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Próximo passo, a prática

Em meio a diferenças entre empresários, movimentos e governo, Conferência de Comunicação consegue ao menos pôr as partes para dialogar e aponta avanços na democratização da área. Mas será preciso pressão da sociedade para que diretrizes ali sugeridas saiam do papel

Fabrício Fernandes/Ascom/MC

Brasília recebeu 1.684 delegados de todo o país nos quatro dias de debate. Foram apresentadas 1.400 propostas

Uma panela de pressão, embate de classes, vermelhos contra azuis. A 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) foi peculiar. Apesar de não ter caráter deliberativo, o evento representou um primeiro momento em que movimentos sociais, empresários e governo discutiram temas intocáveis no Congresso Nacional e no próprio Ministério das Comunicações, responsável pela convocação. Depois de 11 meses de organização, Brasília recebeu 1.684 delegados de todo o país para quatro dias de debates. O desafio era analisar e buscar consensos a respeito de 1.400 propostas sistematizadas a partir de outras 6 mil, apresentadas durante conferências estaduais.

O espaço para embates foi amplo. Além de haver delegados por setores da sociedade e do poder público, dentro de cada segmento havia suas divisões. Empresários das telecomunicações (telefonia) e de radiodifusão comercial (emissoras de rádio e TV) têm pontos em comum e temas em que não se bicam. Ainda dentro desse segmento estava uma minoria de “empresários progressistas”, advinda de projetos alternativos como Caros Amigos, Carta Maior, Revista Fórum e Revista do Brasil.

No governo, são pelo menos três frações. Os Ministérios das Comunicações e da Cultura e a Secretaria de Comunicação da Presidência da República têm visões distintas do cenário em termos de necessidade de democratização do setor e de tratar o tema como direito humano, por exemplo. No movimento social, há ainda mais diversidade.

Entre todos os segmentos com que a reportagem conversou, a maior conquista apontada é mesmo a própria realização da conferência. Para o presidente da Comissão Organizadora, Marcelo Bechara, o debate se colocou em outro paradigma. “Independentemente de propostas e polêmicas, a conferência reúne pessoas que não estavam habituadas a dialogar entre si”, comemorou. Apesar disso, Bechara, consultor jurídico do Ministério das Comunicações, reconhece que o clima era de panela de pressão, especialmente no início do processo.

Juarez Quadros, conselheiro da Associação Brasileira de Telecomunicações (Telebrasil) e ex-ministro das Comunicações, celebra o aprendizado do setor empresarial e de seus representantes – a maior parte funcionários em cargos de gerência e direção. “O setor não tinha essa vivência que os segmentos sociais têm, porque participam de atividades em diversos campos, como conferências de saúde, ambiente… E esta é a primeira de comunicação, uma experiência nova e boa de saber negociar com a sociedade também”, contemporizou.

“Inauguramos um novo momento em que a comunicação deixa de ser uma caixa-preta sem debate nem avaliação da sociedade”, sustentou Celso Schroder, coordenador-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). “A presença do setor empresarial, ou de parte dele, é muito importante, e demarca esse novo momento.”

Única parlamentar participante, a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), delegada pelo Congresso Nacional, acredita que manter os empresários exigiu tolerância e maturidade dos movimentos sociais para lidar com as “distensões e chantagens feitas”. E que o saldo de organização e politização é irreversível. “Está se entendendo esta como uma conferência preparatória, a primeira, que enfrentou muitas resistências. Isso dá à mobilização uma condição plena de sair daqui com (a certeza de) uma segunda”, analisou.

O governo não se arrisca a apresentar uma data para a próxima Confecom, mas uma diretriz aprovada estabelece um processo bienal. Após um processo que levou três anos de mobilização e pressão dos movimentos sociais para ser conquistado, é difícil garantir que essa periodicidade será mantida. 

Alessandro dantas/photocâmeraevento
A promoção de controle social foi um dos principais objetivos do evento

Embates e conquistas

Houve avanços, do ponto de vista dos movimentos, em questões como equilíbrio de concessões de canais digitais entre a iniciativa privada e a pública, limites à propriedade cruzada de emissoras e promoção de controle social.

Outra resolução sugere garantias à viabilidade comercial de veículos alternativos, assim como o direito de antena a movimentos e organizações sociais. Entre as conquistas, está o Conselho Nacional de Comunicação, provavelmente uma autarquia análoga à que foi apresentada em 2004 pelo Executivo para ser votada no Congresso. Na ocasião, foi barrada pela reação das grandes empresas de comunicação. “É uma das reivindicações históricas nossas, é um dos grandes avanços da conferência”, considera Rosane Bertotti, secretária nacional de Comunicação da CUT.

Schroder explica que o conselho, com autonomia em relação ao poder público, é um passo importante para garantir o controle social, que nada tem a ver com censura. “Das 6 mil propostas (apresentadas), nenhuma apontou para qualquer tipo de censura”, avalia. “A liberdade de expressão prevista na Constituição é a do cidadão, garantida por muita concorrência, muita diversidade, trazendo o contraponto – o que não está acontecendo”, diz.

Fazer com que a proposta de criação do Conselho seja posta em prática são outros quinhentos e envolverá batalhas no Congresso Nacional. “Com certeza um tema como esse não passará por decreto”, sentencia o jornalista João Brant, do Coletivo Intervozes. “Precisa de uma proposta legislativa, que vai começar a ser pensada, envolvendo formas de composição, mecanismos etc.”

Embora não seja o tema preferido dos empresários, a proposta foi aprovada por unanimidade em um dos grupos de trabalho. O setor – sem a participação das associações que representam a Globo e os jornais mais tradicionais do país – conseguiu garantir parte de sua agenda, mas esbarrou em um dos pontos mais almejados, a redução da carga tributária.

