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Quem ganhou?

Documentário de Silvio Tendler expõe os principais fatos dos últimos 60 anos e reflete sobre a capacidade humana de sonhar 
e destruir

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O que sobrou de Hiroshima depois da bomba de 1945

Um incômodo perpassa do começo ao fim na exibição de Utopia e Barbárie, de Silvio Tendler. E a sensação não está nas velhas imagens das vítimas do Holocausto ou dos sobreviventes da rosa de Hiroshima nem em tantos conflitos ou dilemas enfrentados pela humanidade nos últimos 60 anos, expostos no documentário. Nem nos conflitos políticos e ideológicos que moveram mentes e corações que queriam conquistar ou simplesmente mudar o mundo. Pode estar na percepção de que perderam os que sonharam, ainda que se alimentem permanentemente de esperança. Afinal, como afirma no filme o escritor uruguaio Eduardo Galeano, “o direito de sonhar é o papai e a mamãe de todos os direitos”.

Àquele que queira argumentar que os sonhos não levaram a nada e que tudo fracassou, o cineasta canadense Denys Arcand (O Declínio do Império Americano e As Invasões Bárbaras) responde: “A minha geração, pelo menos, tentou acreditar em algo”.

O filme de Tendler, definido com um road movie histórico, levou 19 anos para ser concluído. O autor percorreu países como Alemanha, Chile, Cuba, França, Israel, Itália e Vietnã e levou dezenas de pessoas – líderes, pensadores, intelectuais, militantes – a refletir sobre o que aconteceu no mundo desde o final da 2ª Guerra Mundial, sobre a capacidade que o homem tem de lutar por seus sonhos e também de destruí-los. “Um recorte de histórias”, define o narrador. Começa justamente com o choque causado pelo investimento bilionário dos Estados Unidos na bomba (“a maior aposta científica da história”) e termina com a posse de um operário no Brasil (Luiz Inácio Lula da Silva), de um cocaleiro na Bolívia (Evo Morales) e de um negro nos Estados Unidos (Barack Obama).

Mostra lutas colonialistas na África, o conflito (eterno?) entre Israel e Palestina, o surgimento do neorrealismo no cinema italiano, carregando no drama para evidenciar as mazelas da vida, a visita de Jean-Paul Sartre ao Brasil, o golpe militar de 1964, a Guerra do Vietnã, a luta de Martin Luther King – e 1968, quando o autor completou 18 anos de idade. O “orgasmo da história”, a “catarse coletiva” de 1968, até o brutal desfecho, no Brasil, com o AI-5 no final daquele ano, representando a fase mais violenta da ditadura.

O sonho viaja para o Chile, com Salvador Allende. E acaba com o presidente morto em pleno palácio de governo, em 1973. E com um poeta, Pablo Neruda, perdendo a vida com “dor na alma”. Dez dias depois do golpe que manchou o país de sangue e torpeza, as cenas do enterro de Neruda certamente estão entre as mais tocantes do filme. A utopia grita e chora, a barbárie parece triunfar.

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Tendler com o general Giap, estrategista do exército vietnamita

“Como o mar”

Como se diz na fita, “utopia e barbárie convivem em desconcertante harmonia”. Para Tendler, nenhuma delas prevalece. “Há uma alternância. A utopia e a barbárie não são sincrônicas. Acontecem alternadamente. É meio como o mar”, afirma o diretor, em entrevista.

Mas, nessa guerra, há vencedores e vencidos? Nos anos 1980, vem a barbárie econômica: Ronald Reagan nos Estados Unidos, Margaret Thatcher na Inglaterra. A vez do neoliberalismo, que coincide com os questionamentos aos regimes do Leste Europeu.

Muda o comportamento: yuppies (mercado, o sucesso individual) substituem os hippies (o sonho coletivo), a aids surge e ameaça acabar com o ensaio de liberdade sexual iniciado ainda na década de 1960. Gritos de independência: a desilusão com a Revolução Cultural chinesa, o movimento pelas eleições diretas no Brasil, a abertura de Mikhail Gorbatchev na União Soviética.

Mas os anos 1980, aqui, terminam com a eleição de Collor. “Se 68 foi o orgasmo da história, 89 foi a brochada”, compara o narrador. E foi justamente essa desilusão o ponto de partida para o filme. As cenas se sucedem em ritmo veloz, e os depoimentos se alternam: Amos Gitai, Augusto Boal, Bernardo Kucinski, Cacá Diegues, Fernando Solanas, Ferreira Gullar, Gillo Pontecorvo, Jair Krischke, Jacob Gorender, Leonardo Boff, Mauro Santayana, Patrícia Bravo, Susan Sontag, Zé Celso. Um sobrevivente do Holocausto, um pacifista israelense, um cineasta palestino. Vítimas e testemunhas de injustiças e transformações contando a sua história. Em todo esse tempo, Tendler reuniu 400 horas de histórias para montar a dele. “É a que eu conheço, que eu vi”, diz.

O filme, que terminaria em 1989, avança a tempo de mostrar o nascimento dos movimentos antiglobalização e a era da internet. A história guardaria ainda, em seus desvios e reviravoltas, algum espaço para a utopia? Novamente citando Galeano, não pode faltar o pão da esperança.

