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Pedala, Brasil!

Cresce a legião de usuários de bicicleta, boa para a mobilidade, a economia, o meio ambiente e a saúde. Mas faltam políticas públicas que façam as pessoas tirar o carro da cabeça. E das ruas

paulo pepe

Aruana pedala 30 km por dia para não usar o carro nem o transporte público, que considera demorado

“Se tivéssemos ciclovias funcionais, interligação com outros transportes, estacionamento de bicicletas, eu seria o primeiro a pedalar para ir ao trabalho. Estou cansado de trânsito. Se implantassem um sistema bem-feito, a cidade ia ganhar tempo, economizar dinheiro, ficar menos poluída.” O desabafo do arquiteto carioca Paulo de Tarso ecoa boa parte das reivindicações dos brasileiros – cada vez mais numerosos – que utilizam a bicicleta como meio de transporte urbano.

De acordo com levantamentos da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), 7,4% dos deslocamentos em área urbana são feitos de bicicleta, num total de 15 milhões de viagens diárias no país. A frota nacional de 50 milhões de bicicletas dobrou na última década e cresce numa razão de 5 milhões por ano.

Diante da quantidade assustadora de automóveis nas grandes cidades, os ciclistas urbanos ainda parecem raros, isolados, perigosamente solitários. Mas já são uma multidão considerável, criando uma demanda por melhoramentos viários que já começa a repercutir em setores do poder público. Paulo de Tarso é presidente da Sampa Bikers, espécie de clube que estimula o uso de bicicletas para vários fins, e não está sozinho em seu apelo por espaço. É ciclista militante, mas se considera pessimista em relação ao atendimento de suas necessidades: “Acho que a bicicleta nunca vai ganhar espaço na cidade. O poder público só pensa em dar mais acesso aos carros”.

A designer Danielle Noronha é ativista em defesa da bicicleta, mesmo num contexto violentamente adverso. “Acho que há um movimento acontecendo. Aparece cada vez mais gente andando de bicicleta em grupo. De carro, não se fala com ninguém no trânsito. Converso com os ciclistas e percebo que são gente como eu, que usa a bicicleta porque é boa opção de transporte. De bicicleta a locomoção é mais saudável, agradável, mais rápida.”

Segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo, o congestionamento regular da cidade implica deslocamentos à média de 20 quilômetros por hora. A velocidade média da bicicleta em terreno plano é de 25 quilômetros por hora. A frota de 5,6 milhões de automóveis na capital paulista – a maioria ocupada por uma só pessoa (média de 1,5 pessoa por veículo) – é responsável por 70% da poluição atmosférica. A população perde quatro dias por ano parada no trânsito.

Para Danielle, pior é a falta de estrutura. E a convivência no trânsito não é pacífica. “As pessoas não conhecem o Código de Trânsito, que protege o ciclista, por isso há uma grande necessidade de implementar ciclovias. Faltam também estacionamentos apropriados.” Pesquisas confirmam que os principais obstáculos ao uso da bicicleta como meio de transporte são medo de atropelamento, de assalto, falta de estacionamentos e falta de ciclovias. Segundo a ANTP: o Brasil inteiro tem 600 quilômetros de ciclovias em uso. A Holanda, com 16 milhões de habitantes, tem 15 mil quilômetros de faixas para bicicletas.

Já o município de São Paulo, com 10,5 milhões de habitantes, tem menos de 30 quilômetros de ciclovias – 20 deles dentro de parques. Mais de 15.600 quilômetros de ruas e avenidas. Cerca de 50 ciclistas morrem por ano. Segundo dados divulgados pela Unesco, 95% dos acidentes com ciclistas acontecem nos cruzamentos – e uma ciclovia teria evitado todas essas mortes. Os que são atropelados (colisão por trás) por carros e motos não chegam a 0,1% do total de acidentados.

Apesar do risco, paradoxalmente, a violência e a saturação do trânsito parecem estimular a busca dos usuários de bicicletas por mais espaço. Várias cidades brasileiras ganharam a Bicicletada, versão nacional do movimento conhecido mundialmente como Massa Crítica, que nasceu em 1992 na cidade norte-americana de São Francisco e hoje está presente em mais de 300 cidades do mundo. Importado para São Paulo há pouco mais de quatro anos, o movimento já ocorre também em Porto Alegre, Florianópolis, Brasília, Curitiba e Mossoró.

Gerardo lazzariJúlio
Júlio: “Não sou cicloativista, mas uso a bicicleta como meio de transporte”

‘Nem suamos mais’

“Dificilmente chegaremos à ‘massa crítica’, com centenas de ciclistas, mas é fundamental que a Bicicletada exista. Ela leva o recado a um número significativo de motoristas”, diz o estudante de Ciências Políticas Júlio Casarin, que participava de uma das edições da Bicicletada em São Paulo, em janeiro deste ano.

O nome da manifestação se refere a um fenômeno comum nas cidades chinesas: os ciclistas que, sozinhos, não conseguem atravessar os cruzamentos desprovidos de semáforos esperam a formação da massa crítica – o acúmulo de um número de bicicletas suficiente para obrigar os veículos motorizados a parar e esperar. Parte da massa crítica brasileira, Júlio pedalava de calça jeans, óculos, feito um pedestre, longe do estereótipo do ciclista que usa a bicicleta para o lazer ou esporte.

“Não sou cicloativista, mas uso a bicicleta como meio de transporte por questão de saúde, economia, consciência ecológica”, dizia o estudante enquanto esperava a partida da Bicicletada, o passeio ciclístico sem lideranças, como um movimento espontâneo de cidadãos. “É nítido que tem mais gente pedalando. A gente aprende a sobreviver na violência do trânsito, mas é preciso se manifestar para conquistar mais espaço.”

