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Precioso espaço no ar

As rádios comunitárias estão espalhadas pelo país e chegam aonde veículos de comunicação nem sempre entram: na casa das pessoas

Rodrigo Queiroz

Maria das Graças: “Hoje lutamos para diminuir a repressão e mostrar que a comunidade tem necessidade de informação”

O Brasil tem quase 7.000 emissoras de rádio com licença para operar. São aproximadamente 1.800 comerciais, 417 educativas, 1.700 de ondas médias, 2.900 comunitárias e as demais divididas entre de ondas curtas e tropicais. Ou seja, a maioria das transmissões no país é feita pelas rádios comunitárias. Elas chegam a 5.557 municípios brasileiros (99,86%), de acordo com o Ministério das Comunicações.

No ano passado, 1.246 entidades se cadastraram no ministério para receber permissão de ter uma estação própria no dial do rádio. Esse é um sonho de outras cerca de 5.000 rádios comunitárias que tentam se manter no ar, entre uma fiscalização e outra, de acordo com estimativas da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço).

A Rádio Cantareira, na zona norte da capital paulista, está muda desde fevereiro de 2006 por falta de licença para operar. Existe desde 1995, quando uma pesquisa local detectou o baixo índice de leitura e de informação na região. “Formamos um conselho e fomos ver como se fazia para montar nossa rádio, algo que atendesse de fato aos interesses da comunidade”, explica a coordenadora de projetos da Associação Cantareira, Juçara Terezinha Vottis. A emissora se manteve com contribuições do clube de associados e de moradores, que doavam pequenos valores e emprestavam discos de vinil e fitas cassete. As fiscalizações começaram no final de 1996 e aconteciam quase todos os meses. “Eles não nos pegavam porque os moradores nos avisavam”, lembra Juçara, que afirma ter entrado com o pedido de outorga no mesmo ano em que foi sancionada a Lei n° 9.612/98, que regulamenta o serviço de radiodifusão comunitária. Para não prejudicar o processo, fecharam a emissora em fevereiro de 2006. “A Rádio Cantareira era um espaço dos movimentos sociais e fazia o contrapeso da mídia oficial. Todo dia tem gente que nos pergunta quando a rádio vai voltar ao ar.”

A lei determina que só podem explorar esse serviço, com até 25 watts de potência, associações comunitárias devidamente registradas, sediadas na área de abrangência. A programação deve dar oportunidade à difusão de idéias e hábitos sociais da comunidade, prestar serviços de utilidade pública, dar preferência às finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, respeitar os valores éticos e sociais, sem discriminação de nenhum tipo, sem proselitismo de políticos, entre outras determinações. São proibidas publicidades e propagandas e permitidos apenas apoios culturais, sem anúncio de produto ou serviço.

Dias de caça

Cabe à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) monitorar o espectro eletromagnético – espaço por onde transitam as ondas – e verificar denúncias recebidas pelo 0800 para chegar até rádios que chamam de piratas, por não terem outorga, ou às que têm permissão para operar mas não cumprem os requisitos. A fiscalização grava a programação para provar que uma estação é usada por um político, religião ou grupo ideológico único, fatores que desqualificam o caráter comunitário e podem levar à cassação da autorização.

O gerente-geral de fiscalização da Anatel, José Joaquim de Oliveira, afirma que em 2007 houve cerca de 3.600 denúncias. “As pessoas ligam reclamando de interferências e vamos verificar. Nosso foco não são as rádios comunitárias, mas temos de cumprir a legislação. O espectro é um bem público.” Quando detectam uma emissora clandestina, os fiscais interrompem a programação e lacram a rádio. “Se não conseguem entrar no local, precisam fazer uma notícia-crime. As ações são em conjunto com a Polícia Federal”, explica Oliveira.

Movimentos das rádios comunitárias e pela democratização da comunicação vivem denunciando a repressão violenta da polícia. Jerry de Oliveira, coordenador da Abraço, afirma que eles “entram de metralhadora na mão e são truculentos”. O delegado da Polícia Federal Carlos Bastos Valbão, que comanda o Grupo de Combate à Atividade de Rádio Clandestina de São Paulo, diz que a truculência não é permitida nas operações. “Se vamos com armamento pesado não é para combater a rádio pirata, mas como na maioria das vezes elas ficam na periferia, pode ter uma boca-de-fumo ao lado. Temos de proteger os agentes”, argumenta.

