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Pourquoi, mon dieu?

O Haiti é uma expressão doentia de tudo o que o neoliberalismo idealizou: Estado mínimo, governo fraco, sociedade descarnada de máquina pública, economia sem planos de desenvolvimento e agricultura destruída pelo livre mercado

MARCELLO CASAL JR/abr

Menina ferida acompanha o pai na fila de distribuição de alimentos

De tão traumáticas e devastadoras, certas experiências escapam à razão. A perplexidade do encontro com o que existe para o “além-razão” está sempre presente no olhar e nas narrativas dos personagens das grandes tragédias, como esta que já se credenciou entre as maiores do século 21: no dia 12 de janeiro de 2009, a natureza condensou energia equivalente à explosão de 25 bombas atômicas em um único minuto, liberando-a de uma só vez em Porto Príncipe. Foi o suficiente para fazer a terra tremer sob os 2 milhões de habitantes da capital do Haiti. Nas ruas, sobreviventes à deriva tentavam reconectar-se com alguma referência estável depois que as de concreto e ferro vergaram e caíram. Sobrou o apelo, “Jesu… Mon Dieu”, evocado insistentemente por cânticos religiosos em busca catatônica de uma resposta: “Pourquoi, mon Dieu, pourquoi, mon Dieu?

Não foi só em Porto Príncipe que a capacidade de expressão secou diante da catástrofe. Jornais importantes do mundo todo aumentaram o corpo de seus títulos na tentativa de compensar a fragilidade das palavras para relatar o indescritível. No Brasil, quem chegou mais perto do sentimento difuso de impotência e dor foi O Globo. Na edição do dia 14, o diário conservador estampou uma única palavra em letras garrafais: “Desespero”. Não se esforçou para explicar a origem desse sentimento. E talvez nunca possa fazê-lo com rigor. Quando a poeira baixou, outro furacão passou a repartir a responsabilidade pelo desalento dos haitianos e a perplexidade da humanidade: o furacão da história.

A ausência do Estado nas ruas de Porto Príncipe causava tanto desconcerto quanto a exposição de corpos insepultos e a procissão dos sobreviventes sem destino. Sem estrutura estatal, sem funcionalismo público capacitado, sem planos de emergência nem estoques de segurança de alimentos ou remédios, com uma carga fiscal de apenas 12% do PIB, que soa como música nos ouvidos dos colunistas conservadores d’O Globo, o Haiti, a rigor, já não era um país antes de 12 de janeiro. A partir de então acentuou a condição de uma ilha de desterrados em seu próprio país.

Carlos Barria/Reuterssobrevida
Haitianos se abrigam em acampamentos sem saneamento

Asfixia

O pecado original do Haiti foi o pioneirismo na luta contra a escravidão, abolida em 1804, poucos anos depois da Revolução Francesa, seguido da proclamação da primeira república negra do planeta. As potências coloniais jamais perdoaram o mau exemplo do líder negro Toussaint Louverture. A jovem nação caribenha foi cercada e asfixiada, sobretudo para aniquilar seu internacionalismo libertário, que incluía o apoio a rebeliões em outras colônias e o abrigo a escravos fugidos e alforriados. Ao cerco da ordem colonial sucedeu-se a ocupação norte-americana.

Leia “Anatomia da Infâmia”, de Mauro Santayana.

A menos de 80 quilômetros do Haiti, outra pequena ilha do Caribe, Cuba, igualmente pobre e suscetível à fúria de furacões e tufões, sugere que não se pode transferir apenas à geografia certas calamidades cuja explicação só se completa na investigação da história. Mas o grande divisor de águas em relação à trajetória cubana ocorreu nos anos 1950. Enquanto Cuba, em 1959, derrubava o ditador corrupto Fulgêncio Batista, o Haiti ingressava numa longa e tenebrosa noite de submissão a um poder sanguinário comandado por François Duvalier, o Papa Doc, sucedido pelo filho Baby Doc, até 1986. A sustentá-los a violência impiedosa de uma polícia secreta apropriadamente conhecida como Tonton Macoute, o bicho-papão, que matou no Haiti tanto quanto Pinochet no Chile, cerca de 30 mil opositores.

Quando a democracia fez seu frágil despertar no país, nos anos 1990, o mundo rezava pela cartilha do pensamento único neoliberal. O credo, apoiado no tripé de abertura de mercados, Estado mínimo e privatização das empresas estatais, reafirmou a trajetória de uma sociedade exaurida em direção ao abismo. O presidente, René Préval, que substituiu Jean Bertrand Aristide, eleito e derrubado duas vezes, não afrontou o dogma. Em 2007, a exemplo de seu antecessor, retomou um programa de privatizações das poucas empresas públicas existentes, a Companhia Nacional de Telecomunicações foi a primeira a ser vendida.

