economia

Renda, motor do país

A desconcentração de renda melhora a vida das pessoas mais pobres e faz bem ao desempenho da economia do país

paulo pepe

A empregada doméstica Sueli viu materializar-se, neste ano, o sonho da casa própria. O zelador Reginaldo trocou de carro há dois anos. Anaílton, faxineiro, conseguiu comprar o seu primeiro automóvel e terminar a sua casa própria no ano passado. A babá Lúcia, por sua vez, comemora o cardápio mais diversificado e a mesa mais farta. O que há de comum na vida destas quatro pessoas, que realizaram seus sonhos, alguns típicos da classe média? Os quatro realizam funções que lhes garantem no máximo quatro salários mínimos por mês. E experimentam, na pele, um fenômeno de desconcentração da renda no país, com uma transferência efetiva dos recursos para as camadas menos favorecidas da população brasileira.

Esse movimento é conseqüência de uma combinação de programas sociais que têm se mostrado eficientes com uma política econômica que tem garantido o crescimento do país. E desafia a antiga tese de que é preciso esperar o bolo crescer para depois dividi-lo com os mais pobres. Muitos brasileiros passaram décadas na espera, em vão, pela sua fatia do bolo. Outra máxima dos economistas vem caindo por terra: a de que o aumento da renda do trabalhador anularia os esforços do combate à inflação.

A melhoria do poder de compra das camadas de baixa renda do país é a feição humana das estatísticas alcançadas em questões que afetam diretamente o bolso de pessoas como os quatro personagens que abrem esta reportagem, quanto em áreas que estão muito distantes do cotidiano delas. O aumento do salário mínimo, por exemplo, dos 200 reais que valia no início de 2003 para os atuais 350 reais, afetou diretamente a vida de mais de 40 milhões de brasileiros que têm seu rendimento vinculado ao piso nacional. A expansão de programas como o Bolsa Família proporciona renda a camadas ainda mais pobres da população. A desoneração dos alimentos da cesta básica foi outro fator que resultou em ganhos positivos na quantidade e na diversidade de calorias nas mesas das classes menos abonadas.

No campo da política econômica, o governo conseguiu quitar os compromissos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e elevar o nível das reservas em dólar do Brasil – que chegou a 64 bilhões de dólares em julho, superando a dívida externa da União, de 63,28 bilhões. Também vem conseguindo assegurar um nível constante de crescimento do PIB, ao mesmo passo em que mantém a inflação em queda. Mas o que isso tem a ver com o dia-a-dia de empregadas domésticas, zeladores, faxineiros e babás?

Onze anos em dois

A relativa prosperidade que é experimentada pelas camadas de renda mais baixa foi identificada por um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2004. A pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que a quantidade de pessoas que viviam abaixo da linha da miséria diminuiu dos 36,57% da população registrados em 1993 para 25,08% em 2004. A linha da miséria era delimitada por uma renda máxima de 115 reais por mês, valor equivalente, no ano da pesquisa, ao custo de uma cesta de alimentos que garante o consumo diário de 2.288 calorias recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Conforme a Pnad, essa tendência tem sido mais acentuada nos últimos três anos. O porcentual de pessoas abaixo da linha da miséria subiu de 26,52% em 2002 para 27,26% em 2003, ano de ajustes e com um quadro recessivo. O crescimento retomado em 2004 bastou para baixar a taxa da população abaixo da linha da miséria para 25,08% – menos que em 2002.

O índice Gini, que mede o grau de desigualdade na distribuição de indivíduos segundo a renda domiciliar per capita, também exibiu sinais evidentes de melhoria. O indicador varia de 0, quando não há desigualdade, a 1, quando a desigualdade é total. Segundo o estudo da FGV, houve uma queda do índice Gini no Brasil de 2,05%, para o patamar de 0,573, entre 2003 e 2004. O estudo aponta ainda que a renda domiciliar per capita apresentou, entre 2003 e 2004, elevação de 2,85%.

Outros números compilados pela FGV com base na Pnad comprovam de forma mais direta o processo de desconcentração de renda em curso no Brasil. A camada da população constituída por 50% das pessoas mais pobres detinha, em 1991, 11,5% da renda nacional, enquanto que os 10% mais ricos possuíam 48% da riqueza do país. Em 2004, os 50% mais pobres haviam ampliado a sua participação para 14,1%, ao mesmo tempo em que os 10% mais ricos viram diminuir sua cota de 48% para 44,7%. Nesse período, a participação na renda nacional dos 40% intermediários cresceu de 40,5% para 41,2%.