A Rádio Novo Ar, em São Gonçalo (RJ), começou a sentir o peso das fiscalizações em 2005 e em 2007 foi lacrada pela primeira vez. Moradores a colocaram no ar de novo. A coordenadora da Comunidade Novo Ar e secretária executiva da Federação das Associações de Radiodifusão Comunitária do Rio de Janeiro, Maria das Graças de Souza Rocha, afirma que toda vez que entram no ar recebem notificações. A multa acumulada chega a R$ 8.000. “Isso desmobilizou, não é sempre que tem programação. Antes era 24 horas e tinha programa para mulheres, crianças, adolescentes, sobre rock, mídia, deficientes. Hoje lutamos para diminuir a repressão financeira, burocrática e violenta e mostrar que a comunidade tem necessidade de informação.” A Rádio Novo Ar aguarda autorização para funcionar desde 1999. “Existem poucas pessoas trabalhando e muitos processos para cuidar, isso gera uma demora muito grande.”

O Ministério das Comunicações informou que o prazo médio para a tramitação de um processo de outorga é de 37 meses e atribui a demora a dificuldades que as entidades têm de apresentar a documentação em conformidade com a legislação, que é muito rigorosa, e que grande parte das requerentes não cabe no conceito de comunitária.

Jerry Barbosa, da Abraço, reclama da falta de um manual de orientações para que a concessão das outorgas seja mais ágil e transparente. “Temos 20 mil rádios fechadas nos últimos dez anos, 5.000 pessoas processadas, R$ 200 milhões em equipamentos apreendidos, 400 profissionais da Polícia e do Judiciário cuidando disso. O investimento em repressão é muito maior que o que se gasta para dar a outorga. Isso só pode privilegiar as rádios comerciais”, critica.

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Conquista comunitária

A Rádio Heliópolis, em uma das maiores favelas do país, em São Paulo, passou pelas mesmas dificuldades que a Cantareira e a Novo Ar. Foi fechada em agosto de 1996, depois de 14 anos em operação. Com seu trabalho premiado e reconhecido dentro e fora do Brasil como modelo de comunicação popular, a decisão foi rapidamente revertida. Segundo Geronino Barbosa, coordenador da emissora, quatro horas depois do fechamento o Ministério das Comunicações propôs à rádio funcionar em caráter experimental em parceria com alguma universidade, até a obtenção da outorga. “Não fizeram com a gente o que fazem com as outras, não chegaram com os pés na porta. Ficamos um ano fora do ar, até comprar equipamentos e adequar o prédio. Perdemos ouvintes, mas estamos aí para informar, formar e promover a cidadania”, comemora Geronino, conhecido como Gerô na comunidade.

A história começou com alto-falantes espalhados pelas ruas e serviam para convocar a população para as reuniões da associação de bairro. Em cinco anos vieram mesa de som, computador, transmissor e algo que já se podia chamar de programação. A cada música, uma prestação de serviço: documentos perdidos, crianças desaparecidas, atividades culturais, reuniões, serviços da biblioteca, da lavanderia comunitária. Geronino afirma que os 125 mil habitantes da favela conseguem sintonizar os 87,7 FM. “Temos espaço para todos os públicos: negro, mulher, homossexual, evangélico, católico. Ninguém tem grana para comprar jornal e revista nem ‘cultura’ para escutar programa de notícias. Daí chegamos a esse formato de música seguida de informação.”

Quando a reportagem chegou à rádio, Maximiliano Silva e Zenildo Ribeiro anunciavam documentos perdidos. Os dois locutores fizeram curso de capacitação em produção de rádio numa parceria com a Oboré, empresa originada do movimento social e voltada para o apoio à comunicação popular. Moram no bairro e comandam um programa diário, Forrozão da Heliópolis. “Não sei o que seria de mim sem a rádio. Sinto que faço alguma coisa de bom para a comunidade”, declara Zenildo, segurança que está afastado do trabalho por depressão.

O comerciante Geraldo Pereira de Souza, de 50 anos, é ouvinte de todos os dias, de manhã e à tarde. “Eles falam da gente, por isso digo que é minha rádio. Faz 22 anos que moro aqui e ouço desde quando era com corneta. Uma vez uma criança se perdeu, levamos lá e não demorou para a mãe aparecer.”

Em Monte Mor, no interior de São Paulo, a Rádio Prima experimenta sucesso semelhante desde que conquistou a outorga, em 2001. Única emissora da cidade, leva ao ar programa em que os ouvintes entrevistam o prefeito ao vivo, campanhas para arrecadar dinheiro para causas sociais, prestação de serviços, cultura e histórias locais. “Na rádio comunitária há participação e interação, os ouvintes conhecem o locutor, e não o mitificam. Sempre fechamos no vermelho, mas sou apaixonado por isso”, diz o criador da emissora, Eduardo Rage Scarannello.