Três fundos (Fust, Finttel e Fistel) são cobrados em contas de telefonia e não são aplicados, segundo os empresários. Há ainda a queixa de bitributação em telefonemas interurbanos e de exageros que levam a R$ 40 bilhões os impostos arrecadados das teles.

“A gente defende que, em vez de usados apenas para financiar a dívida pública, sejam usados para financiar a criatividade do brasileiro”, explica Walter Vieira Ceneviva, vice-presidente executivo do Grupo Bandeirantes e um dos cabeças do processo pela Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra), em entrevista ao Jornal Brasil Atual. “Infelizmente a sociedade civil entende que (as telecomunicações) têm de pagar mais imposto”, lamenta Quadros, da Telebrasil.

Sindicatos e outros ativistas defendem a redução na margem de lucro das companhias antes da redução tributária. Querem ainda recursos arrecadados entre as empresas para promover aumento do acesso à banda larga, entre outras demandas. Além disso, manifestaram descrença em relação às intenções empresariais de baratear custos de acesso à telefonia e à banda larga.

Para delegados do setor empresarial, essa divisão se manteve expressa na postura de “vermelhos contra azuis”, uma referência à cor dos crachás dos representantes da sociedade civil e das corporações, respectivamente. Isso mostra que, apesar da celebrada quebra da desconfiança, ainda são interesses e visões antagônicos. “Obviamente tem tensões, porque havia uma demanda reprimida de muitos anos e uma não apropriação dos temas por todos os lados”, pondera Schroder. O que ele sugere é que muitas questões foram barradas por dificuldade de entendimento entre as partes. Rosane Bertotti, da CUT, vai além. “Somos uma sociedade de classes, aqui temos governo, empresário e trabalhador, e nem sempre empresários e trabalhadores estão do mesmo lado”, resume. 

Próximos passos

Foram encaminhadas ao relatório final mais de 650 propostas. Da criação de um conselho nacional de comunicação a garantias de conteúdo não discriminatório a mulheres, negros e homossexuais, há resoluções apontando em direções variadas. Parte delas depende de passar pelo Congresso Nacional para virar lei. Apenas Erundina compareceu, entre os oito delegados apontados pelo Legislativo federal, o que indica dificuldade de consolidar a condução das pautas. Outras questões envolvem ministérios e governos estaduais ou municipais.

“Agora, vem a articulação, que é pressão e negociação, para serem efetivadas ou por ações de governo ou de novas leis”, prevê José Luiz do Nascimento Soter, da Associação Brasileira de Radiodifusores Comunitários (Abraço). Soter lembra que a conferência não terminou, apenas cumpriu uma etapa de elencar gargalos que impedem a democratização da comunicação.

“Criamos canais de negociação entre os segmentos e, com a quebra da desconfiança, podemos sentar com o setor empresarial para discutir com uma nova mentalidade”, explica. A Abraço, aliás, tem motivos para comemorar. Todas as propostas trazidas pela rede foram aprovadas, incluindo direito a antena e o fim da criminalização do movimento. A avaliação é de que sinalizações políticas podem desbloquear o cenário, ou eliminar a inércia que impedia mudanças no setor. Mas com muita negociação pela frente.  

Por pouco, um último golpe

lula

Poucas horas antes da conferência, a Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra) – que representa as redes TV! e Bandeirantes – entrou com um recurso ante a comissão organizadora exigindo uma espécie de direito de veto, por meio de um recurso chamado “questão sensível”, nos grupos de trabalho. Caso um setor recorresse a isso, seriam necessários 60% dos votos, dos quais pelo menos um de cada segmento – e não mais maioria simples. O mecanismo já existia na própria comissão desde maio, assim como era previsto para a plenária final, que definiria as propostas.

A exigência era preventiva contra possíveis decisões desagradáveis ao setor empresarial. A Abra ameaçou se retirar da Confecom. A manobra coroava um histórico de ações dos empresários para minar a conferência – como a exigência de contar com uma representação de 40% dos delegados. Mesmo essa atitude favorável não impediu a saída de entidades do setor, como a Associação Brasileira de Rádio e TV (Abert) e a Associação Nacional de Jornais e Revistas (ANJ), da comissão organizadora, com o objetivo de pôr a legitimidade da Confecom em xeque.

Na comissão organizadora, inicialmente, os movimentos sociais foram contrários à medida, temendo um embarreiramento da discussão e uma conferência sem avanços. O governo se dividia. Meia hora antes do início do evento, o recurso foi aprovado. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, confirmado para a abertura, ao ser informado da ameaça de abandono do barco em cima da hora, condicionou a própria participação à presença da Bandeirantes no processo. Parte dos movimentos sociais considerava que a manobra era um blefe, mas outros, incluindo a CUT, o Vermelho, ligado ao PCdoB, e a Rede Abraço, temiam comprometer a conferência conquistada a muito custo.

A pressão do Planalto gerou uma celeuma dentro das entidades da sociedade civil não empresarial. A situação foi contornada apenas na plenária de abertura, quando um novo acordo eliminou o veto dentro dos 15 grupos. Um número fixo de propostas, proporcional ao tamanho de cada setor, poderia ser levado à plenária final mesmo que tivesse sido rejeitado no GT. A “questão sensível” foi mantida na plenária.

Sendo um blefe ou excesso de concessão por parte do governo, o fato é que os empresários ficaram. Ganharam elogio rasgado de Lula durante o discurso de abertura e a permanência foi celebrada por diversos setores.