Brasil

Polícia para quem precisa

Orientada a abandonar a subserviência a interesses de governantes, a Polícia Federal passou a desbaratar quadrilhas e a perturbar gente habituada à impunidade

marcos Souza da Rocha/divulgação

A Operação Satiagraha, apesar das polêmicas em torno dela, pode ser considerada o ápice da mudança de doutrina iniciada em 2003 na Polícia Federal. A ação que prendeu o banqueiro Daniel Dantas, o megainvestidor Naji Nahas e o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta consolidou uma política de investigação baseada em planejamento e inteligência e fez da corporação uma das marcas positivas da administração Lula. Não deixa de ser irônico que o atual presidente, no final dos anos 1970, fosse um dos alvos dessa polícia. Desde janeiro de 2003, a Polícia Federal abandonou a imagem de subserviência a interesses de governantes e ocupa o noticiário como corporação de caráter republicano. Durante esse período, 597 operações desbarataram quadrilhas e esquemas de corrupção de todo tipo. Ao mesmo tempo, ocorreram mais de 120 mil outras operações de rotina. Em 2003 foram realizadas 13 operações especiais; em 2004, subiu para 42; chegaram a 67 no ano seguinte. Em 2006 foram 20 operações a cada dois meses. No ano passado, o ritmo aumentou ainda mais, 188 operações e 2.876 pessoas presas. E, nos primeiros sete meses deste ano, houve 117 operações, com 1.367 prisões.

As ações especiais se tornaram conhecidas, também, pelos nomes inusitados que recebem. O nome Satiagraha foi escolhido pelo presidente do inquérito, delegado Protógenes Queiroz, inspirado na tradução do conceito hindu de “firmeza na verdade”, em sânscrito. Uma das mais famosas, de 2003, é a Operação Anaconda – a grande cobra que sufoca e estrangula presas antes de devorá-las –, que desmantelou uma organização criminosa que atuava em São Paulo, com ramificações no Pará, Alagoas, Mato Grosso e Rio Grande do Sul. Dois delegados e um agente da PF foram presos acusados de formação de quadrilha, prevaricação, tráfico de influência, corrupção, facilitação ao contrabando e lavagem de dinheiro. Em 2004, um dos destaques foi a Operação Farol da Colina, desdobramento de investigações realizadas desde 1997 no caso Banestado. Curiosas foram também as operações Petisco e Big Brother, de 2005. A primeira pegou traficantes de drogas no interior do Rio. A segunda desmembrou uma quadrilha que fraudava documentos para obter pagamento de títulos da dívida pública da Petrobras e da Eletrobrás.

Muitas dessas operações partiram de crimes não solucionados antes da era Lula. A Operação Terra Limpa, de dezembro de 2005, desbaratou uma quadrilha de grileiros de terra que atuava em Rondônia desde 1985. Outra de grande porte, a Concha Branca, desmobilizou ação do narcotráfico montado desde 1988 na Região dos Lagos (RJ).

Durante os dois mandatos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, calcula-se que a PF tenha realizado não mais de 100 operações, em oito anos. Durante as gestões dos ministros da Justiça Márcio Thomaz Bastos e Tarso Genro, das quase 600 operações realizadas de 2003 até hoje, cerca de 150 investigaram crimes ocorridos antes de 2002. Ou seja, havia uma demanda reprimida de trabalho policial, ignorada pelos governos anteriores. Apenas 30 operações nos últimos três anos identificaram fraudes de R$ 56 bilhões. Em alguns casos, os esquemas de corrupção e desvios de dinheiro estavam arraigados na administração federal, como pôde ser constatado pelas operações Farol da Colina e Vampiro. Nesta última, a PF desmontou um esquema de corrupção instalado no Ministério da Saúde desde 1997.

Marcello Casal JR/ABRdelegado Paulo Lacerda
Nomeado pelo então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, o delegado Paulo Lacerda é considerado responsável pelo atual perfil da PF

Algema democrática

A guinada dentro da Polícia Federal foi capitaneada pelo delegado Paulo Lacerda, atual chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Escolhido por Márcio Thomaz Bastos em meio a uma briga de bastidores dentro da PF, Lacerda ficou conhecido por ter presidido o inquérito do caso PC Farias, em 1992, que resultou no impeachment do presidente Fernando Collor de Mello. À época, o delegado imprimiu à investigação um caráter até então pouco comum, de análise exaustiva de documentos, rotinas de inteligência e adoção de novas tecnologias. Embora tenha alcançado grande sucesso no combate a organizações criminosas, a PF também foi exposta como nunca. Lacerda passou a ser criticado, dentro e fora do governo, por permitir a “espetacularização” das ações. Até ele assumir, a PF era razoavelmente dominada pela cultura da truculência herdada da ditadura. O ex-diretor-geral fazia parte de um grupo apelidado, pejorativamente, de “papeleiros” – gente mais interessada em analisar e produzir provas do que chutar portas e colocar presos no pau-de-arara. Sua indicação sofreu oposição interna. O ex-chefe da Casa Civil, José Dirceu, por exemplo, preferia o nome do agente Francisco Garisto, então presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef).

