presidente Lula anunciou em 3 de dezembro do ano passado, segue firme, está cada vez mais sólida, os governos estaduais amazônicos começam a abraçá-la. E se o Brasil conseguir cumprir essa promessa, de reduzir em 80% os desmatamentos até 2020, terá dado um passo muito significativo. As emissões poderiam se estabilizar – crescer no setor industrial, de energia, e diminuir em função de não mais desmatar. Podemos diminuir o desmatamento no Cerrado; o país tem grande potencial de reflorestamento; numa agricultura moderna, científica, com técnicas já existentes que só precisam ser mais disseminadas – e o agricultor precisa mudar um pouco sua cultura e se preocupar mais com isso –, os solos agrícolas podem também retirar gás carbônico da atmosfera, e as raízes enriquecem o solo de matéria orgânica, que mantém o carbono. E, por último, fazendo com muito cuidado, o Brasil tem potencial de substituir combustíveis fósseis por etanol.

Sem com isso correr o risco de sufocar todas as suas terras com monoculturas?

O Brasil tem, em média, uma baixíssima eficiência agrícola. Tem uns 500 mil, 600 mil quilômetros quadrados de culturas agrícolas e 2 milhões de quilômetros quadrados de pastos. Poucos países do mundo têm tanto pasto, uma cabeça de gado por hectare. Uma pecuária minimamente eficiente tem quatro. Então, se trouxer mais eficiência, mais ciência, mais tecnologia para toda a agricultura, o Brasil, com 2,5 milhões de quilômetros quadrados de pecuária e agricultura, pode ser o que a gente sempre imaginou que um dia seria: celeiro do mundo. E para isso não precisa desmatar a Amazônia, o Cerrado, não precisa destruir o restinho de Mata Atlântica que existe. Tem de ter ideia de conservação do solo, de eficiência, de preservação dos ecossistemas, de agricultura sustentável. E tudo isso custa caro.

E de onde vem esse dinheiro?

Parte pode vir de créditos de carbono. Uma maneira belíssima de o Brasil usar seu potencial de armazenar carbono é uma parte desse recurso modernizar a agricultura brasileira, e modernizar em toda a escala. Não estou falando só de agronegócio, não, mas de toda agricultura, a familiar também. Na Amazônia, mais de 30% dos desmatamentos estão nas pequenas propriedades. Existem bons exemplos de agricultura familiar produtiva, que melhora a renda do agricultor, mas temos também os maus exemplos, que não são a maioria, felizmente, mas são uma parcela importante dos desmatamentos. Precisamos substituir esse modelo por um outro, sustentável.

Como o senhor avalia a fase 1 do Protocolo de Kyoto (2005-2012) e o que o espera do encontro de Copenhague? Existe o risco de se rasgar o Protocolo?

Acho improvável que se acabe com espírito do Protocolo de Kyoto, no sentido de uma divisão muito clara de responsabilidades. Os países ricos, os que mais emitiram no passado, têm de assumir responsabilidades. Não seria diplomaticamente aceitável não assumirem. Minha avaliação do protocolo não é muito diferente da que faz a maioria dos analistas, mas talvez seja eu um pouco mais tolerante ao não usar a palavra “fracasso”, que muitos usam. Desde a origem ele nasceu fraco, aquém das necessidades do planeta. Se tivesse sido mais arrojado nas metas de redução de emissão, mesmo sem a adesão dos Estados Unidos, teria mostrado um caminho: como é que os países reduzem 20%, 30%? Mas já nasceu fraquinho, acanhado.

E os Estados Unidos vão sempre ficar de fora?

Os Estados Unidos não vão mais entrar no Protocolo de Kyoto porque expira em 2012. Mas terão de entrar no esforço, qualquer que seja o novo mecanismo. Muitos preferem chamar de um novo mecanismo, não de renovação de Kyoto. Não é fase 2, já está decidido. Fala-se em pós-Kyoto e muitos, até para não se referirem a Kyoto, dizem “pós-2012”.

