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Quem entende o economês?

A grande imprensa insiste em tratar de temas distantes do dia-a-dia da população e força a barra para que o país siga a cartilha dela

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É notável a orquestração da grande imprensa nas últimas semanas em torno de temas da economia muito difíceis de serem entendidos pela maioria dos leitores. Os jornais, em coro, estão pegando pesado contra investimentos do governo, que chamam de “gastos públicos”, e no aumento do salário mínimo. Exigem, por exemplo, “ajuste fiscal de longuíssimo prazo” e “autonomia do Banco Central”.

O Globo fala em “farra fiscal” e atribui “gastos” do governo à proximidade da eleição. O Estado de Minas aterroriza seus leitores com a advertência que os “impostos ainda podem aumentar” devido aos gastos públicos e que “a culpa é do governo federal”. A Folha de S.Paulo destaca que o “superávit primário recorde deste ano esconde 39 bilhões de reais” de contas não pagas pelo governo. No Estadão, o economista do Ipea Fábio Giambiagi manda o governo parar de aumentar o salário mínimo. Até o jornal Valor, normalmente mais sério que os outros, entra na ciranda, acusando estatais de investir 29% a mais este ano sem ter orçamento aprovado – enquanto o correto seria elogiar as estatais por terem conseguido investir mais que no ano passado, mesmo com a oposição boicotando a votação do orçamento no Congresso.

Os principais objetivos dessa orquestração são:

A grande imprensa tenta criar uma nova agenda de debates que assuste o eleitor com palavras difíceis e previsões catastróficas. O motivo é que o candidato de sua preferência, Geraldo Alckmin, nada tem a dizer sobre o presente. É difícil reclamar dos programas sociais do governo, a queda nos preços dos alimentos, o barateamento dos materiais de construção ou o crescimento do emprego. Também é difícil comparar a atual gestão com a de FHC, porque todos os índices de comparação favorecem Lula.

Colocar uma camisa de força no próximo governo, cobrando antecipadamente autonomia do Banco Central e ajuste fiscal de longo prazo. Impõem um debate hegemônico a fim de ditar a agenda e o programa do futuro governo.

Reinventar argumentos contra aumentos reais do salário mínimo e as ações de transferência de renda, depois que a realidade desmoralizou a velha tese de que causam inflação. Depois do reajuste do salário mínimo de abril, o principal índice de preços, o IPCA, caiu de 0,2% para 0,1% ao mês. O grande economista brasileiro Ignácio Rangel (1914-1994) já havia demonstrado que, quando o consumo deslancha e a demanda aumenta, os preços caem em vez de subir; as empresas de bens de consumo passam a produzir e vendem mais com os mesmos custos fixos, já que sempre têm enorme capacidade ociosa. O resultado é que podem baixar preços ao consumidor sem prejuízo no lucro.

Acabar mesmo com os aumentos reais do salário mínimo e com as transferências de renda para os mais pobres, independentemente de quem ganhar as eleições. Em artigo de enorme destaque no Estadão, Fábio Giambiagi, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), chega a dizer que aumentos reais do salário mínimo desde o início do Plano Real “custaram 250 bilhões de reais para o setor público, o equivalente a 12,1% do PIB de 2,2 trilhões estimado para 2006”.

Ora, como ele pode comparar fluxos de mais de dez anos com o valor do PIB de um único ano? Giambiagi só considera o que chama de “gastos” com salário mínimo, não considera os ganhos trazidos aos cofres públicos com esses aumentos, como maior recolhimento direto ao INSS. Nem o efeito positivo desse aumento de renda para a economia, gerando mais impostos.

A campanha contra os aumentos reais para o salário mínimo comete outro erro conceitual ao ignorar que salário é renda – portanto, é parte do próprio PIB. Quanto maior o salário, em especial o salário mínimo, maior o PIB. E quanto maior o PIB, menor a proporção dos déficits do INSS e outras dívidas do governo em relação ao PIB.

O coro da mídia culpa cinicamente os trabalhadores pelos juros altíssimos cobrados pelos bancos, através de um raciocínio tortuoso. “A relação entre a dívida pública e o PIB – o ponto mais vulnerável da macroeconomia do país atualmente – seria hoje de 37,9%, e não de 50%, se não tivessem sido concedidos aumentos reais ao salário mínimo desde dezembro de 1994, acarretando, assim, aumentos no valor das aposentadorias pagas pela Previdência”, diz Giambiagi.

Ele inverteu a lógica dos fatos. Ocultou que a principal despesa do governo são os juros, que realimentam a dívida pública, fazendo com que o peso da dívida em relação ao PIB cresça como bola de neve (e quem usa o limite do cheque especial sabe o que é isso). Bastou o Conselho de Política Monetária (Copom) baixar a taxa de juros repetidamente nos últimos meses para a relação dívida-PIB parar de crescer, mesmo com aumento do salário mínimo. Diz Giambiagi: “Sem os aumentos, os investidores perceberiam menos riscos no Brasil e os juros reais poderiam ser bem mais baixos”. Outra desonestidade intelectual. Até o risco Brasil caiu, depois do aumento do salário mínimo.

Bernardo Kucinski é professor licenciado da Faculdade de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP) e autor de livros sobre jornalismo