“A doutrina de operações baseadas em trabalho de inteligência não tem volta”, afirma o atual presidente da Fenapef, o gaúcho Marcos Wink. “O crime se tornou inteligente, sobretudo na área financeira”, diz. Wink é crítico da exposição midiática impingida à PF durante a gestão de Lacerda, elogia a atuação do novo diretor-geral, Luiz Fernando Corrêa, e trata o caso da Satiagraha como exceção. “Sou totalmente a favor de algemar todos os presos, do neguinho do morro ao bonitão de colarinho branco, só não é preciso haver exposição pública, em ambos os casos.”

Ao se tornar ministro da Justiça, em janeiro de 2003, o advogado criminalista Márcio Thomaz Bastos recebeu de Lula a missão de acabar com a má fama de milícia governamental adquirida pela PF a partir da ditadura e reforçada, por conta de vários eventos, no governo FHC. Um deles foi a Operação Lunus, planejada dentro do Palácio do Planalto, em 2001, que detonou a candidatura à Presidência de Roseana Sarney, então uma ameaça à candidatura de José Serra, do PSDB. Agentes federais entraram no escritório da construtora Lunus, em São Luís, de propriedade de Roseana e do marido Jorge Murad, e apreenderam R$ 1,3 milhão. O delegado encarregado foi flagrado enviando de dentro da empresa um fax para FHC, no Palácio da Alvorada, dando conta do cumprimento da missão. O caso levou o grupo do senador José Sarney, pai de Roseana, a desentender-se com os tucanos e a aderir à base do governo Lula no Congresso.

Situação semelhante ocorreu com o chamado Dossiê Cayman, em 1998 – uma papelada falsa que insinuava existir uma conta secreta da cúpula do PSDB depositada em um banco das Bahamas, no Caribe. A investigação logo verificou a falsidade dos papéis.

Um dos casos mais esdrúxulos ocorreu na Bahia, em 1995. O senador Antonio Carlos Magalhães estava sendo investigado por conta da chamada “pasta rosa”, dossiê de doações ilegais do extinto Banco Econômico, do ex-banqueiro Ângelo Calmon de Sá. ACM teria recebido US$ 1 milhão para a campanha de 1990 ao governo baiano. Ao saber que o delegado Roberto Chagas Monteiro fora enviado a Salvador, ACM ligou para o então diretor-geral da PF, Wilson Romão, e ameaçou usar a Polícia Civil local contra Monteiro – que acabou virando adido policial na embaixada do Brasil em Buenos Aires.

Investimentos

De acordo com o banco de dados da PF, de 2003 até 25 de julho deste ano, 9.249 pessoas foram presas por conta das operações especiais – que durante o segundo mandato de FHC deram voz de prisão a 490 pessoas. O governo Lula tem como trunfo, ainda, o fato de algumas operações terem atingido aliados políticos. O ex-governador Flamarion Portela (PT-RR), foi pego na Operação Gafanhoto, de 2004, no desmonte de uma quadrilha que fraudava a folha de pagamentos do estado. Operações alcançaram ainda desembargadores, juízes, policiais e autoridades de todos os níveis. A cultura de separação de classes também foi rompida, como na Operação Narciso, que prendeu Eliana Tranchesi, dona da Daslu, por contrabando e sonegação fiscal; ou na Sanguessuga, que investigou quase uma centena de parlamentares acusados de atuar num esquema de compra irregular de ambulâncias.

“Não se pode confundir a função policial com excessos”, avalia Sandro Avelar, presidente da Associação Nacional de Delegados da Polícia Federal (ADPF). Segundo ele, a mudança de orientação a partir da gestão do delegado Paulo Lacerda passou a alcançar uma parcela da população desacostumada a ser alvo de ações policiais e a provocar uma “comoção” nas elites.

O sucesso das operações, no entanto, não tem origem apenas na mudança de orientação. Em 2006 a PF teve um orçamento polpudo, R$ 675 milhões, além dos recursos oriundos de dois convênios firmados com os governos da Alemanha e da França, o Promotec e o Proamazônia. Os acordos foram assinados ainda no governo FHC e prevêem empréstimo de US$ 425 milhões para modernização da PF até 2010. Em dois anos, o orçamento mais do que quadruplicou. A previsão de recursos para 2008 é de R$ 3 bilhões. O efetivo também foi reforçado. Hoje são 14 mil policiais, entre delegados, agentes e servidores administrativos espalhados por 27 superintendências regionais, contra pouco mais de 8.000, antes do governo Lula. A PF pôde fugir da precariedade recente, quando agentes e delegados trabalhavam sem a certeza de ter recursos para diárias ou para o combustível. Apenas na aquisição de um microscópio eletrônico utilizado para fazer varreduras de vestígios de drogas, remédios e combustíveis, foram investidos R$ 3,6 milhões. A construção do novo prédio do Instituto Nacional de Criminalística, em Brasília, inaugurado em 2005, custou R$ 23 milhões.

Big brother
A PF utiliza, desde 2003, o chamado Sistema Guardião, software fabricado no Brasil com capacidade de gravar centenas de ligações telefônicas ao mesmo tempo. A Polícia Civil paulista também usa o sistema, com um upgrade capaz de realizar, em uma só ação de rastreamento, cerca de 9.000 escutas. O diretor-geral da PF, Luiz Fernando Corrêa, foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento do equipamento, mas, estranhamente, o sistema passou a ser vendido para a corporação. A empresa responsável pela comercialização do Guardião, a Dígitro, cobra de R$ 500 mil a R$ 1 milhão para implantar o sistema. Em 2007, a Justiça autorizou 409 mil grampos no país.