E qual vai ser o grande acordo?

Não sabemos ainda. Certamente não é Kyoto. Há demanda por uma série de transformações, inclusive algumas que faltaram em Kyoto. E a diplomacia brasileira tem muita responsabilidade, porque lá atrás, em Kyoto, faltou incluir as florestas. Permitiram-se vários Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, e o Brasil lutou para não permitir as florestas. Agora há uma discussão avançada de inclusão da proteção das florestas, através de um conceito chamado Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD). Quer dizer, se diminuirmos o desmatamento, reduzimos a emissão. Então, vamos trabalhar com a intenção de criar um mecanismo de auxílio financeiro. São vários em discussão. Por exemplo, doações de países ricos; ou países que tenham cumprido sua meta e decidem reduzir mais poderem usar os créditos de interrupção de desmatamento para cumprir uma meta adicional; e até mesmo uma fração da responsabilidade dos países ricos poder entrar no mercado de carbono através dos créditos de redução de desmatamento. As centrais sindicais têm se posicionado, no Brasil, contra essa possibilidade de utilizar créditos de carbono na área de floresta. Eu acho isso um erro. Um erro de concepção, um erro baseado em ideologia.

O senhor vê um componente ideológico comprometendo o enfrentamento das questões ambientais?

O componente ideológico é o seguinte: “Os países ricos causaram problemas e eles têm de resolver, não vamos dar colher de chá”. Então, se em vez de reduzir as emissões eles pudessem terceirizar um pouco para os países em desenvolvimento, como nós, aí reduziríamos o desmatamento, “vendendo” a eles essa cota, e eles continuariam emitindo. O MDL nada mais é do que isso: um mecanismo de mercado. O lixão da cidade de São Paulo não emite mais metano, a prefeitura calculou quanto de metano deixou de emitir, levou seus certificados de MDL à Europa e os vendeu. As centrais sindicais têm de entender que nós vivemos num sistema econômico globalizado. É preciso admitir isso. Aceitar as externalidades ambientais.

Poucos países do mundo têm tanto pasto. Se trouxer mais eficiência, mais ciência, mais tecnologia para toda a agricultura, o Brasil pode ser o que a gente sempre imaginou: celeiro do mundo. E para isso não precisa desmatar a Amazônia, o Cerrado, o restinho de Mata Atlântica. E tudo isso custa caro.

Emitir é uma externalidade, as gerações futuras vão pagar amanhã um preço que não está embutido no dos produtos hoje. Alguém paga a conta de qualquer externalidade. E isso não entra na economia. Olhando do outro lado da externalidade ambiental, os ecossistemas estão fazendo um tremendo de um serviço para manter nossa qualidade de vida. E nós não computamos esse serviço dos ecossistemas no cálculo econômico. Uma floresta mantém a água limpa, a regularidade do ciclo das águas, a qualidade do solo, e nada disso entra na economia. Eu sou a favor que entre. Na semana passada os movimentos sociais manifestaram-se a favor desses mecanismos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação e disseram: “Mas isso não pode entrar no mercado”. Se a floresta amazônica está lá, segurando carbono e ajudando a manter a estabilidade climática, isso é um serviço de um ecossistema, e teria – esse e todos os outros serviços – de ser quantificado.

Poderia dar algum exemplo concreto disso?

Por exemplo, na cidade de Extrema, divisa de São Paulo com Minas Gerais, a prefeitura estabeleceu um imposto com o qual paga os agricultores que mantêm a Mata Atlântica, o que tem muito a ver com a redução dos deslizamentos de encosta e de inundação e com a qualidade da água no município. Está certo! Mantendo aquela floresta, mesmo estando ela numa propriedade privada, que tem um proprietário, os agricultores fazem jus a essa moeda. Para que todos os habitantes tenham qualidade de água, e de vida, aquela floresta precisa ser mantida, e seus mantenedores merecem ser remunerados.