Aglomerado da Serra, maior favela de Belo Horizonte, também sedia uma emissora. Depois de muita perseguição e uma centena de batidas policiais, a Rádio Favela conseguiu se estabelecer e hoje alcança toda a Grande BH graças à outorga legal com status de “educativa”, obtida em 2002 – mesmo ano em que inspirou o longa-metragem Uma Onda no Ar, de Helvétio Ratton. Um dos fundadores da rádio, Misael Avelino, de 48 anos, afirma que ela não deixou e nunca vai deixar de ser comunitária, apesar de ter expandido os limites da favela e freqüentar o terceiro lugar na audiência popular, com cerca de 40 mil ouvintes por minuto. “Ela é diferente porque leva as reivindicações das pessoas com sotaque do morro. Hoje temos anúncio e a gente concorre com as comerciais pela audiência que tem”, diz Misael. Mas os números levantam questionamentos de quem acompanhou a trajetória da rádio. O educador Geremias Cardoso de Souza afirma que o caráter comunitário foi engolido pelo comercial: “Antes ela divulgava trabalhos da gente, discutia nossos problemas e todos participavam. Isso acabou”.

Quem atua na área considera a questão da sustentação financeira um dos nós a ser desatado para o desenvolvimento da radiodifusão comunitária com autonomia e independência. O problema começa na legislação e se estende às dificuldades de organização para manter os projetos em operação sem permitir que sucumbam à força de quem tem dinheiro ou influência política. Para o coordenador da Abraço, as restrições da lei – que veta propagandas e determina que a rádio seja bancada apenas com recursos da associação de moradores – são uma forma de impedir o surgimento de concorrentes para as emissoras comerciais. “A questão da sustentabilidade deve ser rediscutida urgentemente. Hoje só pode apoio cultural no raio de um quilômetro. Impossível manter os custos com isso”, afirma Jerry Barbosa.

Maria das Graças, de São Gonçalo, concorda: “A rádio Novo Ar tem apoios culturais, mas também tem o patrocínio com endereço e tudo. Isso também é serviço, precisa ser comunicado e gera emprego e renda para muitas pessoas da comunidade”, defende a secretária executiva da Federação das Associações de Rádios Comunitárias do Rio.

Para José Carlos Rocha, presidente do Fórum Nacional pela Democratização dos Meios de Comunicação, a socialização da informação é o começo de todo projeto de cidadania. “Nas pequenas cidades do interior, começa-se a ver os resultados dessa comunicação. Há esperança de ampliar e melhorar, porém as entidades devem ser capacitadas para tal.” Enquanto embates como agilidade nas concessões e viabilidade financeira não se resolvem, os milhares de estações comunitárias espalhadas pelo Brasil, autorizadas ou não, se alimentam da teimosia e da convicção para levar adiante suas mensagens.

Derruba avião?
Segundo a Anatel, entre os efeitos “nefastos das rádios clandestinas estão interferência no aparelho de segurança pública e nos instrumentos de vôo dos aviões”. É o que geralmente se ouve quando o assunto é rádio comunitária. O pesquisador em telecomunicações Marcus Manhães afirma que nenhuma rádio que opere com até 25 watts, com outorga ou não, pode interferir na freqüência utilizada pela aviação, exceto se estiver a menos de 1,5 quilômetro do aeroporto. “Uma emissora comercial, por ter potência alta, consegue, sozinha, causar interferências; mas uma comunitária precisa de mais um ou dois sinais mais fortes para fazer a combinação interferente. A mídia não fala que as comerciais interferem na comunicação aeronáutica. É uma questão técnica, difícil de interpretar, e por isso se cria um mito negativo e preconceituoso com relação às rádios comunitárias.”

Em maio do ano passado, durante a CPI do Apagão Aéreo, o deputado Marco Maia inquiriu o presidente da Gol, Constantino de Oliveira Júnior, sobre a freqüência da interferência de “rádios piratas” na comunicação: “É relevante, do ponto de vista da segurança das aeronaves?” O empresário respondeu: “Não. Esse tipo de interferência de rádio pirata é um problema que deve ser tratado com bastante atenção, porque realmente ele acaba interferindo na comunicação das aeronaves. Não chega a ser algo que põe em risco o vôo. Não coloca em risco a operação da aeronave”.