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Sob a bênção dos orixás

Com a alegria do descobridor, ele alivia o estresse das estradas, faz delas sua grande fonte de conhecimento. Assim, Sapopemba, caminhoneiro e cantor, virou um dos maiores pesquisadores do folclore do país

Roberto Parizotti

Para o pianista e produtor musical Benjamin Taubkin, ele é a versão masculina de Clementina de Jesus. De fato, há semelhanças entre a trajetória do alagoano José Silva dos Santos, o Sapopemba, e a da lendária cantora fluminense. Ambos foram descobertos tarde demais. Ela, empregada doméstica, aos 63 anos, e ele, motorista, aos 45 (hoje está com 61). Talvez a comparação seja exagerada, até porque Sapopemba ainda precisa ser realmente descoberto. Desde 1991, ele é o cantor de frente do principal balé folclórico de São Paulo, o Abaçaí, uma honraria, certamente, mas que em um país como o Brasil o obriga a ter mais dois empregos.

Para ganhar a vida, Sapopemba trabalha duro. Mal tem tempo para cantar. Durante a semana bate ponto como motorista na Prefeitura de Santo André, no ABC paulista. Nos fins de semana transporta carga país afora. E não se queixa. Graças à rotina de caminhoneiro, tornou-se um profundo conhecedor do folclore brasileiro. Segundo o músico e produtor Guga Stroeter, Sapopemba é um dos maiores: “Ele conhece 70% do território do país e a cada ano descobre um tipo de manifestação cultural diferente”, diz.

Sapopemba lembra que outro dia estava viajando de caminhão para o Pará e quando menos esperava se viu diante de uma Marujada de Bragança, manifestação folclórica da região, dividida em várias danças. “Fiquei completamente alucinado. Nunca tinha visto algo tão bonito”, conta, e não teve dúvida: pegou um tambor e foi participar da festa. “Fiquei mais feliz que um lorde, satisfeito como um preá”, brinca.

A alegria do “pesquisador” se divide com o estresse do caminhoneiro. “Além de encarar os buracos nas estradas, é preciso fugir da bandidagem, e de alguns policiais que também querem te roubar”, diz Sapopemba, que, recentemente, escapou de “virar presunto” em Goiás. “Roubaram a minha carga e queriam me matar. E lá eles matam mesmo, sem a menor cerimônia.” Sapopemba evocou os orixás e saiu da encrenca vivo, sem nenhum arranhão.

José Silva dos Santos virou Sapopemba na adolescência, aos 14 anos, quando sua família deixou Penedo (Alagoas) e fixou-se no popular bairro da zona leste de São Paulo. O menino gostou do apelido: “Descobri que sapopemba é uma árvore de raízes fortes”. Dividido desde a infância entre a devoção da mãe pela igreja católica e a paixão do pai pela cultura africana, José Silva acabou seguindo os passos do pai, um gajeiro de chegança, dança que mistura a tradição das mouriscadas portuguesas com cantos africanos.

Ainda menino, em Penedo, Sapopemba passou a freqüentar o terreiro de Pedro Tamanquinho, onde descobriu todo um universo musical, até então desconhecido. “Sempre houve, e ainda há, muito preconceito em relação a qualquer manifestação cultural africana. Eu não queria saber se aquilo era coisa do demônio, ou bobagens do tipo – o que me interessou, de imediato, foi a riqueza musical dos rituais. Eu somei essa vivência nos terreiros com a influência da chegança e comecei a cantar”, lembra o músico que, liberto da pressão católica da mãe, só foi mergulhar de cabeça na cultura africana quando chegou a São Paulo.

Antes de tornar-se motorista profissional, Sapopemba fez de tudo: foi office-boy, pintor, soldador e cantor nas horas vagas. “Se não consegui ganhar dinheiro gravando discos, tendo um grupo, imagine cantando entre amigos. Tinha absoluta certeza, pé no chão, que viver de música no Brasil, ainda mais cantando música folclórica, é algo impossível”, confessa. “Poderia cantar forró, montar um grupo no estilo Calypso, ganhar dinheiro, mas não seria feliz.”

Assim como Clementina de Jesus, descoberta por acaso por Hermínio Bello de Carvalho, Sapopemba não esperava que fosse chamar a atenção de Guga Stroeter, então companheiro de banda do percussionista Ari Colares no grupo Heartbreakers. Guga pediu a Ari, fundador do Abaçaí, que ouvisse melhor um cantor negro, de voz belíssima, que sabia tudo sobre cantos e dialetos africanos, mas nunca havia cantado profissionalmente, muito menos entrado em estúdio. “E foi meio sem querer que eu me tornei aos poucos o principal cantor do balé folclórico de São Paulo”, conta.

A partir daí, Sapopemba recebeu convites para participar de vários projetos. Colaborou para a trilha sonora do espetáculo Milágrimas, de Ivaldo Bertazzo, dividiu o palco com o rapper BNegão, seu fã confesso, e foi uma das estrelas do CD Ago: Cantos Sagrados do Brasil e Cuba, lançado pelo selo Núcleo Contemporâneo, em 2003, hoje fora de catálogo. O disco, que não chegou a fazer sucesso por aqui, rende até hoje convites para turnês na Europa. “Os europeus ficam malucos com essa miscelânea, não entendem como os músicos brasileiros podem copiar ritmos estrangeiros se no próprio país há uma infinidade de gêneros musicais praticamente inexplorados”, afirma o cantor.

Em 2005, durante o Ano do Brasil na França, três brasileiros fizeram um lendário show no charmoso e aristocrático teatro Ópera Nacional de Paris. Sapopemba fazia parte do trio. Os outros dois eram Seu Jorge e Elza Soares. “De improviso, sem o menor planejamento, armamos o maior banzé no teatro. O Luis XV deve ter se revirado umas 500 vezes dentro do sarcófago”, brinca o cantor. “É, os franceses ficaram meio assustados, mas no fim adoraram.”

O próximo desafio de Sapopemba é transformar em CD um antigo projeto: “Baião de Orquestra – Sapopemba canta Gonzagão”, clássicos de Luiz Gonzaga revestidos com arranjos eruditos. Benjamin Taubkin já topou colaborar. Quem sabe ele também grave um outro tributo, este em homenagem a Clementina de Jesus. O difícil é conseguir gravadora, tarefa que o caminhoneiro José Silva dos Santos garante tirar de letra. “Sou um batalhador, não desanimo, não. Sou um sexagenário, é verdade, mas o meu HD ainda funciona direitinho.”