mundo

Revolução cidadã à prova

Favorito à reeleição, Rafael Correa tem o desafio de promover o crescimento sem violar os avanços históricos da nova Constituição do Equador, que ele mesmo ajudou a escrever

Fábio Rodrigues Pozzebom/abr

Sete candidatos disputam com o presidente do Equador, Rafael Correa, seu lugar no Palácio de Carondelet, em Quito. Graças à Constituição promulgada em setembro passado, o atual presidente pode concorrer à reeleição. É a primeira vez, em 30 anos de retorno à democracia, que um chefe de Estado se recandidata. Entre 1996 e 2005, o país teve oito governos, numa sucessão de golpes cívicos e militares. A instabilidade só foi freada pela chamada Revolução Cidadã, posta em marcha pelas forças aliadas em torno da liderança de Correa e por uma nova Carta.

O pequeno país andino nunca havia experimentado o financiamento público das campanhas eleitorais. Cada candidatura conta com até US$ 650 mil para gastar com publicidade, mas o Conselho Nacional Eleitoral – considerado o quarto poder da República – os impede de adicionar um centavo que seja aos gastos com propaganda. Para outras despesas, podem ser investidos 
US$ 900 mil. Também é novidade a ausência dos partidos políticos tradicionais na contenda. Siglas como Esquerda Democrática, Partido Socialista e Movimento Popular Democrático se abstiveram de lançar candidatos próprios. No entanto, dois postulantes bastante conhecidos do eleitorado ressurgiram: Lucio Gutiérrez e Gustavo Noboa.

Líder do Partido Sociedade Patriótica, Gutiérrez exerceu a Presidência duas vezes. Em 2000, depois de um golpe de Estado contra Jamil Mahuad, integrou um triunvirato, ao lado de uma liderança indígena e de um juiz aposentado. A junta durou apenas uma noite e o vice-presidente assumiu o poder. Gutiérrez tentou de novo em 2002. Dessa vez venceu nas urnas depois de costurar aliança com movimentos sociais, sobretudo com a importante Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie). Sua gestão, no entanto – marcada pela aproximação comercial com os Estados Unidos e pela escalada da corrupção –, frustrou compromissos de campanha.

Em abril de 2005, fugiu em helicóptero pela lavanderia da residência oficial quando uma intensa mobilização popular tomou o centro de Quito. Agora, Gutiérrez tenta uma vez mais, prometendo melhores relações com os Estados Unidos e a Colômbia, estabilidade jurídica e estímulo aos investimentos estrangeiros para gerar produção e emprego. Apesar de adotar bandeiras em desuso para o eleitorado sul-americano, alega ter aprendido com os erros do passado.

Álvaro Noboa tenta pela quarta vez. Em todas as anteriores, inclusive em 2006, quando perdeu para Rafael Correa, o milionário empresário das bananas disputou o segundo turno. Para chegar com mais força ao pleito de 26 de abril, ele e Gutiérrez tentaram, em vão, negociar uma aliança. Noboa, do Partido Renovador Institucional de Ação Nacional, define-se como político ao mesmo tempo de esquerda (“no que se refere a trabalho e educação”) e de direita (“para gerar produção e mercado”). O maior representante das tradicionais oligarquias equatorianas comprova, assim, que a ciência política não é seu forte.

Correa favorito

Pesquisa de opinião realizada pelo instituto equatoriano Cedatos-Gallup em meados de março apontava Rafael Correa com 46% das intenções de voto, Noboa em segundo, com 14%, e Gutiérrez em terceiro, com 11%. É a vantagem mais “apertada”. Em outros levantamentos, a dianteira chega a 56%. “O povo se deu conta das ameaças oferecidas pelo neoliberalismo, porque estava saturado da corrupção descomunal que existia no país e porque percebia claramente haver um despojo dos recursos gerados a partir da exploração do petróleo”, analisa Jaime Breilh, pesquisador da Universidade Andina Simon Bolívar.

Os investimentos de peso em programas sociais, na saúde, na educação, a concessão de um bônus de desenvolvimento humano de US$ 30 para famílias pobres e a política de subsídios à moradia e aos combustíveis também colaboram para o favoritismo de Correa. “O presidente interrompeu políticas privatizantes e investiu recursos para recuperar a infraestrutura pública, que se encontrava destroçada. Restabeleceu a gratuidade nos serviços de saúde, renovou equipamentos e instalações hospitalares, contratou médicos e aumentou o salário de professores”,  enumera Breilh.

O sociólogo Francisco Hidalgo, da Universidade Central do Equador, vê na gestão de Rafael Correa uma modernização do Estado, mas com reservas: “Correa sintetizou um longo processo de luta popular de caráter antioligárquica e antineoliberal, mas nunca teve um programa de esquerda radical”, pondera.

A moderação de Correa se reflete no conflito entre algumas de suas medidas e os princípios da Constituição impulsionada por seu governo. Com habilidade política, o presidente conseguiu anunciar a revisão da dívida externa e seguir pagando; exaltar a soberania nacional, expulsar o chefe da CIA no Equador e atrair investimento estrangeiro; apostar na integração sul-americana e negociar tratado de livre-comércio com a União Europeia; manter intocado o petróleo das reservas amazônicas de Ishpingo-Tambococha-Tiputini, em troca de créditos de carbono, de um lado, e do estímulo à mineração em grande escala, de outro.

A Lei de Mineração é o maior exemplo dos limites da Revolução Cidadã diante da intensidade das mudanças no Equador. “Correa sabe que um processo de desenvolvimento que respeite a natureza e renuncie à exploração do petróleo e da mineração carrega impactos políticos que podem pôr em risco sua estabilidade”, observa Hidalgo.

Num cenário que engloba a crise internacional, a queda no preço do petróleo e em sua produção, elevados gastos com as políticas sociais (US$ 7 bilhões por ano) e a descoberta de promissoras reservas minerais (avaliadas em mais de US$ 200 bilhões), lideranças populares e ambientalistas reclamam que o governo optou por suplantar “direitos da natureza”, princípios do bom-viver e de autodeterminação dos povos indígenas e afrodescendentes, em troca das divisas que virão da exploração em escala industrial dos veios de ouro e cobre por parte de empresas transnacionais.

O presidente teria adotado um discurso pragmático: “Destruir a selva pode ser imoral, mas ainda mais imoral é renunciar aos recursos que podem tirar o país do subdesenvolvimento, que podem eliminar a miséria e a pobreza de nossa pátria”. Para os ambientalistas, pragmático demais. “Há propostas em parceria com transnacionais que querem trabalhar nos territórios sem respeitar as populações assentadas. Não estamos de acordo, porque sabemos que o apoio à atividade de grandes empresas sempre cria dois grupos: um de privilegiados e outro de excluídos”, rebate Miguel Guatemal, vice-presidente da Conaie.

O cenário equatoriano é mais um microcosmo do desafio global do século 21: promover o desenvolvimento sustentável. A nova Constituição estabelece que a natureza, ou “Pacha Mama”, onde se reproduz e se realiza a vida, tem o direito de ser respeitada integralmente em sua existência, preservação e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos. A preocupação socioambiental, mais que bandeira política, será um preceito constitucional a ser seguido.