Cerco implacável, igual ou pior que o desfechado pelos europeus contra o Haiti no século 19, condiciona a história de Cuba. Há meio século Havana sofre os rigores do embargo econômico norte-americano. O torniquete inclui represálias contra países e empresas que mantenham negócios com a ilha. Tentativas de assassinato de lideranças e dirigentes cubanos reforçam um clima de sabotagem permanente, potencializado pela intensa propaganda norte-americana contra o regime. A diferença com a república negra de Toussaint Louverture é que a revolução cubana ao ser encurralada, nos anos 1960, recorreu a um modelo de desenvolvimento fortemente centralizado. Seccionada da economia mundial por pressão dos EUA, Cuba se socorreu no planejamento, na estatização dos serviços básicos e na socialização de amplos setores produtivos, inclusive a agricultura.

MARCELLO CASAL JR/abrOperação de guerra
Militares brasileiros organizam a distribuição de água e comida

Terremotos sociais

A história dos países subdesenvolvidos não deixa espaço para comparações entre céu e inferno. Cuba e Haiti são duas ilhas do imenso purgatório do subdesenvolvimento. Ainda assim, certas diferenças merecem ser observadas, sobretudo quando se discute o passo seguinte da história, a reconstrução do Haiti.

Para os 9 milhões de haitianos, a história tem sido uma sucessão de terremotos sociais que sedimentaram nessa ilha do Caribe a maior taxa de pobreza da América e uma das piores do planeta, 70% da população está abaixo da linha da pobreza e 52% são analfabetos. O contraste com a sociedade cubana, também pobre, enseja profunda reflexão sobre as opções a serem feitas no Haiti de agora em diante.

A renda per capita em Cuba é quase seis vezes superior à do Haiti. Água potável, saneamento básico e energia elétrica estão disponíveis para 95% dos cubanos. A taxa de analfabetismo é praticamente zero e qualquer criança cubana tem acesso a educação gratuita e de qualidade, da alfabetização à universidade. Um em cada sete trabalhadores cubanos tem nível superior; 28% dos seus professores têm título de doutor. O acesso à cultura inclui preços simbólicos de ingresso para 800 salas de cinema, 276 museus, 131 galerias de arte. Cuba tem um médico para cada 168 habitantes e o melhor acompanhamento de saúde da família do mundo: um médico para cada 120 famílias (no Haiti existe um médico para cada 10 mil habitantes). O cubano faz em média sete consultas de saúde por ano, incluindo tratamento dentário. As crianças têm 12 exames obrigatórios. A mortalidade infantil é inferior à dos EUA. No Haiti, antes do terremoto, já existiam 3,8 milhões de crianças subnutridas – e a mortalidade infantil era mais de dez vezes superior à cubana.

Em 2009, o Unicef declarou Cuba o único país da América Latina e Caribe livre da desnutrição infantil. Uma simbiose trágica entre fome e regressão agrícola explicam parte considerável das disparidades em relação à outra ilha caribenha, que nos anos 1950 chegou a exportar excedentes agrícolas e hoje importa até banana. As imagens aéreas do terremoto são lancinantes. Mas não menos trágicas são as imagens ocultas da destruição da agricultura familiar promovida no Haiti nas últimas décadas.

Desde os anos 1980 os EUA coagiram o Haiti e outros países pobres a suspender políticas de apoio à agricultura familiar. A justificativa era a capacidade de abastecimento dos livres mercados globais (leia-se, das exportações norte-americanas) a um custo supostamente inferior ao incentivo à produção local. A lógica aparentemente incontestável agravou a vulnerabilidade de produção e abastecimento em muitos países. Um caso especialmente dramático foi o desmonte da lavoura de arroz – produto em que o país foi praticamente autossuficiente há três décadas.

Em 1986, porém, o FMI fez um empréstimo de US$ 24,6 milhões ao país para recompor os cofres públicos dilapidados por Baby Doc. Em troca, exigiu a eliminação de tarifas que protegiam os rizicultores locais, abrindo o mercado à “eficiência da concorrência mundial”. Foi assim que o Haiti sofreu o terremoto do arroz norte-americano, mais barato, que destruiu uma das mais sólidas bases da economia camponesa local.

Em pouco tempo, a produção haitiana desmoronou; arrozeiros abandonaram a terra em fuga para favelas como Cité Soleil, inchando uma capital incapaz de incorporá-los dignamente. E o país se transformou no terceiro maior importador de arroz dos EUA. Em 2008 e 2009, quando a alta nos preços internacionais tornou as importações de alimentos proibitivas, a rizicultura haitiana já não existia.

O terremoto da fome explodiu nas ruas de Porto Príncipe. Quem não se lembra dos bolinhos de lama e sal vendidos nas ruas da cidade para enganar uma fome ancestral turbinada pela escassez absoluta? Fartamente documentado por jornais e TVs de todo o mundo, o sensacionalismo da cobertura, porém, a exemplo das manchetes garrafais de agora, não elucidava a verdadeira história por trás da tragédia. Entre 2007 e 2009, o total de famintos no planeta saltou de 860 milhões para 1,1 bilhão, segundo a FAO. São números que ecoam um terremoto silencioso, não mensurável pela escala Richter, mas que continua fazendo tremer a vida no planeta.

Leia reportagem completa de João Peres.