África

Refúgio no caos

Mesmo com crise e desemprego de 20%, a África do Sul liberou a entrada de imigrantes devido à situação calamitosa do Zimbábue. Sem trabalho, dinheiro ou comida, refugiados ainda acham que a vida ali está melhor

médicos sem fronteiras/Divulgação

Superlotação: no prédio da Igreja Metodista, em Johanesburgo, os refugiados dormem até nas escadas. E há fila do lado de fora em busca de uma vaga

“Bem-vindos ao Zimbábue”, disse o enfermeiro Tragedy Matsvaire ao entrar na Igreja Metodista, no centro de Johanesburgo, África do Sul. No prédio de cinco andares, há poucos pontos de luz, vidros e portas quebrados, mau cheiro e sujeira. Alguns imigrantes se deitam nos corredores e nas escadas, sem se importar com o vaivém e com a superlotação. Numa cozinha improvisada, mais de cem refugiados se espremem no chão, dividindo espaço com suas malas. As panelas com comida também ficam no chão, e as pessoas vão até elas aos poucos – não por falta de fome ou excesso de educação, mas porque não há espaço para todas se movimentarem ao mesmo tempo. A situação é desumana. E todos estão lá por opção. “É impressionante ver tanta gente vivendo nessas condições, mas elas me dizem que aqui é melhor que no Zimbábue”, explica Sedi Mbelani, psicóloga que atende crianças que moram na igreja.

O ambiente é hostil aos visitantes. Em meio ao caos que já dura mais de um ano, os imigrantes tentam se organizar. Toda sexta-feira representantes se reúnem em um salão para discutir seus problemas. Há espaços destinados aos casais, outros para jovens e crianças, um indício de que essa já não é uma situação transitória. São quase 3 mil zimbabuanos instalados permanentemente e outros 2 mil dormindo nas calçadas, à espera de um lugar ali dentro. Todos refugiados de uma catástrofe que devastou um dos países mais promissores da África até a década de 1990.

Há 29 anos no poder, o ditador Robert Mugabe arruinou o Zimbábue com megalomania, repressão e ações autoritárias. O ápice da crise ocorreu a partir de 2000, quando Mugabe promoveu uma reforma agrária forçada, tirando terras dos brancos, maiores produtores do país, e destruindo a produção agropecuária. A nação mergulhou num colapso ainda sem fim. Calcula-se que mais de 90% da população não tem emprego e quase 70% vive abaixo da linha da pobreza. Quando a moeda oficial foi suspensa, em abril, com uma hiperinflação superior a 230.000.000% ao ano, circulavam notas de até US$ 500 trilhões (dólares zimbabuanos) – tão imprestáveis que vinham com data de validade. As pessoas precisavam carregar centenas delas para uma simples compra na padaria.

Enquanto isso, em fevereiro, Mugabe gastou US$ 250 mil (americanos) para organizar sua festa de 85 anos, com direito a 5 mil garrafas de uísque, 2 mil de champanhe francês, 8 mil caixas de chocolate Ferrero Rocher, 8 mil lagostas e 100 quilos de camarão. “Lembro como meu país era maravilhoso há alguns anos. Tínhamos comida, casa, trabalho, não faltava nada. De repente tudo acabou. Não há mais nada, nem esperança”, lamenta a zimbabuana Nosuthu Silongwe, que se mudou com os três filhos pequenos para Johanesburgo.

médicos sem fronteiras/DivulgaçãoNosuthu
Nosuthu e seus filhos: “Lembro como meu país era maravilhoso”

Olhe para mim

Diante da tragédia no vizinho, a África do Sul, maior economia do continente, aboliu este ano a necessidade de visto para zimbabuanos. Eles agora têm direito de entrar e permanecer no país por até seis meses. Na prática, no entanto, é impossível monitorar a situação de cada imigrante, com tamanho afluxo. Além disso, a simples permissão não resolve o problema.

“A África do Sul sinalizou que os refugiados são bem-vindos, e isso é positivo. Mas as pessoas continuam sem atendimento médico, segurança ou lugar para morar. O país não tem como dar conta de tudo sozinho, por isso apelamos para que a ONU e a comunidade internacional interfiram”, pede Eric Goemaere, coordenador da Organização Médicos Sem Fronteiras na África do Sul.

