Crônica

Pátria de chuteiras e seleção de sapatos

Antigamente, no tempo das torcidas organizadas, havia um grande medo de que eles invadissem o campo. Hoje, os torcedores andam meio sonolentos e preferem ver o jogo pela tevê.

mendonça

Caro leitor, caríssima leitora, há poucos momentos em que nos sentimos mais brasileiros do que aqueles em que assistimos a um jogo de Copa do Mundo. Nem no 7 de Setembro nossa alma é tão verde-e-amarela.

Como disse Nelson Rodrigues, “A seleção é a pátria de chuteiras”.

Mas talvez o inverso também seja verdade. Talvez a pátria seja a seleção de sapatos.

Não acreditam? Provo-lhes. Mas vamos por partes:

Goleiro: é sempre considerado o culpado por qualquer derrota, tal qual a classe média. Se consome, é culpado pela inflação. Se poupa, é culpado pela desaceleração da economia. Não é fácil ser goleiro. Nem classe média.

Zagueiros: o miolo de nossa defesa corresponde às forças de repressão: exército e polícia. Eles têm como função proteger o território, impedindo a entrada dos inimigos. Por conta dessa função de defesa da soberania, aceita-se com certa naturalidade a idéia de que os zagueiros sejam violentos. Lúcio e Juan têm licença para bater forte e jogar sujo. E, em situações extremas, até alguns torcedores clamam por essa violência.

Volantes: são uma óbvia metáfora dos grandes empresários. Sua função é roubar a bola, têm que fazer faltas sem que os juízes percebam e qualquer jogada tem sempre que passar por eles. O pior é que esse centro de decisão, com Émerson e Zé Roberto, possui pouca criatividade. Assim como o empresariado, nossos volantes preferem adotar os conservadores passes laterais, sem arriscar uma política mais ofensiva.

Armadores: nossos armadores Kaká e Ronaldinho sabem driblar e têm grande poder de infiltração. Sendo assim, temos que comparar nossos meias a um segmento que seja ao mesmo tempo objetivo, malemolente e pragmático, um grupo que seja um exemplo de organização tática e poder de penetração. Ou seja, os banqueiros. Não é à toa que os armadores têm os melhores salários.

Laterais: os laterais podem ser tomados como legítimos representantes dos profissionais liberais. Cafu e Roberto Carlos demonstraram capacidade de adaptação a diferentes situações, muita velocidade e grande habilidade para entrar em setores já saturados de jogadores. Infelizmente, eles necessitam tabelar com o meio-de-campo, mas nem sempre conseguem bons resultados com nossos volantes-empresários e com nossos meias-banqueiros.

Atacantes: são a encarnação do pequeno empresário. Eles precisam ter criatividade, capacidade de improviso, senso de oportunismo e jogo de cintura para sair da marcação cerrada.

Técnico: Parreira exerce o papel de presidente da República. Não faz mudanças radicais, arrisca pouco e prefere jogar com quem já conhece.

Torcedores: são, obviamente, o povo, a raia-miúda. Ficam fora do campo de jogo, torcendo para que os jogadores se saiam bem. E, no fim das contas, são eles que pagam o espetáculo. Infelizmente, costumam brigar muito entre si. Antigamente, no tempo das torcidas organizadas, havia um grande medo de que eles invadissem o campo. Hoje, os torcedores andam meio sonolentos e preferem ver o jogo pela tevê. Antes era melhor.

José Roberto Torero é escritor, roteirista de cinema e TV (Pequeno Dicionário Amoroso, Retrato Falado), colunista de Esporte na Folha de S.Paulo e blogueiro (blogdotorero.blog.uol.com.br)