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Sóbria decisão

Alcoolismo é doença, pode ser controlado e, muitas vezes, é favorecido pela atividade profissional. Para a empresa, amparar é melhor do que punir. Antes, como o alcoólatra, ela precisa admitir que tem problemas

Paulo Pepe

Geraldo virou atleta e hoje só toma água e isotônico

Geraldo mal abre os olhos pela manhã e com a luz do dia vem uma vontade visceral: bebida! Quando menos espera está com o copo de cachaça na mão trêmula. Sem fome, segue para a fábrica. De vez em quando, corre para o armário onde esconde uma garrafa. Um gole, outro, e volta ao trabalho. Na saída, mais um trago. Por dia, enxuga duas garrafas e, por causa disso, chega a dar o cano quinze dias por mês. Geraldo está com 32 anos e começou a beber aos 18. Na época, arrumou emprego de instalador de cortinas. “No final do serviço, o cliente pagava uma bebidinha.” Logo começou a tomar cerveja todos os dias. Um dia, a situação saiu de controle. Depois de beberem umas e outras, Geraldo e o companheiro de trabalho começaram a trocar socos enquanto o amigo dirigia, por causa da divisão da gorjeta. Saldo: um acidente de trânsito, ferimentos e demissão. O patrão toleraria um acidente de trânsito, mas não um empregado bêbado.

Esta história já está no passado de Geraldo de Souza, hoje com 45 anos e há 13 sem beber. “Antes, eu não tinha identidade. Eu nem me olhava no espelho.” Ele atribui à conquista da abstinência a realização de antigos sonhos. Fez curso de fotografia. Comprou apartamento, onde vive com a mulher e dois filhos – que temeu perder durante a era dos porres. E virou atleta. Daqui a dois meses, vai pedalar 535 quilômetros até Belo Horizonte, sua cidade natal.

Geraldo ainda vive uma luta diária contra o vício. “Quando vejo alguém tomando uma cervejinha me dá vontade, mas eu resisto.” Ele é dependente químico. A Organização Mundial de Saúde considera que o alcoolismo é doença – que não tem cura, mas tem controle. Está em quarto lugar na lista das doenças que mais incapacitam os trabalhadores. Pode ter causa hereditária, psicológica, sociocultural ou todas juntas. Segundo o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), 11,2% dos brasileiros são alcoólatras. No Nordeste, a média chega a 16,9%. Quem começa a beber com menos de 15 anos tem quatro vezes mais chances de se tornar dependente do que quem começa entre os 15 e os 21.

Muito a oferecer

Antônio Ribeiro Santos tomou a primeira pinga aos 10 anos, em casa, com o pai. “Disseram: ‘este é homem pra valer’”, lembra. Antônio é alcoólatra em recuperação há 15 anos. Parou de beber com terapias em grupo e com o apoio dos amigos, e ainda faz parte do programa de ajuda aos dependentes químicos da Ford, onde trabalha há 13 anos. O grupo, de 24 pessoas, reúne-se a cada quinze dias durante duas horas para apoio mútuo e troca de experiências.

“O grupo está mais forte a cada dia. Aqui é uma família”, diz Ana Maria Feliciano, assistente social da companhia, que lembra casos de recuperação, como o de um funcionário que pegou um carro na linha de produção para beber na portaria. “A pessoa em recuperação tem muito a oferecer para a firma. Depositaram confiança em mim e me deram até função com maior responsabilidade”, diz um integrante do grupo, que chegou a ficar internado por um mês e em cujo tratamento a fábrica empregou 7 mil reais.

Programas de prevenção e de recuperação de dependentes químicos dentro das empresas – públicas e privadas – são cada vez mais comuns, ainda que a embriaguez habitual ou em serviço possam levar à demissão por justa causa. Edson Lisboa, superintendente regional do Sesi do Rio Grande do Sul, acompanhou de perto uma experiência de sucesso que tem 11 anos e beneficiou mais de 100 mil trabalhadores. Com orçamento de 30 mil reais, o Sesi faz durante um ano e meio um mapeamento sobre os problemas de uma empresa em relação ao álcool e outras substâncias químicas. Com o levantamento em mãos, são traçadas ações específicas para cada fábrica. A identidade dos dependentes é preservada.

