Pasquale

Que significa ‘desinfeliz’?

Se desonesto é o contrário de honesto, podemos afirmar que desinfeliz é o contrário de infeliz e, portanto, sinônimo de feliz? Claro que não!

Mendonça

Sabemos todos que, em palavras como “desonesto”, “desorientar”, “desgraça” ou “desorganizar”, o elemento latino “des-” indica idéia de negação, oposição ou privação. De fato, desonesto é antônimo de honesto, desordem significa falta de ordem, e assim por diante. Em muitas de nossas palavras, o prefixo “des-” realmente indica idéia de negação. Mas qual será o valor do “des-” em “desinfeliz”? E em “desinquietar”? Podemos aplicar o raciocínio matemático e deduzir que desinfeliz é o contrário de infeliz, que, por sua vez, é o contrário de feliz, isto é, podemos deduzir que desinfeliz é sinônimo de feliz? Não, não é não!

Um homem desinfeliz nada mais é do que um homem infeliz, muito infeliz. No adjetivo desinfeliz (usado sobretudo na linguagem informal) e no verbo desinquietar, o “des-” não tem valor negativo; tem valor reforçativo. Esse “des-” intensifica, aumenta, reforça. Desinquietar não é antônimo de inquietar; é sinônimo mesmo, ou seja, significa “perturbar a paz”, “tirar do sossego” etc. Desaliviar é o mesmo que aliviar.

Em um dos seus vestibulares, a Fuvest pediu aos candidatos que apontassem o valor do prefixo “des-” no vocábulo “desvario”. A questão se baseou na letra da canção Eu te Amo, de Tom Jobim e Chico Buarque (“Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios, rompi com o mundo, queimei meus navios…”). Desvario é o ato de desvariar, verbo que vem do espanhol e resulta do acréscimo de “des-” (intensivo) a “variar”. Como “variar” pode significar “enlouquecer”, “perder a razão”, o verbo desvariar acaba sendo o mesmo que “perder a razão”, “cometer desatinos”. Em “desvario”, portanto, o “des-” expressa intensificação, e não negação.

O mais interessante está por vir. Você certamente conhece as palavras “desvairado” e “desvairar”. De onde vêm? Desvairar é o mesmo que desvariar. Se você prestar atenção, verá que ambas se escrevem com as mesmas letras. Ocorre aí a metátese, que é a transposição de fonemas de um mesmo vocábulo, ou seja, a troca de lugares dos fonemas de uma palavra. Um belo e conhecido exemplo é o do advérbio “sempre”, que vem do latim “semper”.

Outro elemento que não deve ser analisado de forma genérica é o prefixo “a-”, que, diferentemente do que muita gente pensa, nem sempre tem valor negativo. Será que em acalmar o “a-” indica negação? Acalmar seria equivalente a “perder a calma”? É claro que não. Acalmar resulta de “a-” + “calma” + “-ar”. Esse “a-” vem do latim e indica idéia de aproximação, mudança de estado, transformação. Acalmar significa “tornar calmo o que não era”. É bom lembrar que o processo pelo qual se forma o verbo acalmar tem o nome de parassíntese (acréscimo simultâneo de prefixo e sufixo), de que são exemplos “esfriar” (“es-” + “frio” + “-ar”), “anoitecer” (“a-” + “noite” + “-ecer”), “enriquecer” (“en-” + “rico” + “-ecer”) etc.

O “a-” que indica negação (equivalente a “an-”) vem do grego e se vê em palavras como analfabeto, analgésico, amoral, amorfo, afônico, anarquia etc. Afônico, por exemplo, significa “sem voz”. Essa palavra é da numerosa família do elemento grego “fone” (“som”, “voz”), de que faz parte telefone – “tele” (“ao longe”) + “fone”.

Para encerrar, uma palavra enjoada: “afear”, que não se deve confundir com “afiar”. Afear resulta, por parassíntese, de “a-” + “feio” + “-ar”. Afear é “tornar feio”. “Afiar” também resulta de parassíntese, mas de “a-” + “fio” + “-ar”. Significa “dar fio a (uma faca, um machado etc.)”, “tornar cortante”. A semelhança fonética e gráfica entre “afear” e “afiar” talvez seja o que leva o povo a preferir “enfear” para a idéia de afear. As duas (enfear e afear) são equivalentes. Mas tome cuidado: nada de “enfeiar”. Em português não existem verbos terminados em “-eiar”.

Pasquale Cipro Neto é professor de Língua Portuguesa, idealizador e apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, da TV Cultura

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