Esse processo de transferência de renda apresentou uma visível aceleração nos dois últimos anos abrangidos pelo trabalho na comparação com os 11 anos anteriores. Entre 1991 e 2002, os 10% mais ricos viram sua participação na renda cair de 48% para 46,4% – menos 1,6 ponto percentual. No mesmo período, a fatia dos 50% mais pobres aumentou de 11,5% para 13,2% – mais 1,7 ponto percentual. Entre 2003 e 2004, a dos 10% mais ricos caiu de 46,4% para 44,7% – menos 1,7 ponto percentual. Ao mesmo tempo, a participação dos 50% mais pobres subiu de 13,2% para 14,1% – mais 0,9 ponto percentual.

Estatística no prato

A melhoria da renda tem se refletido no aumento e na diversificação do cardápio dos mais pobres. Contribuiu diretamente para isso a desoneração – redução dos impostos incidentes – dos alimentos da cesta básica, aliada a um crescimento real do salário mínimo. Um mínimo, que comprava 1,2 cesta básica em 2000, permite agora a aquisição de 1,7, pelos cálculos de Ademir Figueiredo, coordenador de Desenvolvimento e Estudos do Dieese. “Hoje está mais fácil comprar carne de vaca, por exemplo”, diz o faxineiro Anaílton Pedreira dos Santos, que sustenta a mulher e o filho com dois salários mínimos mensais.

Para a babá Lúcia Inocêncio, além de manter cheios os pratos dos dois filhos adolescentes que moram com ela em Diadema, tem sido possível comprar biscoitos e doces, “agradinhos” para o neto que vive com ela.

A desconcentração de renda está permitindo também ampliar o patrimônio das famílias mais pobres e realizar sonhos vistos até então como distantes. Para a empregada doméstica Sueli Maria Silva, que ganha dois salários mínimos por mês, a melhoria das condições de vida permitiu passar a morar em seu próprio imóvel, que foi construído durante o ano passado por seu marido e amigos. “Conseguimos comprar aos poucos o material de construção”, disse. “Estamos fazendo agora os acabamentos necessários.”
Depois de percorrer, por meses, o caminho entre sua casa e o edifício em que trabalha em cima de uma bicicleta, o faxineiro Anaílton agora está motorizado. Ele conseguiu fazer uma pequena poupança que permitiu a compra de um carro usado no ano passado.

O zelador Reginaldo Jesus da Silva, chefe de Anaílton, também está comemorando a troca recente de um Gol ano 92 por um 97. “As coisas melhoraram bastante de três anos para cá”, diz. A promoção de porteiro a zelador no prédio em que trabalha permitiu que sua família mudasse para um apartamento no local.

jailton Garciaanailton
Anaílton comprou carro, terminou a casa e encomendou mais um filho

Se não crescer, retrocede

“As pesquisas realizadas pelo Ministério do Trabalho revelam que as pessoas de camadas mais simples da população estão consumindo itens que só faziam parte das listas de compras da classe média”, disse Paula Montagner, coordenadora do Observatório do Mercado de Trabalho do ministério. Entre esses itens estão xampus, condicionadores de cabelos, biscoitos e bolachas.

Vários fatores influíram para as melhorias registradas nos índices relacionados com a qualidade de vida das pessoas mais pobres, na opinião da economista: aumento do nível de emprego, estabilidade econômica, controle e queda da inflação. “A estabilidade econômica contribuiu decisivamente nessa trajetória”, diz. “É preciso lembrar que a inflação foi o principal fator de deterioração da renda nos anos anteriores, em um processo em que os mais pobres eram as maiores vítimas.”

Para o economista Cláudio Salvadori Dedecca, pesquisador e professor do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit) da Unicamp-SP, os fatores relacionados com o mercado de trabalho – como a redução do desemprego e o crescimento do emprego formal – contribuíram para a elevação da renda das camadas mais pobres da população. “O impacto do aumento real do salário mínimo foi muito maior nas camadas menos favorecidas da população”, disse uma analista de um dos maiores bancos privados do país, lembrando que normalmente os postos de trabalho com carteira assinada ocupados por membros das camadas mais pobres da população são indexados.

Segundo a Pnad 2004, dos cerca de 40 milhões de brasileiros que vivem atrelados ao salário mínimo, 11 milhões são trabalhadores com carteira, outros 8 milhões trabalham por conta, 5 milhões são empregados domésticos e 16 milhões beneficiários do INSS.

Fábio Silveira, da RC Consultores, acrescenta que o “processo de recuperação econômica beneficiou também a mão-de-obra não-qualificada”. Pessoas que estavam desempregadas ou atuando na informalidade conseguiram conquistar postos registrados.

O professor Cláudio Dedecca alerta, porém, que o ideal seria que todos os estratos da sociedade contassem com um crescimento da renda, e não que houvesse a perda de um segmento para ganho de outro. Por isso, é preciso que o país apresente taxas de crescimento superiores às que vêm sendo observadas. “Se continuar no ritmo atual, a política adotada para o salário mínimo, por exemplo, encontrará restrições crescentes no futuro”, adverte.