Estima-se que 3 milhões de pessoas – um quarto da população do Zimbábue – tenham atravessado a fronteira com a África do Sul. A principal porta de entrada é a cidade de Musina, no norte do país. No ano passado, o fluxo se intensificou, desagradando a muitos sul-africanos, que acusam os imigrantes pelos altos índices de violência e pobreza, pelo desemprego de 23% e pela disseminação de doenças como a aids.

A insatisfação de radicais sul-africanos transformou-se em violência. No ano passado, em maio, uma onda de ataques xenofóbicos em várias cidades do país deixou 62 estrangeiros mortos e outros 13 mil desabrigados. De lá para cá a igreja passou a receber ainda mais gente, em busca também de segurança. Como não há espaço para todos, muitos dormem nas calçadas, o que causa superlotação no quarteirão.

No início de julho, a polícia prendeu, numa só noite, 344 pessoas instaladas nas ruas, incluindo crianças. Por isso, quem já conseguiu espaço dentro da igreja não pretende sair de lá, mesmo sem ter condições mínimas de moradia. Muitas pessoas dizem que os ataques, organizados e com conivência policial, pararam por pressão da Fifa, mas acreditam que devem voltar depois da Copa do Mundo de 2010.

“Infelizmente não há privacidade, temos de dormir ao lado dos homens, sem ninguém para vigiar. Até vou à escola, mas não consigo estudar, porque faltam luz e espaço”, lamenta Tendai Tatirenijika, de 19 anos. Durante a entrevista, a jovem usava uma camisa onde se lia, em inglês, a frase “Olhe para mim”. A estampa soava mais como apelo do que simplesmente como moda.

médicos sem fronteiras/DivulgaçãoMusina
Assentamento na cidade de Musina

A situação deprimente em que Tendai e outros milhares de compatriotas vivem chamou a atenção do enfermeiro zimbabuano Tragedy Matsvaire, que abriu as portas da Igreja Metodista para a Revista do Brasil. Em 2007, Tragedy esteve na África do Sul e conheceu a situação dos imigrantes. Voltou ao Zimbábue para buscar a mulher e os três filhos e se candidatou a uma vaga no posto de saúde que presta serviço aos imigrantes no local. “Minha decisão não teve nada a ver com uma questão profissional. Vim para ajudar. Para mim não era uma escolha, era uma obrigação. Tenho muito orgulho do meu trabalho aqui”, explica Tragedy. Mas o trabalho, como ele próprio reconhece, é apenas paliativo. Sem higiene e alimentação adequadas, os pacientes voltam ao consultório sempre com os mesmos problemas.

Ao deixar a igreja, às 18h30 de uma sexta-feira, a reportagem foi assaltada. Os ladrões, nervosos, não viram a mochila nem o aparelho GPS dentro do carro. Só levaram um telefone celular. Não foi possível saber se eram imigrantes ou criminosos locais, se eram zimbabuanos ou sul-africanos. Mas eram, certamente, vítimas de uma mesma tragédia, da mesma falta de espaço, de emprego e de moradia para tanta gente, produtos do caos simbolizado por aquele prédio. 

Cooperação em bom português

O idioma, a técnica e a identidade cultural fazem dos médicos brasileiros personagens importantes da reconstrução de Angola 
Por Elisângela Cordeiro

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Colonização portuguesa centenária, plantações de café, negros, escravos, independência, diversidade cultural, tambores e berimbaus, entre o samba e o semba, Silvas e Santos. As semelhanças e a identidade histórica e cultural entre Brasil e Angola vão muito além do idioma. E têm encurtado o caminho de grande parte daqueles que atravessam o Atlântico em direção ao país africano, onde a medicina é uma das atividades mais desenvolvidas por brasileiros. Depois de uma década e meia de guerra pela independência (declarada em 1975) e outras três décadas de guerra civil (encerrada em 2002), Angola se vê ao mesmo tempo em processo de reconstrução e de busca do desenvolvimento econômico. 

“O longo período de guerra fez com que muitos deixassem o país, que sofre com a carência de profissionais. Os médicos angolanos que permaneceram não puderam desenvolver adequadamente suas habilidades específicas, sobretudo em procedimentos de alta complexidade”, explica Fábio Luiz Vieira, médico brasileiro que viveu na capital Luanda por mais de dois anos, atuando como coordenador do Programa de Melhoria da Capacidade de Resposta dos Hospitais Nacionais. “Os profissionais que conseguiram se especializar estudaram em outros países. Quando voltam, enfrentam dificuldades em razão da falta de equipamentos adequados.” 