Num universo de 73 firmas atendidas, o consumo de álcool diminuiu, em média, 13%. As faltas, 8%. Os atrasos, 32%. E os acidentes de trabalho, 34%. Para 70% dos alcançados pelo programa, o ponto de partida para enfrentar a dependência foram as empresas, que deixaram de perder 50 milhões de reais com os impactos da doença – de gastos com atendimento a perda de produtividade.

O Sesi do Rio Grande do Sul oferece selo de qualidade às companhias que atuam na prevenção de dependência. A experiência gaúcha foi copiada pelo Sesi em outros 14 estados. Para Maria Irani Macedo, analista de estudo e desenvolvimento do Sesi, as empresas chegaram à conclusão de que reabilitar compensa mais do que passar por todas as etapas negativas que culminarão com a dispensa do dependente. “O funcionário não pode ser responsabilizado porque é doente. E geralmente ele retribui”, diz Maria Irani.

O Sesi vai capacitar neste ano 3 mil trabalhadores. A idéia é habilitá-los a desenvolver funções preventivas em seu local de trabalho e a identificar problemas com álcool e outras drogas. O público-alvo são membros de comissões internas de prevenção de acidentes (Cipas) e das áreas de Recursos Humanos (RH), saúde e segurança do trabalho.

Emerson Pires/smtaubaté/netnewsjefferson
Jefferson não bebe há 15 anos, hoje é consultor de empresas que desejam implantar programas de prevenção e recuperação de dependentes

Ver o fundo

O programa de controle e recuperação de dependência química desenvolvido pela Embraer detectou que o álcool aparece em quarto lugar na lista de drogas mais consumidas e que aproximadamente 13% dos 14 mil funcionários da empresa têm relação problemática com a bebida. “Nos últimos seis anos, houve uma redução de 53% no número de faltas na empresa”, comemora Carmine Sarao, diretor de RH da Embraer. A companhia estende ações de recuperação à participação da família, faz exames toxicológicos e usa bafômetros periodicamente nos funcionários. “Desde 2000, para cada trabalhador identificado no exame toxicológico, outros dois procuraram ajuda voluntariamente”, completa Carmine.

O exame é polêmico. O médico João Carlos Dias, da Associação Brasileira de Psiquiatria, diz que o exame só pode ser realizado se for consentido pelo trabalhador ou por acordo coletivo, e não pode ser usado de forma punitiva. “Tem que fazer parte de um programa de prevenção e dar direito ao contraditório. O exame mostra que o trabalhador usa uma substância química, mas não indica se ele é dependente. Ele pode ser útil em profissões cujo erro pode prejudicar seriamente outras pessoas, como no caso de um piloto de avião”, explica Dias.

Jefferson Luiz da Silva era funcionário da Embraer, trabalhava na administração do aeroporto de São José dos Campos (SP) e várias vezes chegou bêbado ao trabalho. “Eu maltratava as pessoas, assustava. Como conseguia ficar algum tempo sem beber, até um ano, eu achava que não era alcoólatra. Mas bastava começar. Quando eu abria a garrafa tinha que ver o fundo. Saí da casa da minha mãe por causa do descontrole”, descreve. Aos 31 anos, Jefferson procurou ajuda na empresa. “O tratamento é excelente porque o alcoólatra conta com uma estrutura e tem motivação.” Ele não bebe há 15 anos e mudou de atividade: hoje, é consultor de empresas que desejam implantar programas de prevenção e recuperação de dependentes.

Empresa lúcida

Para a médica e professora da Fundação Getúlio Vargas, Edith Seligmann, ajudar funcionários em vez de punir é, além de inteligente por parte da empresa, uma questão de justiça, já que algumas atividades favorecem o alcoolismo. Quem exerce um trabalho muito perigoso, por exemplo, pode passar a beber compulsivamente para “anestesiar”. O agente penitenciário Luiz da Silva Filho, diretor de saúde do sindicato da categoria em São Paulo, reitera a explicação da professora. “Em geral, após seis meses de trabalho como agente penitenciário a pessoa começa a ter problemas com drogas; é estressante demais suportar tanta pressão. Temos muitos problemas com agentes alcoólatras.”