O estudante percorre diariamente de bicicleta os cerca de oito quilômetros entre sua casa, em Santa Cecília, na região central de São Paulo, e a faculdade, na Cidade Universitária, na região oeste. “Não é uma distância grande. Depois que ganhamos condicionamento físico, nem suamos mais”, garante.

Na mesma manifestação, o estudante Tiago Troglio Correa, de 18 anos, se apresentava com todo o equipamento de ciclista. “Não uso a bicicleta para esporte. É mais lazer e locomoção, mas como pedalo bastante prefiro andar equipado”, dizia. De sua casa em Pirituba, zona noroeste, até a Avenida Paulista, onde começa a Bicicletada, pedalou 20 quilômetros. “O problema é que as pessoas não conhecem o Código de Trânsito.”

E as políticas públicas ainda são escassas. No início de fevereiro, o prefeito Gilberto Kassab (PFL) sancionou a lei que institui o Sistema Cicloviário do Município e reconhece a bicicleta como meio de transporte. Shoppings a terminais de transporte serão obrigados a possuir bicicletário, mas poderão fazer sua exploração comercial. A lei, de iniciativa do vereador Chico Macena (PT), indica a permissão de bicicletas em vagões de metrô e trem – ainda restrita aos fins de semana – e determina que toda nova obra viária inclua ciclovia ou ciclofaixa.

O substitutivo que deu origem à lei recebeu sugestões do secretário do Verde e do Meio Ambiente, Eduardo Jorge, que eventualmente também pedala para ir trabalhar. Para ele, todos têm a missão de criar uma cultura na qual a bicicleta seja mais que esporte e lazer: “É uma missão difícil, porque a cidade é completamente dominada pela hegemonia do carro. E o carro é insaciável, quer mais túneis, mais ruas, mais orçamento”. Ele exemplifica a voracidade do automóvel mencionando o túnel na Avenida Rebouças, que custou 60 milhões de reais. “É o orçamento da Secretaria do Verde e Meio Ambiente da maior cidade do hemisfério sul!”, compara.

Jorge acredita que a mudança cultural virá, já que a era do petróleo está a algumas décadas do fim. “Os países com planejamento de longo prazo já decretaram: nada mais para o carro, nem mais um tostão. Mas, aqui em São Paulo, o carro continua sendo o rei absoluto da cidade”, lamenta.

As políticas, no entanto, vão sendo traçadas. A própria lei paulistana derivou do Programa Brasileiro de Mobilidade por Bicicleta – Bicicleta Brasil, criado em 2004 pelo Ministério das Cidades. Segundo o diretor de Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades, Renato Boareto, o programa pretende integrar a bicicleta como opção de mobilidade e contribuir para mudar a cultura do privilégio ao automóvel: “As pessoas recebem sinalização do poder público. A cidade é pensada como se um dia todas as pessoas fossem ter um automóvel, e isso nunca vai – nem pode – acontecer. As pessoas escolhem o meio de transporte a partir do estímulo do poder público”. Para municípios com mais de 100 mil habitantes, o BNDES disponibiliza ainda uma linha de crédito de 300 milhões de reais no Programa de Financiamento de Infra-Estrutura para Mobilidade Urbana (ProMob).

Aruana Espíndola, 27 anos, é funcionária do INSS e estuda Relações Públicas. Estuda alguns dias no período da manhã, outros à noite, trabalha à tarde e faz todos os trajetos de bicicleta, o que dá em média 30 quilômetros por dia. “Transporte público demora. A bicicleta é saudável, tem a questão ambiental, o caos por causa dos transportes individuais. Levei tudo em consideração e vi que só tem vantagens”, aprendeu. “Para isso, é preciso ter bicicleta de boa qualidade, equipamentos de segurança, atenção e paciência com os motoristas mal-educados. A maioria não sabe que bicicleta pode andar na rua e grita para a gente ir para a calçada, o que na verdade é proibido”, ensina. “Como não há uma faixa específica para ciclistas, tem de praticar a direção defensiva. Todo dia escuto buzinadas, como se que eu estivesse atrapalhando. Quem atrapalha são os motoristas, que estão muitas vezes sozinhos, ocupando muito espaço.” Ela acredita que, quanto mais gente optar pela bicicleta, mais esse assunto vai chamar a atenção da sociedade civil, dos governos e dos próprios motoristas. “Eu sou otimista.”

Colaborou Xandra Stefanel

OMS recomenda

Bicicletada: abrindo espaço entre os 5,6 milhões de carros de São Paulo

O ato de pedalar faz bem não apenas à mobilidade, à economia e ao meio ambiente. A Organização Mundial da Saúde (OMS) defende o uso da bicicleta como uma das saídas para melhorar a saúde pública mundial. A OMS recomenda aos governos a criação de planos integrados de atividades físicas, inclusive nas políticas de transportes e planejamento urbano. Em documento, enfatiza que esses planos trazem não apenas benefícios médicos diretos, mas “aumentam a interação social, fornecem lazer e reduzem a violência, o tráfego urbano e a poluição”.

Para o médico Paulo Saldiva, pedalar faz bem mesmo numa grande cidade: “Os malefícios da poluição são compensados pelos ganhos com a atividade física”. Saldiva, de 52 anos, pedala cerca de 30 quilômetros por dia em São Paulo. “Estou bem melhor que os colegas da minha idade. Ou a bicicleta faz bem, ou o Audi faz mal”, ironiza o médico, chefe do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP. Ele leva as roupas na mochila. “Chego no trabalho às 7h30 e saio às 20 horas. Em que outro horário poderia fazer um exercício tão completo?”