Dedicado a Apolônio
Utopia e Barbárie é dedicado ao militante socialista Apolônio de Carvalho, que morreu em 2005, aos 93 anos. Ele combateu a ditadura de Francisco Franco na Espanha, participou da Resistência Francesa durante a 2ª Guerra, viveu na União Soviética e voltou ao Brasil, onde, na clandestinidade, lutou contra o regime iniciado com o golpe de 1964. Um resistente da utopia.

Com 120 minutos de duração, o filme entrará em cartaz em 23 de abril. A narração é feita pelos atores Letícia Spiller, Chico Diaz e Amir Haddad e tem trilha sonora do grupo Cabruêra, de Caíque Botkay, BNegão e Marcelo Yuka.

Tendler: “A história é o que dela se conta”

Silvio Tendler

Conhecido do público por alguns de seus documentários com foco na história recente do Brasil, como Os Anos JK – Uma Trajetória Política (1980) e Jango (1984), Silvio Tendler retratou personagens distintos como Castro Alves, Glauber Rocha, Milton Santos e Os Trapalhões. Dos trabalhos para a televisão, Anos Rebeldes (1992) certamente é o mais marcante. Nele pode estar a gênese de Utopia e Barbárie, assim como na série Era das Utopias, apresentada pela 
TV Brasil em 2009.

Em relação a seus trabalhos mais conhecidos, a diferença em Utopia e Barbárie é que não há um personagem definido. Dezenas de vozes estão lá, contando suas histórias. Para ouvi-las, Tendler passou anos percorrendo o mundo. Conseguiu depoimentos raros, como o do general vietnamita Vo Nguyen Giap (que liderou a vitória contra os Estados Unidos no final dos anos 60), com ajuda do Itamaraty. “Ele é o cara que no Vietnã fala o que pensa, o que às vezes causa alguma preocupação lá… (risos). É a última figura revolucionária.”

Há também um depoimento da ministra Dilma Rousseff, agora pré-candidata à Presidência da República, o que provocou certo dilema na cabeça do cineasta, sobre incluí-la ou não no filme. Tendler, que não a conhecia, se interessou por ela após depoimento no Senado em 2008, quando Dilma, respondendo a um questionamento do senador Agripino Maia (DEM-RN), disse sentir muito orgulho de ter mentido durante a ditadura, sob tortura, para preservar outros militantes. “Coloquei (o depoimento de Dilma) comedidamente, é a média da fala das pessoas”, diz o diretor, que também incluiu o ex-militante Franklin Martins, um velho conhecido, hoje também no governo. “Nem eu nem ele temos culpa de ele ter virado ministro”, brinca.

Desta vez, diferentemente de outros trabalhos (JK, Jango, Glauber, Trapalhões, Castro Alves), o seu filme não tem um personagem. Ou o personagem é o mundo?
Eu trabalhei com sujeito oculto. A história é uma construção, é o que dela se conta. Quando vêm falar comigo sobre o filme, todo mundo comenta alguma coisa que esqueci. Mas é a história que eu conheço, que eu vivi e a que eu dei importância. O Glauber que eu vi, o Milton Santos que eu encontrei, o Jango que eu estudei… De fato, é a primeira vez que faço na primeira pessoa. Há fotos minhas (no filme) para dar ao público a ideia de que tem um autor.

Você diz que se trata de um filme interminável. Mas ele tem um começo?
Esse filme nasceu na minha cabeça em 1990. Votei pela primeira vez para presidente aos 39 anos, em 1989. Esse direito me foi negado durante mais de 20 anos. Eram mais de dez candidatos, de todas as gamas, ideias e ideologias possíveis. E o Brasil votou no pior, votou na fraude. Aquilo para mim foi um grande desalento.

No filme, você diz que 1968 foi o “orgasmo da história” e 1989, “a brochada”…
Entremeando com a eleição (no Brasil), houve a queda do Muro de Berlim. Não foi a expansão da solidariedade internacional, foi a apropriação do mundo por um punhado de empresas. Foi a segunda faceta da brochada. Naquele momento, prevaleceu o egoísmo, o fim da história, o mundo do consumo. Fiquei completamente desarvorado. Trabalhei esse filme das formas diferentes possíveis, inclusive como ficção. Cada vez que eu ia terminar, surgia um fato novo. Era para terminar com a queda do muro, em 1989. Mas aí aconteceram coisas como a queda do sistema financeiro nos Estados Unidos. É um bom ponto final.

Ficou muita coisa de fora?
Tenho mais de 400 horas (de filmagem). Muita gente boa ficou de fora, muito material bom. Quando você faz um filme, tem de ter coragem de cortar.

Teve alguém com quem você gostaria de falar e não conseguiu?
A Angela Davis (ativista norte-americana), musa da minha geração, e o Jean-Luc Gordard (cineasta francês). Nos dois casos eu bati na trave.

Dos temas do filme, algum prevalece?
Acho que faz parte das agruras da vida. Não há uma prevalência, há uma alternância. No mesmo momento em que há o golpe no Chile, o Araguaia, há a Revolução dos Cravos em Portugal, os movimentos de descolonização na África, a morte do Franco, a vitória do Vietnã… A utopia e a barbárie não são sincrônicas. Acontecem alternadamente. É meio como o mar. Há momentos em que você pode pôr os pés, entrar na água, e há momentos de ressaca em que você tem de se proteger, porque é bravo.

Você pensou em ouvir o “outro lado”?
Nos meus filmes, sempre busquei o equilíbrio. Fiz isso no JK, no Jango… De lá para cá, não tenho tido oportunidade de dar voz à barbárie (risos). Acho que eles já têm bastante espaço.