As profissões monótonas também podem gerar problemas com álcool, pois a bebida passa a ser usada como recurso compensatório que gera euforia e prazer. Atividades que causam afastamento prolongado do lar também podem ajudar no desenvolvimento de dependência. O Itamaraty mantém um programa dirigido a diplomatas que abusam do álcool. Médicos são também grandes vítimas da doença. A proximidade constante da morte e a exigência de autocontrole convidam para um drinque.

“Os programas de prevenção que podem efetivamente apresentar resultados são aqueles que primeiro vão estudar, com participação de especialistas e dos próprios funcionários, as condições do ambiente de trabalho e as relações que ele proporciona”, alerta a professora Edith. “A partir daí, identifica-se como surge o risco. O segundo passo é desenvolver as transformações dos aspectos nocivos do trabalho.” Para isso, a empresa também precisa empreender um esforço semelhante ao do dependente: admitir que tem problemas.

antonio

“Levei um choque e decidi me tratar”

Antônio Ribeiro Santos tem 52 anos e, hoje, considera-se um vencedor. “Eu gosto de viver intensamente…” Chefe do serviço do departamento de trânsito da prefeitura de Diadema (SP), Antônio conseguiu comprar uma casa para viver com os pais. Foi uma conquista para quem chegou a morar em um porão e até mesmo a dormir no local de trabalho após se separar da mulher. Antônio bebia quando acordava. Bebia no almoço. Antes de chegar em casa. Antes de dormir… Perdeu o controle e três empregos. “Fiquei displicente, chegava ao trabalho com ressaca… Em um deles eu analisava projetos, mandava executar e dava problema porque eu não tinha raciocinado direito. Depois que me separei, fui chamado na escola do meu filho porque ele estava com problemas. Perguntei para a psicóloga qual era o problema dele e ela disse que era eu. Levei um choque e decidi me tratar. Estou sem beber há 15 anos.

No começo foi muito difícil; hoje me acho importante. Vou em festa e me policio diariamente. Parei de beber com ajuda de terapia e não precisei tomar medicamento.” Antônio pode não ter decifrado os motivos da dependência, mas o conforto dos amigos e o sorriso dos filhos foram bons motivos para se livrar dela.

Teste do bafômetro

Esta tabela foi elaborada com base em critérios propostos pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A pessoa passa a ser dependente caso apresente, no mínimo, três dos critérios apresentados

Sintomas da Síndrome de Dependência do Álcool e Explicação

Estreitamento do repertório de beber – No início, a pessoa bebe alguns dias, em outros não. Com o aumento da dependência, começa a beber todos os dias, principalmente à noite. Depois, passa a ingerir bebidas no almoço até chegar a beber ao acordar. No auge, bebe de hora em hora.

Priorização do comportamento da busca do álcool – A pessoa passa a beber até nas situações socialmente inaceitáveis (no trabalho, no carro etc).

Aumento da tolerância ao álcool – O dependente passa a beber mais para ter o mesmo efeito e consegue fazer tarefas com altas concentrações de álcool no sangue.

Sintomas repetidos de abstinência – No começo, os sintomas são leves e incapacitam pouco. A intensidade deles aumenta com o tempo. Exemplos: tremores, náusea, cãibras, inquietação, depressão e pesadelos.

Consumo de álcool para aliviar ou evitar os sintomas de abstinência – Nas fases mais severas, o dependente bebe pela manhã para sentir-se melhor. Mas este sintoma também está presente nas fases iniciais: a pessoa pode sentir a ansiedade diminuir após beber, sem atribuir isso à abstinência.

Profissões de alto risco

Edith Seligmann Silva, professora da Fundação Getúlio Vargas, médica e especialista em psiquiatria e saúde pública, aponta as profissões nas quais há maior ocorrência de alcoolismo:

1) Atividades socialmente desprestigiadas por envolverem atos ou materiais considerados desagradáveis ou repugnantes;

2) Situações em que a tensão gerada é constante e elevada, especialmente quando não ocorrem apoio social ou reconhecimento:

Trabalho perigoso;

Trabalho mental intensivo sob altas exigências de desempenho e rapidez;

Trabalho que exige auto-controle emocional intenso e constante (exemplos: funcionários públicos que atendem o público, bancários, vendedores etc.);

Trabalho monótono, que gera tédio e insatisfação;

Trabalho em situação de isolamento (como vigias, maquinistas de trem etc.);

Atividades que envolvem afastamento prolongado do lar (mineração, viajantes comerciais).