Ponto de Vista

Protógenes e La Fontaine

Daniel Dantas pode comprar jornalistas, pagar grandes advogados e obter habeas corpus altas horas da noite. Mas não pode gozar da liberdade de andar pelas ruas nem olhar um trabalhador nos olhos

A  astúcia do dominador está em inverter a lógica. Uma boa imagem disso está na fábula do lobo e do cordeiro, de La Fontaine. Estando bebendo à jusante do riacho, o cordeiro jamais sujaria a água de que se servia o lobo. Quando o cordeiro usa desse argumento irretorquível, o lobo responde que, se não foi aquele mesmo cordeiro a sujar a água, foi outro cordeiro – e devora o animal indefeso.

Na abertura de Macbeth, de Shakespeare, as feiticeiras, antes de induzir o nobre a seu destino trágico, dançam em torno de uma fogueira e gritam: “Fair is foul and foul is fair”, ou seja, “o certo é errado e o errado é certo”. É a isso que estamos assistindo, nestes últimos meses, no embate entre o banqueiro Daniel Dantas e dois insistentes mosqueteiros, o delegado Protógenes Queiroz e o juiz Fausto de Sanctis. O banqueiro é mais do que ele mesmo; seu poder é maior do que o seu dinheiro, que amealhou da forma que amealhou e com o qual pode contratar advogados importantes e cooptar jornalistas conhecidos. Daniel Dantas representa parcela ponderável dos ricos brasileiros. Não os representa em sua totalidade, porque há homens honrados entre os empresários nacionais.

Com Dantas encontram-se os grandes especuladores, muitos de má fama comprovada, e o defendem inúmeros parlamentares de biografia bem conhecida. Alguns se valem de seus favores, como o empréstimo de aviões e a contribuição para as campanhas eleitorais; outros o apoiam por solidariedade de classe e cumplicidade nos negócios. 

A inversão da lógica atinge o âmago do Estado brasileiro. Todo Estado tem a necessidade e o dever de manter serviços secretos de informação. Ainda que contassem com a proteção de Jeová, os judeus se valeram de Judith para seduzir e degolar Holofernes, na resistência contra os assírios. Os serviços secretos são abomináveis quando se dedicam a defender tiranias. Mesmo assim, é preciso separar as coisas. A Abwehr, serviço de espionagem externa da Alemanha, era uma coisa; a Gestapo, outra. Os serviços secretos têm o dever de combater o crime organizado, contra o qual as repartições policiais podem pouco.

É natural que a Abin, por si só, ou em conjunto com a Polícia Federal, investigue a lavagem de dinheiro e a evasão de divisas rumo a paraísos fiscais. Se agentes da Abin estivessem trabalhando em conjunto com agentes da Polícia Federal contra a organização de Fernandinho Beira-Mar, ninguém estranharia. Protógenes seria visto como herói nacional pelo ministro Gilmar Mendes e por toda a mídia brasileira.

Mas o alvo de suas investigações não é um bandido que veio da favela. A família de Daniel Dantas tem raízes no Império, é descendente do barão de Jeremoabo. Ele é filho de um amigo de mocidade de Antonio Carlos Magalhães e de uma senhora das altas rodas sociais de Salvador. É considerado pelos admiradores “gênio financeiro”. Protógenes também é baiano, mas seu pai era militar da Marinha e sua mãe uma jovem mestiça. Passou infância e juventude em Niterói, enquanto Daniel Dantas fazia seus peagadês nos Estados Unidos. 

O confronto entre Protógenes e Daniel Dantas é o confronto entre a lei e o crime; entre as oligarquias, que antes se nutriam do trabalho escravo e hoje se apropriam dos recursos nacionais. O delegado cometeu excessos, muito bem, que pague pelos excessos. Mas, por maiores que estes tenham sido, nada representam diante dos crimes de que são suspeitos o banqueiro e seus sócios.

O sistema republicano baseia-se em um princípio universal, o de que todos são iguais diante da lei. Se a polícia usa algemas para alguns, deve usá-las para todos. Se alguns vão para as celas comuns das penitenciárias, todos devem cumprir nelas as suas penas. 

O banqueiro Daniel Dantas pode comprar jornalistas, pagar os melhores advogados e contar com a presteza de juízes que lhe concedem habeas corpus altas horas da noite. Mas não pode gozar da liberdade de andar sozinho e sem medo pelas ruas de seu país. Não pode olhar um trabalhador nos olhos.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980

Leia também

Últimas notícias