O governo local procura ampliar sua autonomia para resolver os problemas de saúde sem precisar mais encaminhar cidadãos doentes para outros países. Um departamento, a Junta Médica de Angola, foi criado para decidir quais casos devem ser tratados no exterior. As despesas com traslado aumentam ainda mais os gastos com saúde. “A solução foi investir em treinamento e incorporação tecnológica: formar o médico em Angola e criar condições para que atue com equipamentos e materiais adequados”, diz Vieira.

Estima-se que o país tenha 2 mil médicos para mais de 16 milhões de habitantes, ou seja, um médico para cada 8 mil habitantes – a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda um para cada mil. Como 1.500 desses profissionais, parte deles vinda de Cuba e do Leste Europeu, estão em Luanda, onde vivem 3 milhões de pessoas, a situação fora da capital é ainda mais dramática.

O projeto de Melhoria da Capacidade de Resposta dos Hospitais Nacionais teve início em 2007 e já capacitou profissionais nas especialidades de ortopedia, cirurgia do aparelho digestivo, otorrinolaringologia, ginecologia, urologia e oncologia. A parceria organizada pelo Ministério da Saúde de Angola envolve universidades e hospitais brasileiros.

José Eduardo Monteiro da Cunha, professor da Universidade de São Paulo, foi o responsável, em Angola, pela primeira cirurgia do aparelho digestivo por meio da técnica de videolaparoscopia em um serviço público, realizada no Hospital do Prenda, em Luanda. “Hoje eles praticam esse procedimento, o que representa um avanço na técnica cirúrgica. Trata-se de uma sofisticação que traz resultados como cirurgia menos invasiva, recuperação mais rápida e menos tempo de internação”, explicou Cunha, pouco antes de embarcar para Angola para mais uma etapa do treinamento de capacitação.

De acordo com o diretor científico e pedagógico do Hospital do Prenda, Eduardo Kedifobua, entre setembro do ano passado e agosto deste ano foram realizadas mais de cem cirurgias videolaparoscópicas do aparelho digestivo. O médico angolano destaca que os profissionais brasileiros são escolhidos não só pela facilidade do idioma, mas sobretudo por sua qualidade técnica reconhecida internacionalmente.

Os desafios para melhorar a qualidade do serviço público de saúde em Angola ainda são grandes. Além de ampliar a formação de médicos e de consolidar uma boa infraestrutura hospitalar, o país precisa investir no fortalecimento da rede básica, com centros e postos de saúde. Os existentes ainda são poucos em relação às demandas da população. “O atendimento a gestantes e aos recém-nascidos é insuficiente e se reflete na alta taxa de mortalidade infantil. Assim como o tratamento da malária, todos os problemas de saúde com diagnósticos precoces seriam resolvidos mais facilmente por meio da estruturação da rede básica de saúde”, avalia o brasileiro Fábio Luiz Vieira, que atualmente se dedica à elaboração de projetos de continuidade da cooperação brasileira para a melhoria dos hospitais de Angola.

Juntando os cacos
Angola conquistou sua independência de Portugal em 1975, após quase 15 anos de guerra, e continuou em processo de guerra civil até 2002. O país, cuja língua oficial é o português, tem mais de 20 idiomas e dialetos. A língua nativa mais falada é o umbundo e a segunda, tradicional da capital Luanda, é o quimbundo. O petróleo, os minérios e os diamantes colocaram Angola no mapa da disputa geopolítica. Uma boa referência histórica está no documentário Para Não Esquecer de Angola, do diretor Marcelo Luna, produzido pela Maianga Produções (www.maianga.com.br). A democracia ainda está em processo de amadurecimento. As eleições legislativas de 2008 foram consideradas um passo importante e preparatório para a eleição presidencial programada para 2010. O país encontra-se em plena fase de reconstrução de vida social, do funcionamento de suas instituições e de resgate de sua dignidade e identidade. Seus avanços políticos, sociais e econômicos são tidos como referência para o desenvolvimento do continente africano.