A atitude desse agricultor tornou-se um produto de valor econômico?

Exatamente. Talvez a CUT tenha sido contrária por imaginar que se houver a venda desse serviço ela vai para mãos erradas – posso imaginar uma preocupação nesse sentido. O que não posso admitir é que não se entenda a importância de trazer para o cálculo econômico os serviços ambientais, pelo lado positivo, e as externalidades ambientais, pelo lado negativo. Porque, como a gente sabe, em países em desenvolvimento os lucros são privados e os prejuízos são socializados. É a pobreza que vive nas áreas de risco de inundação e de deslizamento de encosta. Que morre por falta de qualidade da água, por não se tratar o esgoto. Tudo isso é degradação ambiental, é externalidade econômica que ninguém está pagando – quer dizer, os pobres estão. Se o valor dos ecossistemas fosse contabilizado, o sistema econômico teria de se ajustar com esses dois termos: o lado positivo, alguém tem de receber pelo serviço de preservação; e o lado negativo, quem polui tem de pagar.

Mas como mensurar isso em valores econômicos?

O carbono é um primeiro exemplo de que é possível claramente mensurar. Tem pessoas desejando comprar os créditos de carbono do Brasil – de todas as áreas, reflorestamento, lixões, energia renovável e também redução de desmatamento. E aí, de repente, há um viés ideológico dizendo que “nessas outras áreas tudo bem; redução de desmatamento, não”. Aí fica até uma incoerência, porque as outras áreas se vendem, são uma commodity. Hoje está custando US$ 20 a tonelada. Daqui uns cinco anos será US$ 50. E as propostas que temos defendido é que os demais serviços ambientais também entrem nessa contabilidade. Eu aceitaria um convite da CUT para debater sobre isso.

Explique como isso pode se dar na prática.

Esses mecanismos REDD são o seguinte: o Brasil desmatava em média 20 mil quilômetros quadrados por ano e tem um plano de baixar para menos de 5 mil até 2020; emitia 250 milhões de toneladas e vai passar a emitir 60 milhões, 70 milhões. Então deixaremos de emitir 180 milhões de toneladas. Esse é um serviço ambiental que a redução de desmatamento traz para o mundo. Agora, tem um grupo lá na Holanda que precisa reduzir 50% das emissões de sua atividade e estima que não vai conseguir. Então tem de ir ao mercado de carbono. E o Brasil terá esse “estoque” de 180 milhões de toneladas, do qual poderá comercializar 10%, 18 milhões, e alguém lá da Holanda compra, nos paga por essa redução de emissões. A CUT é contra porque diz que a Holanda tem de cumprir sua obrigação de diminuir. E eu acho isso ideológico, porque é um argumento que não reconhece o funcionamento do mercado. Se os países quiserem doar dinheiro ao Brasil, ótimo, mas creio já termos condição de não ficar dependendo de ações assistencialistas. A CUT não criticou o MDL, que é mercado. Espero que eu esteja enganado… Uma vez o Mario Covas, quando era governador, chegou para o Fábio Feldmann, que era jovem, advogado, ambientalista, e disse: “Fábio, eu gosto muito de você, mas esse negócio de ecologia é coisa de veado…” Espero que a CUT não ache que ecologia é “coisa de veado”. Os comunistas soviéticos achavam o ambientalismo uma frescura do capitalismo. Eu me proponho a debater porque gostaria que não prevalecesse uma visão anacrônica de que a preocupação ambiental é um entrave para o desenvolvimento. Até porque a vida inteira fui de esquerda, e não tem mais esquerda no Brasil, o PT não é mais de esquerda, mas eu continuo de esquerda. Fico um pouco preocupado que a CUT considere a preservação da Amazônia um atraso ao desenvolvimento econômico do país, mesmo que isso ninguém mais fale.

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